Do clientelismo à participação: o Orçamento Participativo em Montes Claros *



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Transcrição:

Do clientelismo à participação: o Orçamento Participativo em Montes Claros * Thiago Augusto Veloso Meira ** Resumo: O presente artigo pretende discutir a proposta de orçamento participativo do Município de Montes Claros - MG, buscando analisar se a referente proposta (orçamento participativo) é condizente com os princípios básicos definidos por Avritzer, Boaventura de Souza Santos e demais autores que discutem o tema. Logo, também será avaliado o nível de participação da população nas plenárias populares. Palavra-chave: Democracia, Participação, Política Abstract: The present article intends to discuss the proposal of participatory budgeting of Montes Claros - MG, trying to analyze if the referring proposal (participatory budgeting) satisfies the definition of Avritzer and Santos and other authors who discuss the theme. In addition to this, the level of participation of the population will also be evaluated in the popular plenaries. Key words: Democracy, Participation, Political 1. Introdução Historicamente a concepção de democracia participativa advém da democracia de Atenas (Grécia) do século V e VI a.c, sendo referência às vertentes de democracia de pensadores como Rousseau e Stuart Mill. Todavia, somente a partir da década de 70, com ampla militância de movimentos sociais, a teoria da democracia consegue se fortalecer nas discussões acadêmicas. A democracia participativa ganha terreno com a expansão da democracia liberal, que se estende diante do fracasso dos regimes totalitários, surgindo como melhor opção ao autoritarismo. Em seu cerne, início do século XX a democracia toma forma procedimentalista, ou seja, passa a ser um instrumento para o bom funcionamento do estado, assumindo assim um caráter utilitarista. Por outro lado, sua vertente participativa era vista como estigma, alusão ao regime fascista. Outros autores (Schumpeter apud Santos e Avriter, 2003) consideravam que a ampliação da participação acarretaria uma menor eficiência da administração do estado. Schumpeter citado por Santos e Avritzer (2003) afirma que a democracia não se vincula a qualquer ideal ou fim, e sim ao método. Esse método tem como única função a escolha da população de seus governantes. Esse processo acaba sendo uma mera competição por eleitores, comparada a competição de mercado das empresas por seus clientes. Dessa forma, o processo eleitoral não é um meio para atingir a democracia, mas sim a própria democracia. O processo democrático sofreu restrições no que se refere à participação cidadã. Vários motivos contribuíram para que houvesse uma grande restrição á participação popular, dentre * O presente artigo surgiu do projeto democracia participativa, gestão participativa: Governança Solidária em Montes Claros (FAPEMIG/UNIMONTES) sob orientação do Professor Clóvis Zimmermann. A pesquisa iniciada em setembro de 2006 e ainda se encontra em andamento, sendo assim, os dados aqui apresentados correspondem a resultados parciais do referido projeto. * Graduando em Ciências Sociais; 6º Período, Universidade Estadual de Montes Claros/ 2007.

eles, destaca-se o medo da tirania da maioria, uma preocupação clássica de Tocqueville (1835) em seu estudo sobre a Democracia na América. Outro aspecto da restrição da democracia destacado por estudiosos é o aumento da complexidade e a diferenciação funcional das sociedades modernas, motivadas pelo crescimento das planificações. Em virtude disso haveria a necessidade de um maior rigor técnico, aliado com uma diminuição da participação popular. Bobbio demonstra com clareza as conseqüências das mudanças na sociedade: À medida que as sociedades passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado, de uma economia de mercado para uma economia protegida, regulada e planificada, aumentaram os problemas políticos que requerem competências técnicas. Os problemas técnicos exigem, por sua vez, expertos, especialistas [...] Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão comum (Bobbio, 1986, p.33-34). O processo descrito por Bobbio (1986) ficou conhecido como uma concepção hegemônica ou liberal da democracia, um ideal de democracia defendido por autores como Dahl (1997), Bobbio (2000), Sartori (1994), dentre outros. Essa concepção é amparada em uma percepção conservadora, visto que, segundo seus teóricos a única função da democracia seria contribuir para formação do governo. Sartori (1994) defende essa concepção minimalista de participação, em que ressalta que o povo em modelos de maior participação poderia ser atraído por ideologias extremistas, ameaçando a estabilidade mediante a construção de governos totalitários. Conforme os defensores dessa vertente, a democracia era mais compatível com a apatia do que a participação, vinculando a participação mais ao totalitarismo do que com democracia. Autores críticos dessa teoria como Pateman (1992), afirmam que a vertente liberal desconsidera alguns problemas causados pela apatia, tais como sentimento de ineficácia política e baixo status socioeconômico. Em contradição à concepção hegemônica ou liberal, insurgi diversas discussões, autores como Habermas (2003) e Pateman (1992) ressaltam a necessidade de se instituir modelos alternativos que possibilitem a ampliação da participação, ou seja, de uma democracia participativa. A discussão sobre modelos alternativos de democracia surgiu em função da incompatibilidade causada pelo modelo liberal. Dentre os problemas de destaque observa-se a falta de soberania do cidadão, conseqüência do sistema atual de representação. A partir dos anos 70, passou-se a discutir a qualidade da democracia, especialmente pela limitação da democracia representativa. O modelo representativo tem se mostrado restrito ao tentar garantir os interesses políticos, presentes no cenário de pluralidade social da sociedade brasileira. Assim a representação política introjeta no cidadão, um sentimento de inoperância, levando-o a sentir-se cada vez menos representado, o que tem como conseqüência a apatia e ou descrédito político. Outra questão de importante relevância é que o aumento da diversidade social cria problemas, pois os grupos minoritários não conseguem alcançar a representação de seus interesses frente à maioria, ficando assim excluídos do processo político. Semelhante problema estrutural coloca em xeque a democracia liberal, principalmente em países em que há uma maior diversidade étnica, cultural e social. Esses grupos que lutam ou tem dificuldade em ter seus direitos reconhecidos entram em conflito com os interesses da elite econômica dominante. Devido a essas impugnações surgiram concepções alternativas defendidas por autores como Habermas (2003), Santos (2003), Avritzer (2002), Pateman (1992), entre outros. Tais autores reconhecem a pluralidade humana, dando notoriedade a uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com inovação institucional, isso é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia (Santos, 2003, p. 51). 105

O modelo hegemônico estaria perdendo credibilidade, uma vez que o procedimentalismo que atribui à democracia apenas a instituição de método de escolha do governo, acaba tendo seu horizonte ampliado, construindo segundo Santos e Avritzer (2003) uma nova gramática social, configurando uma conjugação entre as ações sociais do estado e sociedade, de forma que, os movimentos sociais e a sociedade civil ocupam grande papel nessa mudança de paradigmas, criando espaços para atuação de diversos atores sociais. Do ponto de vista teórico de Habermas (2003), esse modelo de democracia se estrutura como um procedimentalismo social, ou seja, uma prática social e não como método de constituição de governos. Logo, o que se observa é a existência de vários argumentos que justificam a ampliação da participação. Santos e Avritzer (2003) ressaltam que esse mecanismo aumenta a democratização da gestão pública, uma vez que, temas antes não prestigiados por gestores agora ganham relevância no processo de participação popular. A operacionalização dessa concepção não-hegemônica ou participativa da democracia levou alguns paises em especial os da América latina, a adotarem propostas alternativas de participação popular, tais como o orçamento participativo. 1.1 Orçamento participativo O Brasil, assim como outros países da América latina passaram pelo processo de democratização em meados da década de 80 e 90. A democratização foi uma reivindicação dos movimentos populares, com objetivo de buscar um maior poder de deliberação e participação nas tomadas de decisões em nível local, o exemplo mais bem sucedido efetivouse na cidade de Porto Alegre. Nessa cidade, o Partido dos Trabalhadores (PT) 1 apresentou uma proposta alternativa de participação popular nas discussões anuais sobre os investimentos da cidade, processo esse denominado de orçamento participativo. O orçamento participativo surgiu frente à limitação da democracia representativa no país. Regime que continua mostrando sua incapacidade de impedir a segregação espacial. Além disso, outra limitação da democracia representativa é a exclusão das camadas populares do processo decisório das políticas públicas. Avritzer (2003) define orçamento participativo como uma forma de rebalancear a articulação entre a democracia representativa e direta, baseado em critérios universais de participação, que deverão vigorar mediante assembléias regionais e temáticas. O autor ainda destaca que tais regras de deliberação devem ser regulamentadas pelos próprios participantes, envolvendo também critérios redistributivos capazes de reverter as desigualdades preexistentes na distribuição de recursos públicos. A experiência em gestão participativa em Porto Alegre levou outros municípios a adotarem políticas participativas em todo o Brasil. Segundo Ribeiro & Grazia (2003) contamos recentemente com cerca 170 municípios em que há o funcionamento de programas de gestão orçamentária participativa. Cidades como Recife investiram em plenárias de rua e no OP criança. Em São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, houve investimento no ciclo do OP temático (que discutia, além das obras e serviços do ciclo do OP territorial, diretrizes gerais de governo) e na descentralização do conselho do orçamento participativo, articulado às subprefeituras, Além dessas cidades outros também aderiram ao orçamento participativo, 1 O orçamento participativo surge na administração de Porto Alegre (1989-2002), ligado ao partido dos trabalhadores. Apesar do PT resguardar seu pioneirismo, esse não detêm sua exclusividade, conforme dados da pesquisa nacional experiências de orçamento participativo no Brasil entre 1997-2000, apesar do PT representar 50% das experiências, levando em conta os partidos dos vice-prefeitos quase totalidade dos partidos políticos brasileiros já aderiram ao orçamento participativo. 106

como Ipatinga, Angra dos Reis, vitória, Campina Grande, Santo André, Niterói, Betim, etc (RIBEIRO & GRAZIA, 2003). O teor das experiências denominadas de orçamento participativo depende dos projetos partidários que orientam os governos locais nas características: do nível de organização, mobilização e politização da sociedade civil; o contexto socioeconômico e o volume populacional das localidades envolvidas; do nível técnico e da complexidade da máquina administrativa; do grau de envolvimento do governo; dos recursos arrecadados pelo município; da metodologia aplicada e da relação da administração como a Câmara dos Vereadores (RIBEIRO & GRAZIA, 2003). A inovação trazida pelo orçamento participativo também é portadora de expectativas como a superação de práticas tradicionais das Câmaras de Vereadores, especialmente aquelas que reproduzem a dependência do eleitor com relação ao candidato, para alcançar determinado benefício ou interesse. Práticas conhecidas como troca de favores, clientelismo, distribuição de manilhas são as mais corriqueiras. Segundo estudiosos da participação política, ações como o clientelismo poderiam perder força com a introdução dos processos de desenvolvimento e alargamento da participação popular. Em Montes Claros, o governo municipal apresentou a proposta de Governança Solidária, com o objetivo de promover um ambiente de favorecimento à democracia participativa, atuando entre todos os setores da sociedade, consolidando o cidadão capacitado e possibilitado a deliberar sobre os recursos públicos, daí se constituindo como um cidadão gestor. Esse projeto tem como objetivo potencializar a cultura da solidariedade e cooperação entre governo e sociedade local. Processo que visa desenvolver o dialogo e cooperação, entre todos os setores da cidade, estimulando construção parcerias entre setor públicos e privados. Assim o grande protagonista das mudanças e transformações sociais é o cidadão, e não mais unicamente o estado, dessa forma a responsabilidade passa a ser compartilhada entre sociedade civil e o poder público. Um dos alicerces da proposta de governança solidária é o orçamento participativo, projeto da administração municipal de Montes Claros, que tem como objetivo fazer com que toda a população, participe diretamente da discussão e definição do destino do orçamento público municipal. 1.2 Orçamento participativo em Montes Claros Para análise do orçamento participativo do município de Montes Claros foi utilizado como metodologia a observação participante e análise documental. As principais fontes foram, cartilhas e folhetos entregues pela prefeitura, sítios específicos, e fundamentalmente obras de autores que discutem orçamento participativo e ou participação política. Projeto do Governo Municipal, denominado Governança Solidária foi lançada por uma coligação de esquerda (PPS-PT) tendo a frente o prefeito Athos Avelino Pereira (2005-2008). Os objetivos deste projeto é uma ampliação da participação das diversas instâncias da sociedade, visando mudanças na estrutura política e social do município. O projeto apresenta algumas questões referentes aos objetivos estratégicos do governança solidária, pontos como: Política de participação; Estrutura administrativa do governo municipal descentralizada, articulada e participativa; 107

Capacidade técnica e operacional do funcionalismo público: formação de gestores públicos; Sistema de informação gerencial integrado e dinâmico; Sistema de planejamento, monitoramento e avaliação das ações públicas; Desenvolvimento Estratégico: fortalecimento de Montes Claros como pólo regional econômico, de serviços e cultura. Entrelaçado à política de participação do Governança Solidária, o orçamento participativo é instituído como principal instrumento de participação popular, trazendo para população a esperança de uma distribuição mais eqüitativa de recursos e bens públicos. Santos e Avritzer (2003) definem cinco características primordiais para o orçamento participativo: Primeiro a participação aberta a todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização, inclusive comunitárias; ou seja, o cidadão comum sem qualquer vínculo comunitário teria os mesmo direitos do que os filiados a associações. Segundo Avritzer (2003), no orçamento participativo de cidades como Recife durante a gestão de Jarbas Vasconcelos, somente poderiam se candidatar e escolher os delegados aqueles filiados a alguma associação cadastrada na prefeitura, isso acabava por excluir o cidadão comum, sem nenhuma filiação associativa. Em Montes Claros, o princípio definido pelos dois autores encontra-se em vigor, já que qualquer cidadão comum pode se candidatar a delegado e concomitantemente votar sem qualquer restrição. Em seguida, outro princípio seria a combinação da democracia direta e representativa, cujo desenho institucional é discutido por diversos atores. Na gestão participativa é importante que os próprios participantes definam as regras do jogo. No caso de Montes Claros isso não aconteceu concretamente, já que o orçamento participativo foi apresentado à população prontamente, deixando esta fora da construção da proposta. Em terceiro, a alocação dos recursos para compatibilização das decisões e regras estabelecidas pelos participantes, ou seja, a existência de uma fonte de recursos para o orçamento participativo. E também a definição de um aparelho institucional no qual seria responsável pela destinação direta de recursos financeiros para implementação das demandas definidas pelo OP. É possível observar que, em Montes Claros, diferente de cidades como Porto Alegre, não foi definido uma fonte de recursos, o que torna o processo do ponto de vista da população inseguro e às vezes ilusório. Outra característica seria, um principio distributivo capaz de reverter as desigualdades preexistentes em relação à distribuição de bens públicos. Acerca dos processos redistributivos, segundo Marquetti citado por Avritzer e Santos (2003) os atores sociais são capazes de deliberar a favor, de corrigir lacunas distributivas na sociedade. Argumenta ainda que esses atores são capazes de definir rankings de prioridades e até mesmo agir de forma a privilegiar os mais abastados em detrimento de outros grupos. Em Montes Claros esse princípio redistributivo não foi determinado como prerrogativa essencial na definição de prioridades, no entanto os critérios de eleição de prioridades foram definidos pelos próprios participantes do conselho do orçamento participativo. Por fim, os autores ressaltam a necessidade de implantação de um conselho capaz de deliberar sobre o orçamento e de negociar prioridades com a prefeitura local, em Montes Claros esse Conselho do Orçamento Participativo COP já foi constituído e encontra-se atualmente em 108

fase de efetiva implantação, resta então avaliar mais posteriormente se esse irá dispor concretamente dos mecanismos deliberativos. Além das características mencionadas anteriormente que são primordiais ao orçamento participativo, outros fatores positivos são também lembrados em Montes Claros, como a melhoria no desempenho da administração pública. nota-se que com o orçamento participativo a administração conseguiu meios de se organizar. A partir do OP a prefeitura conseguiu diagnosticar as principais demandas regionais do município, tornando-se este um grande instrumento de gestão. Portanto, o Estado tem agora maior capacidade de melhorar o seu desempenho em áreas críticas. Logo, Marquetti citado por Avritzer (2003) destaca que com o maior empoderamento e mobilização da população em canais de participação é possível constatar o aumento da capacidade de recursos públicos investidos em ofertas de serviços. Em Porto Alegre segundo o autor, a capacidade de investimento passou de 8,4% para 18,6%, aumentando ofertas de serviços como, coleta de lixo, número de pontos de iluminação, metros de asfalto, entre outros. Dessa forma, configura-se uma melhor distribuição de recursos públicos, agora investidos em oferta de serviços para a população. Em Montes Claros, os serviços e investimentos feitos pela administração no município têm seguido o quadro de prioridades definidas no orçamento participativo. Por meio de dados levantados junto à prefeitura foi possível diagnosticar uma ampla participação. A tabela 1 nos permite inferir uma significativa participação da população nas plenárias do orçamento participativo. Permite também, desmistificar concepções hegemônicas de participação que consideram que a população mais carente economicamente, não se interessa por participar da política. Esse argumento é colocado em xeque, pois, ao se observar que uma região considerada vulnerável como pólo Santos Reis apresenta níveis de participação (1.953 participantes) muito superiores à regiões de nível socioeconômico mais elevado, como pólo Centro (193 participantes). Tabela 1 POLOS I CICLO II CICLO Centro 182 193 Cintra 225 532 Delfino Magalhães 338 372 Independência 455 760 JK 253 342 Maracanã 432 672 Major Prates 304 377 Renascença 382 343 Rural 523 412 Santos Reis 793 1.953 São João 252 280 São Judas 213 276 Vila Oliveira 262 227 Total 4.614 6.739 Fonte: Prefeitura Municipal de Montes Claros (2007) 109

Além da ampla participação popular, outros fatores apontam para o sucesso das experiências de gestão participativa, entre eles a vontade política da administração e fatores financeiros. A vontade política é imprescindível, principalmente em regiões de fraca cultura participativa. Esse empenho em implementar políticas participativas pode ser caracterizado segundo Avritzer (2003) pela presença de membros da administração municipal nas reuniões do orçamento participativo e no compromisso com as reivindicações ou prioridades eleitas pelos delegados. No caso do município em questão, nesse estágio inicial do processo, é perceptível um grande compromisso da administração com o programa, haja vista, a participação do prefeito e secretários da administração nas plenárias populares. No entanto, é importante mencionar que segundo Avelar (s.d), apesar da importância da vontade política para o sucesso do orçamento participativo, para a autora mesmo sendo a vontade política de caráter oposicionista, deve ocorre dentro de limites e regras que foram instituídos pelo sistema dominante, sendo assim todas as ações que extrapolam as regras dominantes, confrontando-as devem ser levados a outros categorias, como movimentos sociais. O fator financeiro, um dos fatores determinantes para o orçamento participativo está muito ligado à arrecadação municipal. Em alguns casos, como cita Marquetti (apud Avritzer 2003) é verificado um aumento da capacidade de arrecadação após a implementação de modelos participativos, seja através de capitação de recursos do Estado ou internacional, seja por meio do aumento da arrecadação tributária. Dessa forma o orçamento participativo em Montes Claros traz grandes expectativas como uma maior arrecadação tributária, pois, conforme destaca a prefeitura, o nível de arrecadação municipal e muito baixo se comparado à proporção populacional. Conclusão Parece bastante evidente ao estudar o Orçamento Participativo (OP), que a maioria dos autores que o discute entendem o OP como uma articulação entre, representação e participação. Santos (2003) afirma que OP seria uma combinação entre democracia representativa e direta. Ainda, seria essa combinação uma constituição de um quarto poder, ou seja, a democracia não pressupõe mais a idéia de modelos competitivos, e sim, a conjugação entre diversos sujeitos sociais. Logo, esse modelo ainda traz a esperança de uma melhor distribuição de recursos e conseqüentemente uma justiça social redistributiva, o que permite uma inclusão política e social a todos os setores da população, principalmente aqueles mais vulneráveis. Referências AVRITZER, Leonardo & NAVARRO, Zander (org.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia; ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo: Perspectivas; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. BOBBIO, N. O futuro da democracia. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: EDUSP Editora da Universidade de São Paulo, 1997. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. 2. ed. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1992. 110

RIBEIRO, Ana Clara Torres & GRAZIA, de Grazia. Experiência de orçamento participativo no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 2003. SANTOS, Boaventura & AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura (Org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 39-82. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo : Ática, 1994. 111