UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LUCAS NÁPOLI DOS SANTOS



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Transcrição:

0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LUCAS NÁPOLI DOS SANTOS PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina RIO DE JANEIRO 2012

1 Lucas Nápoli dos Santos PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Orientador: Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho Rio de Janeiro 2012

2 S237 Santos, Lucas Napoli dos. Para que servem as doenças? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina / Lucas Nápoli dos Santos. Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. 208 f.; 30cm. Orientador: André Martins Vilar de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. Inclui Bibliografia 1. Georg Groddeck. 2. Doença. 3. Filosofia Médica. 4. Biomedicina. I. Carvalho, André Martins Vilar de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde. Coletiva. III. Título. CDD 616.8915

3 Lucas Nápoli dos Santos PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Aprovada em. Banca examinadora Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho (IESC/UFRJ) Prof. Dr. Carlos Augusto Peixoto Jr. (PUC-RJ) Prof. Dr. Carlos Alberto Plastino (IMS/UERJ)

4 A Rosângela

5 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Quem designou a si mesmo como o Caminho, a Verdade e a Vida, por cuja graça pude me dedicar à escrita deste trabalho com a consciência de que Nele nos movemos, existimos e respiramos. À Rosângela Sousa Farias Nápoli, minha eterna namorada e hoje esposa que com palavras, atos e muito amor me ajudou a não desfalecer na caminhada árdua desses dois anos de mestrado, fortalecendo e aumentando minha potência de agir sobretudo quando as circunstâncias insistiam em refreá-la. Ao professor André Martins pelas oportunidades, pela gentileza, pelo companheirismo, pela simpatia e bom-humor, pela paciência, pela orientação e supervisão suficientemente boas e pelas observações e correções criteriosas na redação deste trabalho. À professora Diana Maul de Carvalho pelos alertas e contribuições importantes no exame de qualificação. Aos professores Carlos Alberto Plastino e Carlos Augusto Peixoto Jr., por terem aceitado o convite para fazerem parte da banca examinadora, o que me deixou muito honrado. À minha colega de mestrado Jaqueline Vitoriano, parceira competente no estágio em docência, que foi importante em minha trajetória ao longo do mestrado, sendo muitas vezes minha única interlocutora, compartilhando comigo a condição de forasteiro. Aos professores do IESC/UFRJ e do IMS/UFRJ pelas aulas inspiradoras que ora direta ora indiretamente exerceram influência na condução deste trabalho. Agradeço ainda a meu amigo Igor Madeira pela amizade sincera e fiel e pelas divertidas e, por vezes, angustiadas conversas sobre as dificuldades e alegrias da vida de mestrando.

6 A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. (G. K. Chesterton, in Ortodoxia )

7 RESUMO SANTOS, Lucas Nápoli dos. Para que servem as doenças? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Este trabalho apresenta algumas contribuições extraídas da obra do médico e psicanalista Georg Groddeck (1866-1934) que se mostram frutíferas para o enfrentamento dos impasses e limitações vivenciados atualmente no campo do cuidado em saúde em função da hegemonia da racionalidade biomédica. A biomedicina ergueu-se sob os fundamentos da racionalidade científica moderna e de seus reducionismos, fornecendo uma visão negativista da doença, como um inimigo a ser extirpado a qualquer custo. Além disso, a biomedicina tende a reduzir a patologia a um evento de ordem puramente orgânica, negligenciando, sobretudo, os aspectos subjetivos presentes em todo adoecimento. Essa exclusão da subjetividade é reforçada pela separação entre corpo e psiquismo presente de modo implícito no modelo biomédico. Esses e outros aspectos da racionalidade biomédica configuram impasses tanto na eficácia da assistência à saúde quanto na satisfação de muitos usuários. Através de um estudo de natureza teórico-conceitual sobre a obra de Georg Groddeck, verificou-se que esse autor propõe uma concepção de adoecimento radicalmente distinta da biomédica. Para Groddeck, toda enfermidade está radicalmente inserida na história subjetiva do indivíduo. A doença surgiria a fim de exercer uma função na vida do paciente. Logo, não se deveria buscar sua imediata eliminação, mas antes compreendê-la com o objetivo de desvendar seu sentido. Desse ponto de vista, a separação entre corpo e psiquismo é, portanto, dissolvida. Para Groddeck, embora uma doença possa se manifestar através de lesões orgânicas, a subjetividade se faz sempre presente, bastando que o profissional de saúde tenha olhos para ver. Ao final do trabalho faz-se uma articulação entre essas propostas extraídas da obra de Groddeck e enunciados eminentemente filosóficos de Georges Canguilhem e Baruch de Spinoza com o intuito de esboçar quais seriam os fundamentos conceituais de um novo modelo de

8 cuidado em saúde. Verifica-se que Spinoza, ao postular uma concepção de natureza como substância única, fornece um pano de fundo fecundo para a sustentação da tese groddeckiana da doença como manifestação da vida e não como inimigo. Canguilhem, com seu conceito de normatividade biológica, corrobora a proposição de Groddeck segundo a qual a natureza é dotada de um potencial inerente de cura e recuperação. Conclui-se que, conquanto Groddeck seja um autor cujos escritos datam do final do século XIX e início do século XX, suas concepções sobre saúde, doença e cura se mostram surpreendentemente atuais, indicando propostas bastante férteis para a formulação de um novo modelo de cuidado em saúde, capaz de suplantar os reducionismos, impasses e limitações da biomedicina. Palavras-chave: Georg Groddeck; Doença; Filosofia Médica; Biomedicina

9 ABSTRACT SANTOS, Lucas Nápoli dos. Para que servem as doenças? : Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. This study presents some contributions drawn from the work of the physician and psychoanalyst Georg Groddeck (1866-1934). These contributions prove fruitful to face the dilemmas and constraints currently experienced in the field of health care due to the hegemony of the biomedical rationality. Biomedicine rose on the foundations of modern scientific rationality and its reductionism, providing a negativistic view of disease as an enemy to be extirpated at any cost. Moreover, biomedicine tends to reduce the disease to an event purely organic, neglecting, above all, the subjective aspects present in all illness. This exclusion of subjectivity is reinforced by the separation between body and psyche implicitly present in the biomedical model. These and other aspects of biomedical rationality configure constraints both in the effectiveness of health care and the satisfaction of many users. Through a theoretical and conceptual study of the work of Georg Groddeck, it was found that this author proposes a conception of disease radically different of the biomedical conception. For Groddeck, all illness is radically inserted in the subjective history of the individual. The disease appears to play a role in the life of the patient. Therefore, one should not seek his immediate disposal, but understand it in order to unravel its meaning. From this point of view, the separation between body and psyche is therefore dissolved. For Groddeck, although a disease can manifest as organ damage, subjectivity is always present, just that the health professional has eyes to see. At the end of the work makes up a relationship between these proposals drawn from the work of Groddeck and eminently philosophical statements of Georges Canguilhem and Baruch Spinoza in order to outline what are the conceptual foundations of a new model of health care. It appears that Spinoza, in postulating a conception of nature as a single substance, provides a fertile background for the support of the thesis groddeckiana disease as a manifestation of life and not as an

10 enemy. Canguilhem, with his concept of biological normativity, supports Groddeck s proposition according to which nature is endowed with an inherent potential of healing and recovery. It is concluded that although Groddeck is an author whose writings date from the late nineteenth and early twentieth century, his views on health, disease and cure prove surprisingly current, indicating very fertile proposals for the formulation of a new model of care health, able to overcome the reductionism, dilemmas and limitations of biomedicine. Keywords: Georg Groddeck, Disease, Medical Philosophy, Biomedicine

11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 12 1 O MODELO BIOMÉDICO E SEUS IMPASSES... 21 1.1 Preâmbulo... 21 1.2 Das relações entre o pensar e o agir... 23 1.3 O solo conceitual da biomedicina: racionalidade científica moderna e suas ideologias... 24 1.4 As espécies e o corpo: aspectos do processo de emergência do modelo biomédico... 37 1.5 Retorno do recalcado... 57 2 GEORG GRODDECK: UMA APRESENTAÇÃO... 63 2.1 O esquecimento da obra groddeckiana... 63 2.2 Raízes biográficas do pensamento de Georg Groddeck... 66 2.3 A influência de Ernst Schweninger... 72 2.4 O encontro com a psicanálise... 76 2.5 A doença como criação simbólica... 81 2.6 Para-além das fronteiras do eu: o conceito de Isso... 87 3. PROPOSTAS GRODDECKIANAS PARA A SUPERAÇÃO DE IMPASSES DA BIOMEDICINA... 98 3.1 O objeto do tratamento é o doente e não a doença... 98 3.2. Diagnóstico do ser humano e não apenas do corpo... 104 3.3 Compreensão e não combate à doença... 113 3.4 A transferência na relação médico-paciente... 124 3.5 Dualismo biomédico e monismo groddeckiano... 131 3.6 Inserção da doença na história subjetiva do doente... 139 4. POR UM NOVO MODELO DE CUIDADO EM SAÚDE: ARTICULANDO AS CONTRIBUIÇÕES DE GRODDECK A ASPECTOS FILOSÓFICO-CONCEITUAIS... 148

12 4.1 Retomando o problema central: a concepção de natureza... 149 4.2 Ego, Isso, cultura, natureza... 152 4.3 Spinoza, a natureza como substância única e o conatus... 154 4.4 Canguilhem e a normatividade biológica... 167 4.5 Isso, normatividade biológica e conatus... 173 CONCLUSÃO... 178 REFERÊNCIAS... 186 ANEXOS... 190

13 INTRODUÇÃO A palavra crise tem se feito presente com uma frequência cada vez maior na contemporaneidade. É comum ouvirmos no meio acadêmico e na mídia falar-se acerca de crise ética, crise da ciência, crise financeira etc. Esse aparente diagnóstico de crises nas mais diversas instâncias sociais pode ser tomado como o reflexo de um momento específico atravessado pela civilização ocidental e que parece ser marcado pela idéia de que está em curso uma transformação de grandes proporções. Nesse contexto, o afeto predominante parece ser a angústia, traço de uma sensação de insegurança advinda do fato de que o tecido simbólico no qual caminhamos se mostra movediço, inconstante, cambiante. As certezas do passado, que garantiam certa estabilidade e serviam como balizas relativamente seguras para a orientação da existência agora se mostram caducas, frágeis e amiúde inúteis para as novas situações que se apresentam. Quanto ao futuro, esse se mostra tal como é de fato: como pura imprevisibilidade, distinto do futuro projetado da modernidade, pré-determinado e que supostamente realizaria os sonhos planejados no passado. Nesse cenário, crise parece efetivamente ser a palavra que melhor define o processo de metamorfose que nossa sociedade experimenta. Trata-se, como a etimologia grega da palavra evidencia, de um momento difícil, de decisão e que, portanto, cria a necessidade do ato que corta, cinde, separa e, ao mesmo tempo, cria uma realidade nova. Para nossos propósitos, convém lembrar que crise é palavra cara ao vocabulário médico, designando os momentos de virada no curso de uma doença. Há crises que são signos de uma mudança rumo à melhora, como também há crises que indicam a passagem para um estado pior. Trata-se sempre, todavia, de um ponto de desequilíbrio na evolução de um paciente que sinaliza a irrupção de um novo período de estabilização eis a crise na medicina. Não obstante, a literatura mais recente do campo do cuidado em saúde tem registrado cada vez mais a palavra crise não apenas como conceito médico, mas como caracterizadora do momento pelo qual passa a medicina na atualidade. Nesse

14 caso, fala-se de uma crise da medicina. Como as demais instâncias sociais, o cuidado em saúde também estaria atravessando um período de crise e, em decorrência, de mudança, de transformação e, principalmente, de impasses. Com efeito, o que provoca o advento de uma crise é precisamente o impasse gerado pela desarmonia existente na relação entre as demandas da situação presente e os recursos existentes para fazer frente a tais demandas. O período de estabilidade é marcado justamente pela relativa complementaridade existente nessa relação. A crise manifesta o descompasso entre o velho e o novo, entre os antigos modelos ou modos de operar e as novas realidades que se apresentam. Esse descompasso, ao se fazer presente, revela o engodo de uma concepção desenvolvimentista das relações entre o homem e a realidade, que sustenta que o pensamento humano evolui de modo contínuo de acordo com as demandas da realidade. É desse ideário que brota a ilusão de que a ciência atual é mais evoluída do que a de outros tempos. As crises mostram justamente que não há tal continuidade no percurso histórico da humanidade, que esse percurso é guiado não por um suposto espelho da realidade (razão universal), mas por racionalidades, por modos de ver, de pensar e de conceber essa realidade, de sorte que sempre haverá um descompasso mínimo entre o homem e o real, o qual será menor ou maior dependendo do quão empáticas com a realidade forem as racionalidades vigentes. Os momentos de crise são justamente os períodos em que esse descompasso se exacerba. Quando a literatura do cuidado em saúde fala de uma crise da medicina ou crise da saúde o que está em jogo é precisamente o impasse entre os recursos teórico-metodológicos que se tem e aquilo que se quer ou se deve fazer considerando a complexidade do real. O que se tem é o que a maioria dos pesquisadores chama atualmente de biomedicina ou modelo biomédico. Paradigma, estilo de pensamento, modelo ou racionalidade, a biomedicina pode ser designada sucintamente como todo o conjunto de diretrizes teóricas e práticas que orientam a formação médica moderna e que, por conseguinte, guiam a prática não só dos médicos, mas também da maior parte dos profissionais de saúde. O prefixo bio indica precisamente o traço mais marcante dessa racionalidade: a supervalorização dos aspectos biológicos (notadamente a anatomia e a fisiologia) do humano em detrimento de outras dimensões fundamentais como a psicológica e a social.

15 A crise da medicina ocidental moderna refere-se à crise de seu paradigma dominante, o qual se identifica inteiramente com o positivismo ao não reconhecer o papel da sociedade, da cultura, da comunidade científica e da própria história na determinação não só do objeto do conhecimento como da maneira de abordá-lo (QUEIROZ, 1986, p. 310) É importante ressaltar que o próprio uso do termo biomedicina já se dá em um contexto de crise do modelo de cuidado em saúde sustentado por essa racionalidade. Em outras palavras, trata-se de um termo cunhado justamente como forma de localizar e nomear o alvo das críticas. Por conta disso, é muito comum encontrarmos profissionais de saúde que, por não estarem inseridos na discussão acerca dos impasses vivenciados atualmente pelo cuidado em saúde, por vezes desconhecem o termo biomedicina ou consideram-no apenas uma nova especialidade médica. No âmbito crítico, a biomedicina se refere ao modelo teórico-prático que vigora atualmente no campo do cuidado em saúde. O primeiro capítulo de nosso estudo tem a função de caracterizar esse modelo, apontando suas origens históricas e, especialmente, assinalando os impasses que ele enfrenta atualmente. Iniciamos com uma exposição do que denominamos de solo conceitual da biomedicina e que se refere aos fundamentos filosófico-conceituais que sustentaram o que Luz (1988) chama de racionalidade científica moderna, uma cosmologia, isto é, uma estrutura de explicação do ser humano e do mundo, que sucedeu a explicação de mundo religiosa vigente durante toda a Idade Média. Derivada da chamada Revolução Científica ensejada pelo Renascimento, a racionalidade científica moderna se constituiu fundamentalmente a partir da separação entre homem e Natureza e da elaboração dessa última como objeto de conhecimento. Abordamos, com o auxílio de textos de Martins (1999; 2009), a genealogia dessas novas idéias, demonstrando que se tratava de postulados construídos com base na pretensão de um controle absoluto sobre o real. Em decorrência, fora elaborado todo um imaginário marcado pela idéia de conflito e de luta entre o homem e a Natureza em que a racionalidade humana tinha como missão desbravar e tentar domesticar uma Natureza selvagem.

16 Concomitantemente, no contexto do advento da racionalidade científica moderna, emergiu a metáfora da Natureza como máquina, isto é, dotada de um funcionamento regular, previsível, mecânico, controlável, semelhante aos primeiros aparelhos mecânicos construídos nos séculos XIV e XV. É nesse contexto que surgem os princípios metodológicos que orientariam o desenvolvimento da ciência moderna e que acabariam por se converterem em ideologias, entre eles a especialização, a redução e a experimentação. Os três procedimentos podem ser considerados como legítimos e úteis para a produção de conhecimento desde que sejam reconhecidos como o que de fato são: estratégias de apreensão do real e não espelhos da natureza. Uma das marcas mais visíveis da racionalidade científica moderna foi justamente ter tomado tais princípios metodológicos como a verdade do real, fazendo da ciência uma ideologia, o cientificismo (MARTINS, 2009). As origens do modelo biomédico estão diretamente marcadas pela ideologia cientificista. Percorrendo a história do nascimento da medicina moderna com Foucault em seu O Nascimento da Clínica (FOUCAULT, 2008) vemos como, na pretensão de se constituir como ciência, a medicina acabara tendo que se afiliar ao cientificismo. Foucault traça dois grandes momentos na história dos primórdios da medicina moderna: a medicina das espécies (ou medicina classificatória) e a anatomia patológica. A medicina das espécies constituiu-se na tentativa feita no século XIX de fundar um cuidado em saúde baseado na classificação das patologias em gêneros, famílias e espécies, modelo de categorização já utilizado em outras ciências como a botânica, por exemplo. Para tanto, fora preciso considerar a enfermidade como entidade e não como processo de adoecimento. Assim, pensavase que o indivíduo ficava doente quando uma determinada entidade patológica se instalava em seu corpo. Já a anatomia patológica diz respeito à nova disciplina criada no século XIX caracterizada pela investigação, notadamente em cadáveres, de correlações entre os sintomas das doenças e lesões no corpo. A anatomia patológica marcara a entrada em cena dos dados anatômicos como critérios primordiais na determinação do estatuto da doença. Nesse contexto, já não se tratava mais de investigar apenas os sinais e sintomas de um quadro patológico a fim de determinar qual espécie de

17 doença adentrara no corpo do doente, mas sim de perscrutar as superfícies e tessituras do corpo na busca de informações. Assim, a localização e observação das lesões no organismo do paciente passaram a ser os expedientes principais da atividade médica. Conquanto se tratem de modelos de medicina gestados e praticados no século XIX e que diversos desenvolvimentos posteriores do conhecimento médico tenham suplantado a força desses modelos, alguns de seus traços ainda se mantêm na medicina contemporânea e são justamente as características que mais tendem a gerar impasses à biomedicina. A alta valorização da correta descrição dos sintomas por parte do paciente e a ênfase no diagnóstico como um elemento essencial para o cuidado em saúde podem ser vistos como heranças da medicina das espécies e sua necessidade de identificar e classificar a entidade patológica. Os impasses gerados por tais atitudes advêm do fato de que o diagnóstico que só leva em conta sinais e sintomas e que apenas com tais informações se considera capaz de determinar o que ocorre com o doente é reducionista, pois parte do pressuposto de que todos os doentes cujos diagnósticos os encaixam em uma mesma patologia apresentam um mesmo quadro patológico e devem ser tratados segundo estritamente os mesmos protocolos, em um procedimento muito mais próximo da engenharia do que de uma terapêutica singularizada que se valeria dos diagnósticos apenas como ferramentas de orientação clínica. Além disso, há um grande número de doentes que se apresentam com sintomas vagos, indefinidos, inclassificáveis e que, pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de serem diagnosticados, não recebe a devida assistência à saúde, evidenciando o prestígio que a enunciação do diagnóstico possui na biomedicina. A ênfase nos exames, nos testes e em todo tipo de procedimento de mensuração do corpo, desde a dimensão macroscópica das lesões visíveis a olho nu até a dimensão microscópica dos vírus e bactérias, deixa clara a força que o olhar adquiriu na medicina moderna. Força que podemos considerar como tendo sido forjada no momento em que a anatomia patológica começa a se fazer presente com maior intensidade na medicina. A idéia que parece ser considerada intocável desde aquele momento até os dias atuais é a de que apenas aquilo que pode ser visto ou de algum modo mensurado no corpo possui legitimidade para caracterizar um adoecimento. No entanto, uma série de condições de adoecimento não é

18 passível de ser adequadamente mensurada de acordo com os meios e os critérios biomédicos. Por conta disso, tais condições são tratadas de modo pouco criterioso e/ou os pacientes recebem simplesmente do profissional de saúde a célebre mensagem: Você não tem nada. Enunciado que expressa com clareza o impasse da biomedicina perante tais condições e a ideologia cientificista que nutre tal impasse. É como se o profissional de saúde estivesse dizendo: Aquilo que você alega como sendo seu sofrimento e sua doença na verdade não existem, dado que minha ciência não conseguiu identificá-los.. Esses são alguns dos principais impasses enfrentados pelo modelo biomédico. No primeiro capítulo, buscamos traçá-los de modo mais pormenorizado delineando suas origens históricas e os fundamentos filosófico-conceituais sobre os quais se constituíram. O que fazer para dirimir tais impasses? A hipótese que norteia este estudo é a de que tal tarefa só pode ser levada a cabo mediante uma transformação direta não na superfície, isto é, no âmbito prático, onde esses impasses de fato aparecem, mas sim nas bases conceituais que estão em sua origem. Em outras palavras, não propomos aqui que a eliminação dos impasses referentes à questão do diagnóstico reducionista, por exemplo, passe por uma mudança de ordem meramente prática como a extensão do tempo de duração das consultas médicas. Tal estratégia provavelmente será frutífera, mas não haverá mudança efetiva se o profissional de saúde não modificar suas concepções acerca do que significa propriamente um diagnóstico e suas idéias acerca do que seja doença, saúde, cura, tratamento e, em última instância, do que significa natureza, vida etc. Em meio a esse contexto de crise que citamos anteriormente e no qual se inserem os impasses vivenciados pelo modelo biomédico, muitos autores contemporâneos têm trazido à baila, a fim de repensar os fundamentos de seu campo de estudo, contribuições de autores do passado, especialmente daqueles cujo pensamento se localiza em períodos anteriores à medicina moderna. Tem sido cada vez mais comum encontrarmos na literatura de diversos campos do conhecimento o resgate do pensamento de filósofos pré-socráticos, por exemplo. A tese é de que as proposições desses pensadores são bastante pertinentes à realidade pós-moderna marcada pela diluição das rígidas fronteiras geradas na

19 modernidade entre natureza e cultura, corpo e psiquismo, indivíduo e sociedade etc. Na área da saúde, vemos também pesquisadores recuperando e demonstrando a atualidade dos enunciados atribuídos a Hipócrates, por exemplo, o qual, embora seja considerado o pai da medicina ocidental, elaborou uma doutrina médica baseada na idéia de equilíbrio com o ambiente com a qual a biomedicina não se mostra compatível. Esta pesquisa também se insere nessa tendência de resgate das contribuições de autores do passado. A obra do autor que aqui colocamos em cena, Georg Walther Groddeck (1866-1934), jamais adquiriu significação de maior vulto nos campos em que atuava, a saber: a medicina e a psicanálise. Não obstante, em nossas leituras preliminares de seus escritos constatamos que suas idéias acerca do significado da atividade médica, da doença, da saúde e da cura poderiam ser consideradas justamente como um contraponto aos enunciados da biomedicina, de modo que um estudo mais aprofundado em sua obra possivelmente forneceria uma série de contribuições para a superação dos impasses vivenciados pelo modelo biomédico. Deste modo adveio nosso problema de pesquisa, o qual pode ser expresso da seguinte forma: Quais as contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina? Groddeck ficou conhecido no meio psicanalítico apenas como um autor obscuro, que havia se dedicado ao estudo das doenças psicossomáticas e em quem Freud havia se inspirado para forjar o conceito de id (ou Isso). No segundo capítulo desta pesquisa, no qual realizamos uma espécie de vida e obra do autor, pretendemos fazer justiça ao seu legado, demonstrando, entre outras coisas, como o conceito freudiano de id é completamente diferente do Isso groddeckiano. Analisando sua concepção de doença, deixamos claro que conquanto Groddeck fizesse uso de expressões como condicionamento psíquico, o médico alemão jamais pensou o adoecimento como sendo fruto de uma psicogênese. Para Groddeck, a enfermidade é uma criação do Isso, o nome que ele dá à totalidade individual, a qual excede fartamente os limites do eu. Aliás, o eu para Groddeck é também uma criação do Isso, um arauto que crê ilusoriamente ser o autor da mensagem que seu real emissor lhe condena a entregar. O Isso não é nem corpo, nem psiquismo, mas utiliza a ambos como dialetos para expressar suas intencionalidades. Por isso, a doença, para Groddeck, não é um evento isolado da

20 história individual, mas está radicalmente inserida nela, servindo como meio de expressão individual, tal como a linguagem verbal. No segundo capítulo também buscamos dirimir os preconceitos que ao longo do tempo se depositaram ao redor do pensamento de Groddeck, derivados em grande parte de uma leitura superficial dos textos do autor. Através de uma análise cuidadosa de seus diversos escritos, demonstramos que não há nada de místico nas concepções do autor e que muitos dos enunciados aparentemente escandalosos e interpretações consideradas forçadas de Groddeck são apenas recursos retóricos próprios a seu estilo. Embora este segundo capítulo não aponte diretamente as contribuições do pensamento groddeckiano para a superação de impasses experimentados pela biomedicina, o consideramos necessário como forma de apresentar uma visão geral tanto da vida quanto das concepções teóricas do autor. Com efeito, Groddeck é um autor pouco conhecido e, como ressaltamos acima, mesmo aqueles que já ouviram falar dele amiúde não tiveram acesso mais aprofundado a suas idéias. No terceiro capítulo, que consideramos o segmento nuclear de nosso estudo, é que expomos efetivamente a resposta a nosso problema de pesquisa, isto é, as proposições teóricas encontradas na obra groddeckiana que julgamos capazes de contribuir para a superação de impasses da biomedicina. Através de um diálogo constante com o primeiro capítulo, no qual esses impasses são analisados, buscamos demonstrar o quanto as idéias de Groddeck, embora tenham sido elaboradas no mesmo momento histórico em que a biomedicina estabelecia suas bases teórico-metodológicas, se opõem radicalmente ao modelo biomédico. Ademais, a partir de uma análise minuciosa dos textos do autor, vamos colhendo o que de essencial há na doutrina groddeckiana capaz de auxiliar na formulação de um novo modelo de cuidado em saúde. Conquanto o objeto principal de nosso estudo já fosse atingido no terceiro capítulo, julgamos necessário inserir em seguida um quarto segmento a fim de cumprir duas tarefas complementares: (1) demonstrar que as contribuições extraídas da obra de Groddeck não são pontuais, mas têm sua relevância aumentada na medida em que estão inseridas dentro de um discurso mais amplo derivado das proposições de alguns autores do campo da filosofia; (2) apontar quais seriam os fundamentos filosófico-conceituais necessários para a formulação de um novo

21 modelo de cuidado em saúde no qual as contribuições de Groddeck poderiam se inserir.

22 1 O MODELO BIOMÉDICO E SEUS IMPASSES 1.1 Preâmbulo Neste primeiro capítulo, nossa intenção é a de apresentar ao leitor o campo de problemas, impasses e limitações enfrentados pelos profissionais de saúde em sua atuação cotidiana, partindo da hipótese de que tais dificuldades advêm da prevalência de um tipo específico de matriz teórica, filosófica e conceitual que fundamenta as ações desenvolvidas no cuidado em saúde contemporâneo. Tal matriz, usualmente denominada de biomedicina ou modelo biomédico, cujo modo de incidência no campo da saúde permite qualificá-la como um paradigma (no sentido kuhniano) ou um estilo de pensamento (na acepção de Fleck), vem sendo alvo de críticas há algum tempo na literatura das diversas áreas que compõem o vasto campo do cuidado em saúde. No entanto, posicionamentos dessa natureza não se configuram efetivamente como formas de resistência e de intervenção com vistas à superação do modelo biomédico. Em geral, as críticas tendem a chover no molhado insistindo em questões como a ausência de um ponto de vista integral da pessoa na biomedicina, isto é, que a medicina moderna não vê o indivíduo, mas apenas seus órgãos ou que o modelo biomédico reduz o processo saúde-doença ao que se passa no âmbito do organismo e da biologia. Não estamos dizendo que tais juízos não sejam pertinentes. No entanto, tememos que a insistência nesses mesmos pontos e em fatos que qualquer usuário de serviços de saúde sabe de cor, sem a apresentação de possíveis alternativas ou soluções, acabe fazendo com que a crítica se transforme em flatus vocis, como tem ocorrido de forma semelhante com as condenações ao modo de produção capitalista nas sociedades contemporâneas. Mais: essa espécie de crítica pela crítica pode provocar efeitos totalmente adversos (para usar a expressão pertinente ao tema), pois embora a biomedicina tenha que lidar com uma série de furos teóricos e práticos em seu funcionamento enquanto modelo, foi justamente o seu desenvolvimento que permitiu uma série de avanços na compreensão e no tratamento de muitas enfermidades, o que significa dizer que o modelo biomédico conta a seu favor com um argumento extremamente forte na medida em que é pragmático: as intervenções que dele decorrem são efetivas em

23 grande parte dos casos. Assim, se os críticos não apresentam formas de superação dos impasses que o modelo enfrenta, seus posicionamentos podem ser vistos como um retrocesso, como uma tendência de retorno a um modo ultrapassado de cuidado em saúde. Outro problema que acomete a maior parte das críticas ao modelo biomédico é a ausência de uma fundamentação histórica ou genealógica tanto da crítica quanto daquilo que é criticado, fazendo com que muitas vezes o juízo condenatório assuma apenas um tom de lamentação. Posturas como essas fazem com que a crítica se torne um mero lugar-comum, pois dá a entender que o autor não sabe por que está criticando nem as razões pelas quais o objeto alvo de crítica a merece. Com vistas a nos livrarmos de armadilhas e ciladas desse tipo, nas quais qualquer procedimento de resistência tende a cair, começaremos esse capítulo do começo. O pleonasmo é proposital, pois nossa descrição partirá não dos impasses e limitações enfrentados pela biomedicina o objeto central desse segmento mas das condições sociais, filosóficas, históricas e ideológicas que permitiram o desenvolvimento e a manutenção do modelo biomédico como o paradigma hegemônico do cuidado em saúde. Dessa forma o leitor será levado a perceber onde se situa a gênese dos problemas, pois acreditamos que somente a intervenção naquilo que funciona como esteio dos impasses poderá servir como forma de superação dos mesmos. O erro, a nosso ver, do famigerado projeto de humanização da saúde é justamente o de não atentar para os fundamentos teórico-conceituais do objeto de contestação: ele pressupõe uma alteração no nível das práticas de saúde, mas deixa intocados os conceitos e teorias que efetivamente estão na origem das práticas desumanas 1. Nosso interesse, portanto, é pragmático: exporemos as condições que originaram os atuais problemas enfrentados no cuidado em saúde de forma a demonstrar nos capítulos posteriores as contribuições que a obra de Georg Groddeck pode fornecer para a superação desses impasses, justamente porque tais contribuições incidirão no âmbito dos modos de pensar, os quais fundam os modos de fazer. 1 Exceções a esse quadro têm sido os trabalhos desenvolvidos por José Ricardo Ayres, nos quais é possível notar uma preocupação em situar e discutir os fundamentos conceituais que devem embasar a proposta de humanização do cuidado em saúde, utilizando como ferramenta discursiva a hermenêutica filosófica. Cf. AYRES, 2004; 2005; 2007.

24 1.2 Das relações entre o pensar e o agir Nem sempre se pensou o corpo tal como hoje o concebemos e descrevemos. Essa afirmação aparentemente banal pode não o ser se levarmos em conta o fato de que na maior parte do tempo talvez nos esquecemos completamente dela. Dificilmente um doente consegue discernir que no momento em que um profissional de saúde lhe diz que ele possui cálculos renais, por exemplo, ele não está descrevendo o que de fato acontece em seus corpos (como se estivesse exercendo uma função análoga à do espelho), mas está efetivamente fazendo uso de uma construção lingüística em que ambos, tanto o profissional quanto ele, paciente, acreditam como devendo corresponder a determinadas estruturas corporais. Geralmente não se coloca em questão, portanto, o fato de que tanto o profissional de saúde quanto os pacientes estão construindo um corpo no exato momento do diagnóstico, isto é, que estão ambos recortando em suas próprias mentes uma superfície a respeito da qual não se pode afirmar a priori que possua determinadas demarcações, fronteiras ou subdivisões. Admitindo esse postulado, qual deveria ser, portanto, o critério para a escolha, por exemplo, entre uma caracterização do corpo como sendo constituído de sistemas, órgãos, tecidos e células ou como comportando apenas uma cabeça, tronco e membros, já que não seria a correspondência a uma suposta natureza real? Não seria uma resposta possível: a partir das conseqüências que decorrem de cada uma das visões com vistas e quanto tais conseqüências contribuem para a realização de nossos interesses práticos? Ou seja, em vez de buscarmos uma correspondência entre nossas descrições e o real correspondência que à primeira vista parece impossível de ser feita se considerarmos que a realidade admite diversas descrições (todavia, não qualquer descrição) não deveríamos pautar nossas escolhas teóricas nas possibilidades que determinada descrição da natureza tem de nos auxiliar no alcance dos objetivos a que nos propomos, por exemplo, a efetividade do cuidado em saúde? Se esse for nosso critério, o questionamento que deve ser feito, portanto, para a biomedicina, quando ela pressupõe que a doença seja vista como uma questão de ordem puramente orgânico-biológica, é se essa forma de descrever as coisas facilita ou dificulta nossa compreensão do adoecer e não se essa tese corresponde ou não

25 à realidade-real-verdadeira da doença. Certamente, não foi esse o parâmetro adotado no desenvolvimento da medicina moderna. Essa, como diversos novos campos científicos, é herdeira de uma tradição que pretendia encontrar a correspondência identitária entre o pensamento e a realidade, ou seja, um tipo de concepção que via como possível ao sujeito humano ter acesso à verdade imanente à natureza. Falemos um pouco mais sobre essa tradição. 1.3 O solo conceitual da biomedicina: racionalidade científica moderna e suas ideologias Evidentemente, essa tradição a que nos referimos, a saber: a racionalidade científica moderna, possui uma história e um desenvolvimento cujas linhas de evolução será preciso traçar de modo que se possa compreender a gênese de determinadas formas de pensar que, embora tivessem sido funcionais num dado momento histórico e ainda o sejam em alguns aspectos, acabaram por se constituir em fatores impeditivos da consecução dos próprios objetivos a que se propuseram as disciplinas que compõem o cuidado em saúde. Para contarmos essa história, teremos como guia principais a obra de Madel Luz, Natural, Racional, Social (LUZ, 1988) e textos de André Martins que enfocam as relações entre a racionalidade científica moderna e o campo da saúde (MARTINS, 1999; 2004a; 2004b; 2008; 2009) o que não significa que negligenciaremos a contribuição de outros autores. A escolha da obra de Luz e Martins não foi arbitrária. Com efeito, correndo o risco da simplificação, pode-se dizer que é possível adotar duas perspectivas distintas ao se fazer a história de formas ou sistemas de pensamento. Uma é a perspectiva epistemológica que analisa as continuidades, descontinuidades e rupturas teórico-conceituais no interior do próprio sistema que está sendo objeto de estudo. Ao adotar-se esse ponto de vista, não se está preocupado com fatores exteriores ao sistema que porventura determinariam a evolução dos conceitos. Parafraseando Husserl, a forma de pensamento em apreço é colocada entre parênteses. A outra perspectiva é a que pode ser chamada genericamente de genealógica. Desse ponto de vista, nenhuma forma de pensamento é neutra em relação ao contexto afetivo, político, social, econômico e ideológico no qual foi gestada. Pelo contrário, entende-se que ela é

26 função desse contexto. Nesse sentido, a origem de determinados conceitos dentro de um dado modo de pensar não pode ser remetida apenas a outros conceitos que o antecederam no tempo, mas também e, principalmente, a uma ampla rede de relações dentro do meio social que, em última instância, se fundam na dinâmica dos afetos humanos. A genealogia enquanto método de análise histórica começa com Nietzsche no momento em que esse concebe a moral como um precipitado de pensamento gestado em meio a disputas de índole que poderíamos eminentemente chamar de narcísica. De acordo com André Martins (2004a): É com Nietzsche que a genealogia torna-se um método investigativo, que consiste basicamente em remontar às causas afetivas das ações, valores e argumentos aparentemente racionais presentes. Perceber o que está em jogo por detrás de explicações que não levam em conta o sensível e suas interações narcísicas, egoístas, emocionais (MARTINS, 2004a, p. 953). A remontagem histórica feita por Madel Luz e por André Martins adota essa perspectiva. De fato, no caso de Luz, não se trata de uma genealogia feita no sentido estrito do termo (tal como Nietzsche a faz), mas da adoção de um método descritivo de inspiração genealógica semelhante à arqueologia de Foucault, que Luz denomina de análise sócio-histórica. A autora expõe de maneira clara suas intenções no seguinte trecho: O exame dessa produtividade [da ciência] será conduzido, metodologicamente, através da análise histórica de teorias e de conceitos, de sua origem e da mutação de seus conteúdos no contexto social. Aqui sim, se está falando mais de arqueologia ou de genealogia que de epistemologia histórica (LUZ, 1988, p. 09). Portanto, ao convocarmos Natural, Racional, Social como guia de nosso percurso histórico, estamos deliberadamente adotando uma perspectiva genealógica, a qual julgamos não apenas mais interessante aos nossos propósitos como também mais honesta na medida em que explicita fatores que entram em jogo tanto na criação quanto na manutenção de certas formas de pensamento e que via de regra se encontram velados justamente com o objetivo de conferir um tom de neutralidade àquelas. É importante também deixar claro que a obra de Madel Luz tem objetivos próprios, distintos das intenções deste trabalho. O objetivo principal da obra de Luz é demonstrar as imbricações existentes entre as categorias do Natural,

27 do Racional e do Social e como tais imbricações incidem na medicina. O uso que fazemos de alguns aspectos do desenvolvimento histórico que a autora propõe terá como fim evidenciar como se deu a constituição da matriz teórica na qual a biomedicina se insere. A autora caracteriza a racionalidade científica moderna como uma estrutura de explicação do mundo e do ser humano cujo advento se dá concomitantemente a uma ruptura e enfraquecimento de outra estrutura de visão e organização do mundo, qual seja, a cosmovisão religiosa, a qual vigorou durante todo o período compreendido como Idade Média. Assim, todo um modo de organizar e explicar o mundo baseado na idéia de um Deus transcendente que cria e determina as formas de manifestação dos fenômenos à sua maneira começa a sofrer um enfraquecimento que culmina na emergência de um movimento artístico, filosófico, ideológico e científico que repercute nos vários âmbitos da sociedade: o Renascimento (LUZ, 1988). É no Renascimento que devem ser buscadas as raízes do que muitos autores chamam de Revolução Científica. Isso porque é no Renascimento que pela primeira vez desde os gregos ganha força a idéia de que é possível transformar o meio em que se vive. De fato, essa idéia não era plausível no contexto anterior de prevalência da doutrina teocêntrica. Se é Deus quem está no comando de tudo, qualquer modificação no real tem que partir de uma mudança na própria vontade divina isso explica em parte o rígido sistema feudal e a inexistência de mobilidade social na Idade Média. Assim, a noção de indivíduo como potencial de mudança do mundo também ganha força no Renascimento. Troca-se o teocentrismo por um antropocentrismo. Evidentemente, uma série de transformações de cunho social, político e econômico estiveram na base dessa ruptura com a visão de mundo medieval, entre as quais a emergência da classe burguesa, o mercantilismo e o advento das monarquias seculares (LUZ, 1988). O termo Renascimento é utilizado como alcunha dessa ruptura com a Idade Média justamente porque se supunha um retorno a uma vida grega clássica anterior que teria sido perdida durante o período medieval. Em função disso, toda a tradição não só artística, mas também filosófica grega é retomada. Tal resgate ensejará o desenvolvimento de alguns postulados fundamentais do pensamento grego a partir

28 de outros conceitos. Talvez o maior incremento nesse sentido tenha sido o desenvolvimento da idéia platônica do corpo como prisão da alma e dessa como a essência do humano. Tal noção, como demonstra Martins (1999) certamente está na origem da visão do homem como proprietário da Natureza que esse estabelece a partir do Renascimento. Se antes apenas Deus era separado da Natureza, agora o homem também passa a ser visto como distinto dela e herda de Deus a propriedade sobre o reino natural. Emerge a idéia de uma Natureza exterior ao humano. De acordo com Luz, esse é um dos primeiros traços discerníveis da então nascente racionalidade moderna: Essa atitude antropocêntrica ativa que caracteriza o Renascimento, humanista por um lado, naturalista, por outro, é um primeiro rasgo da racionalidade moderna, um primeiro traço constitutivo discernível. Antropocentrismo que valoriza acima de tudo as iniciativas do gênero humano (individuais, coletivas) de conhecimento do mundo natural, com a finalidade de desvendá-lo, desbravá-lo, explorá-lo (LUZ, 1988, p. 18, grifo da autora). Num primeiro momento, o conceito de Natureza aparece investido de atributos com os quais a tradição patriarcal usualmente caracterizava o sexo feminino, como o mistério. As metáforas utilizadas na época refletem essa operação: a Natureza é chamada de mãe, mulher misteriosa, tesouro escondido. Em contrapartida, seria tarefa do homem, através da ciência, revelar os segredos ocultos do mundo natural. Nesse sentido, inicialmente a relação do homem com a Natureza é vista sob o signo das relações entre os sexos. Outras características geralmente associadas ao sexo feminino na época também são incorporadas à visão da Natureza como a imprevisibilidade, o caráter perigoso, traiçoeiro. Em suma, a tarefa do homem para o com o mundo natural seria análoga à relação à época do sexo masculino com o feminino numa relação conjugal: o primeiro deveria controlar o segundo (LUZ, 1988). Posteriormente, a partir dos séculos XVII e XVIII e principalmente em função da influência da filosofia cartesiana, as imagens da Natureza vão sofrer uma transformação importante. De um mundo natural feminino, obscuro, imprevisível e traiçoeiro, passa-se a uma Natureza pensada como máquina, com um funcionamento logicamente determinado e cujos mecanismos podem ser conhecidos pela via da razão e da ciência. Não obstante essa modificação, o caráter exterior da

29 Natureza face ao homem permanece. A Natureza, o Real, o mundo, gradualmente vão se constituindo como objeto cujo modo de funcionamento pode ser conhecido justamente por ser exterior ao sujeito humano. A pretensão de controle da Natureza também não desaparece com essa transformação. Se no primeiro momento, o ímpeto dominador visava uma espécie de amansamento do mundo natural, potencialmente ameaçador, agora o desejo de controle torna-se o segundo passo de um processo que se inicia com o conhecimento das leis de funcionamento da Natureza. Deseja-se saber como a máquina funciona, para posteriormente fazê-la trabalhar a favor do homem (LUZ, 1988). De acordo com Martins (1999) esse novo modo de conceber a Natureza, isto é, como uma máquina cuja lógica pode ser conhecida, remonta aos gregos, em especial a Aristóteles. O filósofo, discípulo de Platão, ao contrário de seu mestre, não concebia as essências das coisas como estando situadas numa realidade transcendental da qual o mundo empírico seria apenas uma cópia imperfeita. Para Aristóteles, as essências dos objetos estavam nos próprios objetos. Ou seja, a lógica do mundo era imanente ao próprio mundo. Para aceder a ela, o homem deveria exercitar a observação e o raciocínio lógico. Ora, são justamente esses os dois passos fundamentais da racionalidade científica moderna. É preciso observar o comportamento da natureza, seus modos particulares de ser para, num segundo momento, pela via do raciocínio, passar desses modos particulares a uma lógica universal. As chamadas leis de Newton são a maior expressão desse processo, constituindo-se como enunciados universais que supostamente revelariam os princípios que regulam o comportamento de todos os corpos. Martins resume o ideário da racionalidade científica, construído a partir dessas bases, da seguinte forma: [...] a complexidade do mundo em contínuo devir pode e deve ser reduzida a leis pelas quais seus movimentos, complexos, podem ser tidos como mecânicos. As leis mecânicas aparecem assim como as regras ocultas que regem a natureza, e que podem ser desta apreendidas, submetendo-se a natureza a experiências, sendo estas determinadas e analisadas pela razão, pela inteligência humana. Assim, o homem racional poderá prever e portanto determinar, pela análise do presente e do passado, o que ocorrerá no futuro, contanto que controle as variáveis presentes (MARTINS, 1999, p. 88).

30 O texto de Martins cita duas características da racionalidade científica que merecem um comentário mais aprofundado: o reducionismo e o experimentalismo. O reducionismo é seguramente a arapuca em que com maior freqüência as disciplinas científicas tendem a cair e na qual a biomedicina certamente caiu. O reducionismo ocorre quando acreditamos que os modelos e instrumentos conceituais que utilizamos para entender os fenômenos que estudamos são idênticos à natureza mesma dos fenômenos. Por que isso implica numa redução? Porque, agindo assim, nós substituímos a complexidade do objeto estudado por uma visão simplificada dele, a qual foi gestada com o modesto objetivo de facilitar nossa abordagem. Ou seja, a redução não é em si mesma deletéria. Pelo contrário, ela é necessária dado que o real se nos apresenta de maneira assaz complexa. Rozemberg e Minayo (2001) concordam com essa assertiva ao dizer que a redução [...] é condição mesma do ato de conhecer, pois assim que racionalizamos algum aspecto da experiência, mesmo que momentaneamente, excluímos os demais. Ao focalizar a atenção na tentativa de apreender algum aspecto da experiência nosso olhar é necessariamente redutor dessa experiência. O maior problema, ao nosso ver, não está, portanto, no reducionismo em si, mas na pretensão de totalidade e de controle que as correntes de pensamento tendem a advogar para si mesmas e ainda, na instituição de uma forma de ver o mundo sob um determinado ângulo, desconhecendo e desqualificando outros olhares (ou até mesmo o nosso próprio em outro momento ou contexto) (ROZEMBERG & MINAYO, 2001, p. 117). Martins, em outro trabalho, nos dá um ótimo exemplo da relação entre a necessária redução e o prejudicial reducionismo tomando o caso dos mapas. Um bom mapa não pode ser do tamanho do território a que ele se refere, mas há de ser uma versão reduzida do mesmo e que não necessariamente reflete exatamente suas fronteiras. Sua função é a de nos auxiliar no processo de localização fornecendo-nos pontos de referência. Por não se acreditar que os mapas são cópias fiéis do mundo é que eles estão em permanente modificação, sendo alterados à medida que novos aspectos da realidade complexa vão sendo captados (MARTINS, 2009). Essa deveria ser a postura ideal das ciências frente a seus objetos de estudo e efetivamente o é em grande parte dos campos científicos. Algumas disciplinas, no