O que é ser humano? O desafio das ciências cognitivas

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Transcrição:

O que é ser humano? O desafio das ciências cognitivas 1 1. Introdução: uma nova revolução paradigmática? Alguns autores consideram que as grandes revoluções da era moderna que mudaram a concepção que temos de nós mesmos foram três, associadas a três grandes nomes da ciência: Copérnico, Darwin e Freud. As três revoluções tiveram consequências epistemológicas imediatas, sobre a metodologia científica em diversas áreas, sobretudo em astronomia, física, biologia, psicologia e sociologia. Mas, elas exerceram uma influência, que considero ainda mais importante, sobre a concepção que temos de nós mesmos, das nossas relações sociais, e da nossa relação com o mundo que nos rodeia. A influência mais profunda daquelas três revoluções situa-se, de facto, ao nível das nossas concepções filosóficas e religiosas. É muito possível que estejamos neste momento no início de uma nova revolução paradigmática semelhante às que são associadas àqueles três cientistas, uma revolução provocada pelos rápidos desenvolvimentos das ciências cognitivas que se têm verificado sobretudo a partir de meados do século XX, e cujo fim e implicações não se vislumbram ainda por completo, permanecendo em aberto um vasto leque de hipóteses quanto a desenvolvimentos futuros. Trata-se, em alguns casos, de hipóteses altamente perturbadoras, mas ao mesmo tempo muito estimulantes, já que poderão conduzir a um melhor conhecimento de nós mesmos. São igualmente hipóteses que nos convidam a prosseguir um caminho sem regresso. Georges Vignaux afirma a este propósito que as novas perspectivas paradigmáticas criadas pelas ciências cognitivas podem ainda fazer crer aos cépticos, arreigados aos funcionamentos disciplinares clássicos, que os estudos cognitivos não serão mais do que uma moda, uma etapa na reestruturação dos saberes. Isso não é verdade: os confrontos visíveis são também índices de numerosos intercâmbios invisíveis: estamos perante uma revolução no sentido copernicano, nas formulações dos nossos conhecimentos e dos nossos métodos. 1 O que se pode desde já dizer é que o impacto desta nova revolução operada pelas ciências cognitivas é bastante mais radical que o das revoluções anteriores, já que pretende, em certos aspectos, englobá-las e, ao mesmo tempo, superá-las numa síntese nova e aberta a contínuas e inesperadas novidades. Trata-se sobretudo dos aspectos que se referem à concepção tradicional do ser humano, concepção que continua a sofrer transformações - talvez possamos dizer mesmo, radicais transformações. Estas concepções constituem um movimento cultural e filosófico com início no Renascimento e que parece conhecer agora desenvolvimentos tão decisivos quanto insuspeitados. O fio condutor destas revoluções é, de 1 G. Vignaux, As Ciências Cognitivas : uma Introdução, Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 10. Referindo-se à revolução que está a acontecer no domínio das ciências cognitivas, Patricia Churchland afirma que na sua capacidade de destruir as verdades eternas do conhecimento do senso comum, esta revolução será pelo menos igual às revoluções Copernicana e Darwiniana. Patricia Churchland, Neurophilosophy. Towards a Unified Science of the Mind/Brain, Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986, p. 481. Por seu lado, António Damásio crê que os animais não humanos têm comportamentos éticos, facto que pode ser chocante para os que acreditam que o comportamento ético é uma característica especificamente humana. Como se não fosse suficiente que Copérnico nos dissesse que não estamos no centro do universo, que Darwin nos dissesse que temos origens humildes, e que Freud nos dissesse que não somos senhores da nossa própria casa, dizem-nos agora que no campo da ética o comportamento tem origens primitivas. Apesar de tudo, o autor defende que o comportamento ético humano tem características específicas, sobretudo no que se refere à motivação, que não se encontram nos animais não humanos. A. Damásio, The neural basis of social behavior: ethical implications in Steven Marcus (ed.), Neuroethics: Mapping the Field, New York: The Dana Press, 2002, p. 15.

2 facto, o da naturalização completa do ser humano, o qual é agora convidado com maior insistência a descer do pedestal da esfera sobrenatural na qual pensara ter sido colocado por Deus no acto da sua criação, e que lhe conferia uma natureza que o distinguia substancialmente de todos os demais seres criados, constituindo-o a única criatura com uma alma espiritual que lhe assegurava a imortalidade. As revoluções atrás referidas tenderam a aproximar tão perigosamente o ser humano dos demais seres vivos, que a sua dignidade parece diminuir progressivamente. O mesmo ser humano poderá estar destinado a desaparecer da face da Terra, dando lugar a uma nova geração de seres vivos radicalmente diferentes: seres que, para alguns, tanto poderão resultar de uma total simbiose homemmáquina como da completa substituição dos seres humanos por máquinas supertinteligentes, ou ainda por uma nove espécie de mamíferos que conduza ao desaparecimento do homo sapiens. 2. As ciências cognitivas e a pergunta: O que é ser humano? As ciências cognitivas têm sido objecto de diversas definições. Para alguns, são o estudo interdisciplinar dos processos cognitivos envolvidos na aquisição, representação e uso do conhecimento humano, incluindo em particular o estudo da linguagem natural, memória, resolução de problemas, aprendizagem, visão e raciocínio 2 Para outros são o conjunto de investigações interdisciplinares que procura explicar a actividade inteligente, quer a que é própria dos seres vivos (especialmente humanos adultos), quer a das máquinas. 3 Muitas outras definições se poderiam apresentar, mas vale a pena sublinhar que praticamente todas elas acentuam a estreita ligação entre cognição ou conhecimento e acção ou comportamento. Este facto deve-se à predominância que a inteligência artificial e a psicologia assumiram no contexto das ciências cognitivas durante várias décadas, desde a sua pré-história, a partir dos anos 30, com a concepção por Alan Turing de uma máquina inteligente, até ao famoso Symposium on Information Theory, realizado em 1956 no não menos famoso Massachusetts Institute of Technology, e ao Encontro de Darmouth, realizado no mesmo ano. O Simpósio marca o nascimento oficial das ciências cognitivas. Os estudos de informática, lógica, linguística e psicologia constituíram desde o início uma aliança que olhou a acção e o conhecimento humanos como algo cujos mistérios poderiam ser plenamente compreendidos a partir da explicação do funcionamento de máquinas inteligentes. Esta corrente, na qual a lógica assumia um papel central, ficou conhecida como cognitivismo. Mas há que ter em conta que as ciências cognitivas só aparentemente se centram no nível epistemológico ou do conhecimento, e da acção ou comportamento. Com efeito, a epistemologia não é dissociável de uma ontologia e, no caso das ciências cognitivas, de uma onto-antropologia. Não se trata apenas de proceder a investigações sobre a questão de saber quais são os mecanismos da acção e do conhecimento humanos e como simulá-los, mas de procurar responder à questão que constitui o título do capítulo introdutivo da obra de Mark Johnson e George Lakoff Philosophy in the Flesh: Quem somos nós? Como a ciência 2 Michael Dawson, Understanding Cognitive Science, Oxford : Blackwell Publishers, 1998, p. 4. 3 Robert Audi, The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge, 1995, p. 128

3 cognitiva reabre questões filosóficas centrais. 4 Segundo os autores, estas questões são reabertas a partir de uma nova abordagem paradigmática da mente e da razão humanas, uma abordagem empírica, corpórea. Johnson e Lakoff consideram que o conceito de razão inclui não apenas a nossa capacidade de inferência lógica, mas também a nossa capacidade para investigar, para resolver problemas, para avaliar, criticar, deliberar acerca do nosso modo de agir, e para chegar a uma compreensão de nós mesmos, das outras pessoas e do mundo. 5 Está feita aqui de um modo explícito a ligação entre epistemologia e onto-antropologia: Uma mudança radical na nossa compreensão da razão, continuam os autores, representa por conseguinte uma mudança radical na compreensão de nós mesmos. 6 Numa tentativa de resposta à questão quem somos nós?, Mark Johnson e George Lakoff pensam poder adiantar já algumas das transformações que as ciências cognitivas estão a provocar na compreensão de nós mesmos como seres humanos. Os autores começam por elencar as principais descobertas destas ciências que parecem estar a mudar radical e definitivamente a nossa concepção do que é ser humano: A mente é por natureza incarnada. O pensamento é na sua maior parte inconsciente. Os conceitos abstractos são largamente metafóricos. Estas são três das descobertas mais importantes da ciência cognitiva. Mais de dois mil anos de especulação filosófica apriorística acerca destes aspectos da razão pertencem já ao passado. Devido a estas descobertas, a filosofia nunca mais será a mesma. 7 Os autores notam, não sem alguma razão, que estas teses das ciências cognitivas introduzem uma ruptura paradigmática com toda a tradição da filosofia ocidental, no que se refere não apenas às correntes metafísicas aristotélico-tomista e kantiana, mas também à tradição analítica, anti-metafísica, e até mesmo às correntes filosóficas pós-modernas. Johnson e Lakoff assumem em relação a estas tradições uma atitude radical. Propõem, nada mais nada menos, que um recomeço a partir do zero. São mais de dois mil anos de pensamento filosófico que se torna necessário arquivar até que a poeira do tempo os acabe por cobrir e nós próprios acabemos por deles nos libertarmos. Quais seriam as consequências de uma atitude tão radical como esta? O que aconteceria se começássemos com estas descobertas empíricas acerca da natureza da mente e elaborássemos a filosofia a partir do zero?, perguntam. E continuam: A resposta é a seguinte: uma filosofia empiricamente responsável exigiria que a nossa cultura abandonasse alguns dos seus pressupostos filosóficos mais profundos Os autores recusam assim qualquer projecto de continuidade com a tradição filosófica ocidental. Contudo, esta posição supõe uma visão dessa tradição que parece desconhecer modificações importantes que se têm verificado na filosofia e na teologia ocidentais, sobretudo ao longo do século XX, especialmente no que se refere à auto-compreensão do ser humano, como veremos mais adiante. Se a natureza da mente e da razão, bem como dos conceitos que utilizamos para pensar, conhecer e decidir, é empírica e não incorpórea, contrariamente ao que a tradição 4 George Lakoff e Mark Johnson, Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge to Western Thought, New York: Basic Books, 1999, p. 3. 5 Ibid., pp. 3-4. 6 Ibid., p. 4. 7 Ibid., p. 3.

4 ocidental considerou durante mais de dois mil anos, então a conclusão a tirar é tão óbvia quanto surpreendente: É, de facto, chocante, ainda segundo Johnson e Lakoff, descobrir que somos muito diferentes daquilo que a nossa tradição filosófica nos tem dito. 8 O que de início poderia parecer uma questão meramente epistemológica transformou-se rapidamente numa questão ontológica, não apenas no que se refere à realidade em geral, mas também, e muito mais concretamente, à realidade do ser humano. 3. O impacto das neurociências Esta dimensão onto-antropológica das ciências cognitivas tornou-se mais evidente sobretudo com o recente desenvolvimento das neurociências. Patricia Churchland considera que é precisamente a cada avanço experimental que a neurociência está a moldar a nossa concepção sobre quem somos. A evidência hoje acumulada implica que é o cérebro, e não alguma realidade não física que sente, pensa e decide...isto significa que não existe nenhuma alma que viva a sua eternidade postmortem feliz no Céu ou infeliz no Inferno. 9 Foi de facto com o surpreendente desenvolvimento das neurociências, sobretudo com o aperfeiçoamento das técnicas de estudo do funcionamento cerebral nas décadas de 80 e 90, que a complexidade do comportamento humano, no qual a razão e a emoção interagem constantemente, provocou uma significativa mudança nas ciências cognitivas. A partir de um conhecimento muito mais pormenorizado do funcionamento do sistema nervoso e, em particular, do cérebro humano, cujas conexões sinápticas seguem um esquema de distribuição em paralelo e não em série, ao contrário do que era pressuposto pelos cognitivistas, as máquinas inteligentes começaram a ser pensadas a partir do conhecimento do cérebro humano, e não inversamente, como antes sucedia. Nascia o conexionismo. A partir deste momento, as ciências cognitivas adquiriram um carácter mais filosófico ou, dito de outra maneira, começaram a abordar mais aprofundadamente questões que até então eram consideradas específicas da filosofia e da teologia. Conceitos como os de alma, espírito, mente, auto-consciência, pensamento, liberdade, etc., designam outros tantos problemas de que as ciências cognitivas se apropriaram inteiramente. A vertente ontológica relativa à natureza dos seres que conhecem, acaba por ser compreendida também no mesmo domínio das neurociências, da psicologia cognitiva e da inteligência artificial. Estes três campos de estudo parecem fornecer exaustivamente informações sobre todos os processos cognoscitivos dos seres vivos e, a partir daí, explicar também as actividades que realizam, isto é, os seus comportamentos e, em última análise, a sua própria natureza. Dado que os processos cognoscitivos realizados pelos seres vivos em geral, parecem ter muito em comum, já que têm a sua origem no dinamismo da evolução das espécies, facilmente se conclui que o substracto ontológico desses processos deve ser também basicamente o mesmo. Daqui a facilidade com que se crê nas profundas afinidades entre os seres humanos e os seres vivos em geral, sobretudo os mamíferos. E se é verdade que todos os seres vivos pertencem pura e simplesmente ao mundo natural, a sua estrutura ontológica, aparece despida de qualquer sentido metafísico, transcendente ou sobrenatural. As tradicionais 8 Ibid., p. 4. 9 Patricia Churchland, Brain-Wise. Studies in Neurophilosophy, Cambridge, MA: The MIT Press, 2002, p. 1.

5 noções de alma, espírito e mente perdem todos os seus mistérios. Para alguns, estes mistérios poderão continuar, quando muito, nas abordagens da filosofia e da religião tradicionais, sobretudo no ocidente. Mas por pouco tempo mais. Dentro em breve, a resposta à pergunta o que é ser humano será esclarecida na sua totalidade pela conjugação de esforços das diversas ciências cognitivas. É para aqui que conduzem, segundo Howard Gardner, os actuais desenvolvimentos interdiscipinares:. Hoje em dia, a maior parte dos cientistas cognitivos são oriundos do campo de disciplinas específicas em particular, da filosofia, da psicologia, da inteligência artificial, da linguística, da antropologia e das neurociências. A esperança é que um dia as fronteiras entre estas disciplinas possam ser atenuadas ou mesmo desaparecer por completo, originando uma ciência cognitiva única e unificada. 10 A expressão ciência cognitiva única e unificada está longe de ser clara, e embora possa ser entendida num sentido algo profético mas não necessariamente apocalíptico, não pode deixar de nos trazer à memória o fracassado projecto neopositivista de unificação das ciências. Nesta mesma linha profética de absorção de todos os grandes domínios do saber pelas ciências cognitivas tendem a pronunciar-se diversos outros autores. Segundo Patricia Churchland, nesta fase da sua história o cérebro e as ciências do comportamento são extremamente excitantes, porque tudo indica que iniciámos um período no qual obteremos uma compreensão científica global da relação mente-cérebro, numa extensão não trivial. Teorias de vasto alcance, do tipo paradigma orientador, ou contexto unificador, estão a começar a emergir, e evoluirão e estruturarão tanto o trabalho de investigação como, indubitavelmente, o nosso modo de pensarmos sobre nós mesmos. E seria de admirar que as novas teorias e as novas descobertas não contivessem surpresas de tal magnitude que venham a constituir uma revolução no nosso modo de entender. (...) Já é evidente que alguns conceitos profundamente centrais da psicologia do senso comum, tais como a memória, a aprendizagem e a consciência, ou estão a fragmentar-se ou serão substituídos por categorias mais adequadas. 11 Que através do desenvolvimento das ciências cognitivas venhamos a obter progressivamente um conhecimento mais profundo do que é ser humano parece claro. Já é menos claro que nova imagem irá emergir dos constantes e por vezes apressados progressos científicos. Na linha de Patricia Churchland, e de um ponto de vista estritamente neurobiológico, Francis Crick crê que se pode dizer a um ser humano: Você não passa de um embrulho de neurónios. Esta é, segundo o autor, uma hipótese espantosa, tão espantosa que a maior parte das pessoas, mesmo as mais cultas, se recusarão a aceitá-la. A Hipótese Espantosa, afirma Crick, é a de que você, as suas alegrias e as suas tristezas, as suas memórias e as suas ambições, o seu sentido de identidade pessoal e de livre arbítrio, não sejam de facto mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e das suas moléculas associadas.... Esta hipótese é de tal forma estranha às ideias da maioria das pessoas hoje vivas que bem pode ser considerada como espantosa. 12 Para autores como Francis Crick, Patricia Churchland, Mark Johnson e George Lakoff, o movimento de naturalização do ser e do saber humanos parece ter entrado em contradição 10 Howard Gardner, A Nova Ciência da Mente. Uma História da Revolução Cognitiva, Lisboa: Relógio d Água, 2002, p. 27. 11 Patricia Churchland, Neurophilosophy, A Neurophilosophical Perspective, Cambridge, Mass: MIT, 1986, p. 482. 12 Francis Crick, A Hipótese Espantosa. Busca Científica da Alma, Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 19.

6 insanável com a perspectiva filosófico-teológica do carácter sobrenatural dos elementos característicos da humanidade como, por exemplo, a alma, a mente, a consciência ou o espírito que, segundo a tradição ocidental, especificam o ser humano. É de facto impressionante que grande parte das obras de carácter mais filosófico que hoje são publicadas na área das ciências cognitivas se baseiem numa repetida afirmação da oposição entre as perspectivas natural/sobrenatural e imanente/transcendente. Os autores destas obras parecem ignorar que é possível dispensar tais dualismos sem com isso necessitar de introduzir uma ruptura radical com a reflexão humana amadurecida no ocidente ao longo de mais de dois mil anos. O dualismo corpo-alma é um dos que mais suscita críticas demolidoras. Mas serão elas tão justificadas e destrutivas como parecem? 4. Quem somos nós? Crick e Flanagan sobre a alma humana A questão da existência e da natureza da alma humana constitui actualmente uma das questões mais debatidas pelos autores que desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas, já que se trata de um conceito no qual converge muito da tradição filosóficoteológica ocidental, e que aparece tradicionalmente associado ao conceito de corpo, criando assim um dualismo hoje posto em causa. Francis Crick, como muitos outros, parece ter ideias claras e definitivas sobre a questão da alma. O autor considera, não sem razão, que, cientificamente falando, se trata de um conceito desnecessário para a compreensão do mesmo ser humano. Um neurobiólogo moderno, afirma ele, não precisa do conceito religioso de alma para explicar o comportamento dos humanos e de outros animais. A afirmação é tão óbvia que quase parece trivial E, evocando as transformações na compreensão do cosmos provocadas pelas descobertas de Galileu, Kepler e Newton, Crick continua: faz lembrar a pergunta que Napoleão fez, depois de Pierre-Simon Laplace lhe ter explicado como é que o sistema solar funcionava: Onde é que Deus entra nisto tudo? Ao que Laplace respondeu: Sire, não preciso dessa hipótese. E prossegue:. Nem todos os neurocientistas acreditam que a ideia da alma seja um mito -Sir John Eccles é a excepção mais notável- mas não há dúvida de que a maioria é dessa opinião. Não é que tenham conseguido provar que a ideia seja falsa. Mais propriamente, tal como as coisas de momento se apresentam, não vêem qualquer necessidade dessa hipótese. E conclui: considerado sob a perspectiva da história humana, o principal objectivo da investigação científica do cérebro não é o de compreender meramente e de curar várias situações clínicas, por muito importante que a tarefa possa ser, mas antes abarcar a natureza real da alma humana. O que se tenta descobrir é se este termo será metafórico ou literal. 13 Devo dizer que julgo altamente improvável que os investigadores que estudam o cérebro humano considerem sua tarefa prioritária esclarecer se o conceito de alma deve ser tomado em sentido literal ou metafórico. Em todo o caso, há quem pareça, segundo Crick, ter já resolvido o problema: Muitas pessoas instruídas, sobretudo no mundo ocidental, também partilham a convicção de que a alma é uma metáfora e que não existe vida pessoal antes da concepção, 13 Ibid., p. 23.

7 nem depois da morte. Poderão auto-denominar-se ateus, agnósticos, humanistas ou apenas crentes apóstatas, mas todos eles negam os principais argumentos das religiões tradicionais. 14 Na mesma linha de Crick, Owen Flanagan dedicou recentemente uma obra 15 à questão do conflito que, no que se refere à compreensão do ser humano, parece existir entre a perspectiva das ciências naturais, particularmente a das ciências cognitivas, e a das humanidades tradicionais, particularmente a da filosofia e a da teologia. Um dos pontos em que este conflito surge com maior evidência é segundo o autor a questão da existência ou não de um eu substancial e de uma alma humana em sentido subsistente e imortal. Flanagan considera que a questão da alma é muito mais ampla do que habitualmente se supõe, afirmando que o problema da alma é uma forma abreviada de referência a um conjunto de problemas filosóficos centrais na perspectiva humanista dominante. Estes conceitos incluem, antes de mais, uma mente não física, a liberdade e um self ou alma permanente, subsistente e imutável. Flanagan reconhece com razão que para muitas pessoas estes conceitos estão ameaçados pelo progresso científico, e é esta percepção que causa nessas pessoas uma grande resistência à perspectiva científica, já que daqueles conceitos parece depender definitivamente para eles o próprio sentido da existência humana. Por isso, continua Flanagan, para essas pessoas, uma vez que sem uma mente não física, a liberdade e a alma não são coisas reais mas apenas meras aparências, então, é o fim do mundo pelo menos do mundo tal como o conhecemos. 16.Tocamos aqui de novo o tema da revolução paradigmática copernicana que em muitos aspectos parece estar a levar-nos para um outro mundo conceptual e de auto-compreensão, mas que pode contudo conduzir-nos também a um enorme progresso. Flanagan propõe-se resolver o conflito entre as imagens do ser humano que nos são dadas pelas ciências naturais, por um lado, e as que nos vêm das humanidades, por outro, sugerindo que devemos desistir de acreditar na existência quer de um eu, quer de uma alma, no sentido subsistente que lhes dão as humanidades tradicionais, particularmente a filosofia e a teologia ocidentais, dado não haver qualquer base para uma tal crença. No entanto, o autor evita assumir uma posição demasiado radical. Há que preservar as referências fundamentais que nos têm permitido compreender o sentido da vida. Podemos pois, segundo ele, continuar a utilizar os termos antropológicos fundamentais desde que deixemos de lhes atribuir o sentido substancial tradicional: podemos preservar muito daquilo que queremos significar quando falamos de mente, alma, self e liberdade, sem continuar a atribuir-lhes aqueles aspecto de significado procedentes das suas raízes religiosas e teológicas. 17. Há que aceitar, continua Flanagan, que a nossa dimensão animal é a nossa única dimensão. Somos todos animais e o cérebro é a nossa alma. 18 Mas esta solução do problema da nossa identidade e autocompreensão parece demasiado simples e desfundamentada para poder ser tomada acriticamente Flanagan considera que, não existindo uma alma humana subsistente e imortal, 14 Ibid. 15 Owen Flanagan, The Problem of the Soul, New York: Basic Books, 2002. 16 Ibid., p. XI. 17 Ibid., p. XV. 18 Ibid.

8 também não terá sentido qualquer discurso sobre um Deus igualmente subsistente e imortal. O autor parte do princípio que a única forma de defender a imortalidade do ser humano consiste em acreditar que existe nele uma alma, e que esta alma é subsistente e imortal. Mas será este pressuposto necessário para se falar da imortalidade do ser humano? Poder-se-á conceber a imortalidade em termos relacionais? 5. O ser humano como relação A concepção substancial do ser humano era sem dúvida, e ainda é, o pressuposto tradicional da filosofia e da teologia cristãs, que continuam a ter um discurso cuja linguagem pertence a um paradigma o paradigma aristotélico-tomista - que em muitos aspectos se afigura cada vez mais inadequado para a compreensão de quem somos nós. Embora sem negar a importância relacional do ser humano, este paradigma baseia-se na categoria de substância como sua trave mestra. Creio porém que num paradigma mais actual, o conceito de relação é muito mais adequado para exprimir aquilo que existe de fundamental no ser humano e que desejaríamos fosse eterno, - a relação com os outros vivida como amor. S. Tomás considera que embora em Deus se deva afirmar que existem relações subsistentes entre as três pessoas divinas, dado que essas relações não poderiam ser consideradas acidentais, no ser humano, pelo contrário, não há relações subsistentes. Mas não poderemos abandonar o dualismo substância/acidente, e considerar que aquilo que nos dá alma, que nos dá vida, é a nossa experiência de relação interpessoal? Para os que acreditam que Deus estabelece uma relação pessoal com cada ser humano, porque não considerar que essa relação é subsistente, isto é, eterna, sem que para isso tenhamos que recorrer necessariamente ao conceito de substância? É evidente que esta nova perspectiva paradigmática onto-epistemológica parte de um pressuposto antropológico muito diferente daquele que nos foi legado não apenas pela tradição aristotélico-tomista mas também pela modernidade. Em ambas as tradições, o ser humano é definido fundamentalmente pela sua estrutura ontológica e pelas suas competências epistemológicas e práticas, isto é, mais como indivíduo autónomo e racional do que como ser de relação. O tema do ser humano como ser-em-relação foi desenvolvido no século XX particularmente pelas correntes existencialistas e fenomenológicas. 19 Mas agora essa abordagem já não é realizada apenas no contexto do pensar filosófico como um domínio separado da ciência. Trata-se de uma abordagem que é hoje realizada no interior das próprias ciências cognitivas. Um novo paradigma emerge. Com efeito, recentes publicações sobre a empatia e a chamada perspectiva da segunda pessoa 20 (distinta quer da perspectiva da primeira pessoa, a da introspecção, quer da perspectiva da terceira pessoa, a científica) têm posto em evidência a importância central da relacionalidade como constituinte do ser humano. O que muda então se se definir o ser humano mais como ser-em-relação, isto é, como ser constituído por relações inter-subjectivas, do que como substância individual? Antes de mais, muda o conceito de corpo, o qual não pode ser considerado apenas na 19 Referi-me com algum desenvolvimento a este tema no ensaio Ética e identidade pessoal na perspectiva das ciências cognitivas in Brotéria 156: 2 (2003) 119-140. 20 Evan Thompson, Between Ourselves. Second-Person Issues in the Study of Consciousness, Thorverton: Imprint Academic, 2001.

9 sua dimensão biológica como se de uma simples substância individual se tratasse. Seria regressar a uma ontologia substancialista que se pretende superar. A dimensão relacional do corpo humano e de todas as suas capacidades, nomeadamente as de natureza neurobiológica, é que permite superar o simples ponto de vista individual e ver o ser humano como pessoa. Nesta perspectiva, domínios como a filosofia, a ética e a religião aparecem não pouco transformados, mas não no sentido proposto pelas ciências cognitivas que são, também elas, substancialistas, já que se baseiam num substancialismo de tipo neurobiológico. Muda também o conceito de alma e o correspondente conceito de imortalidade. Em diálogo com as ciências cognitivas, Warren Brown considera que a alma sendo uma dimensão da experiência humana, emerge da relacionalidade pessoal. 21 Além disso, a capacidade de relacionalidade pessoal pode, por seu lado, ser vista como uma propriedade emergente de determinadas competências cognitivas críticas. 22 Considerar a alma como propriedade emergente não significa necessariamente considerá-la como uma substância espiritual, nem sequer como um princípio substancial do corpo, à maneira de S. Tomás. Isso seria regressar aos dualismos onto-epistemológicos que se pretende hoje superar. É na relação com Deus que o autor vê a possibilidade de falar na imortalidade da alma, e não num seu espiritual de natureza substancial: Enquanto que a cognição contribui para (a emergência de) a alma, é, em última análise, o acto relacional de Deus que cria a alma em cada ser humano. 23 Não deixa de ser curioso constatar que esta perspectiva não é inteiramente nova nem específica do diálogo com as ciências cognitivas. Ela encontra-se, por exemplo, em textos mais alinhados com a tradição filosófico-teológica da Igreja Católica. Joseph Ratzinger, por exemplo, considera que ter alma espiritual significa exactamente ser objecto de um bem-querer especial, de um especial conhecimento e amor de Deus; ter uma alma espiritual denota: ser um ente chamado por Deus para o diálogo eterno e, por isso, estar em condições de conhecer Deus e de responder-lhe. 24 Por conseguinte, a imortalidade concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade daquilo que, por si mesmo, é indestrutível, mas da participação no diálogo com o Criador... Trata-se de uma imortalidade dialógica. 25 É verdade que Ratzinger não recusa a perspectiva substancialista, mas não deixa de ser significativa a análise que o autor faz da alma e da sua imortalidade em termos relacionais no contexto da historicidade do ser humano, uma perspectiva que para ele parece ser complementar da primeira. 6. As ciências cognitivas contra o ser humano? Depois de tudo o que ficou dito, parece lícito perguntar: estarão as ciências cognitivas contra o ser humano, desenhando um futuro em que a sua dignidade acabará por desaparecer completamente? Patricia Churchland não o crê. Pelo contrário, acredita que estas ciências nos ajudarão a compreender o mesmo ser humano de uma forma mais objectiva e profunda. Os que supõem que a ciência e o humanismo devem estar necessariamente em conflito, afirma a 21 Warren Brown, Cognitive contributions to soul, in Warren Brown et al., Whatever Happened to the Soul? Scientificand Theological Portraits of Human Nature, Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 101. 22 Ibid., p. 102. 23 Ibid., p. 125. Inseri na citação a expressão entre parêntesis. 24 Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, S. Paulo: Herder, 1970, pp. 306-307. 25 Ibid., pp. 302-303.