Pedagogias da imagem cinematográfica Rosália Duarte III SBCE (Canoas, agosto de 2008)



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Transcrição:

Pedagogias da imagem cinematográfica Rosália Duarte III SBCE (Canoas, agosto de 2008) Esta minha fala aqui hoje tem o propósito de refletir sobre as pedagogias da imagem cinematográfica e, nesse caso, não estou falando de suporte película ou digital mas de uma certa forma de configurar a imagem que é própria do que se convencionou chamar de linguagem cinematográfica. O cinema é uma das poucas artes que não nasceu como forma de expressão. Foi se fazendo forma de expressão, a partir de experiências e iniciativas diferentes. Sua invenção teve, na origem, um caráter e um interesse muito mais científico e tecnológico do que de expressão de idéias e sentimentos: em seus primórdios, a função do cinematógrafo era fundamentalmente possibilitar o registro de movimentos, de modo a prover de recursos técnicos a ciência que então se ocupava deles. A técnica de registro de imagens em movimento também se mostrou útil para aproximar da vista objetos distantes e ampliar significativamente a dimensão de seres e objetos muito pequenos, de forma semelhante ao que faziam os microscópios, recursos que passaram a ser amplamente utilizados pelo que viria a ser definido, mais tarde, como cinema científico. Assim, já em 1901, Garrigon Lagrange utilizava o cinematógrafo para o registro de fenômenos físicos e o estudo da meteorologia; entre 1904 e 1911, Lucien Bull realizou as primeiras experiências com 1

cinematografia ultra-rápida filmando insetos; em 1909, o Dr. Comandon realizava estudos sobre bacilos e células com auxílio de técnicas cinematográficas e que Roberto Omegna, em 1911, realizou pequenos filmes com a aceleração de imagens do crescimento das plantas e de uma rosa se abrindo. A possibilidade de olhar para o mundo, ralentando o tempo e estendendo-o, enxergando o que o olho humano não poderia ver, abriu novas possibilidades de investigação científica dos fenômenos naturais e da posterior apresentação de seus resultados a um público maior, chegando, rapidamente, a um público curioso e ávido por novidades, num ambiente de recorrentes exposições internacionais e científicas. O caráter pedagógico dessas imagens-técnicas não passou despercebido aos educadores, que vislumbraram a possibilidade não só de produzir imagens a serviço da ciência mas também de fazer uso delas para o ensino da ciência. A emergência, no início do século XX, de uma filosofia da educação que defendia a experimentação e a observação dos fenômenos naturais como importantes medidas pedagógicas a serem utilizadas no ensino da ciência, havia levado escolas e professores a utilizar a imagem-técnica e os novos processos de impressão e reprodução de fotografias e ilustrações em suas aulas, desde fins do século XIX. As imagens capturadas pelo cinematógrafo vieram somar-se a essa tendência e ocuparam espaço também na sala de aula (DUARTE & ALEGRIA, 2008). Nos anos de 1911 e 1912, no Liceu Hoche, em Versalles, Brucker, catedrático de história natural, empregou projeções animadas em 2

suas aulas. Em 1912, na Bélgica, um congresso de educação reuniu professores e pais em torno de um debate sobre o potencial do cinema para fins educacionais. No Brasil, essa tendência levaria intelectuais e cineastas a desenvolver, nos anos de 1920 e 1930, uma cinematografia educativa, destinada ao uso escolar e também à educação não-escolar de um imenso contingente de analfabetos com o qual o país se deparava, pela primeira vez com preocupação. No entanto, o cinema não se deixou aprisionar pelos fins científicos e educacionais a ele atribuídos e tornou-se, muito rapidamente, uma das mais potentes formas de expressão de idéias, pensamentos e sentimentos que a humanidade já viu. Uma arte/técnica que expressa, de forma exemplar, o conceito platônico de techné. No mundo grego, esse conceito era utilizado para definir a realização material e concreta de algo, a partir da possibilidade humana de transformar realidade natural em realidade artificial, o que nos permite traduzi-lo tanto por técnica quanto por arte. Cinema é techné, é técnica e também é arte, nesse caso, como dimensões absolutamente indissociáveis uma da outra. Georges Méliés, um dos primeiros a expandir de forma criativa as possibilidades dessa técnica, escreveu, em 1909: A arte cinematográfica oferece uma tal variedade de pesquisa, exige uma quantidade tão grande de trabalhos de todos os gêneros, requer uma atenção tão redobrada, que não hesito, de boa-fé, em proclamá-la a mais atraente e a mais interessante de todas as artes, pois ela utiliza 3

quase todas as demais. A arte dramática, desenho, pintura, escultura, arquitetura, mecânica, trabalhos manuais de todo o tipo, tudo se emprega em doses iguais nessa extraordinária profissão (...) é preciso meter a mão na massa, como se diz, por um bom tempo, a fim de conhecer a fundo as numerosas dificuldades que devem ser superadas em um ofício que consiste em realizar tudo, mesmo aquilo que parece impossível, e dar aparência de realidade aos sonhos mais quiméricos, às invenções mais inverossímeis da imaginação. O que o texto de Méliés sugeria, já naquele momento, é que era preciso muito domínio da técnica para desenvolver todo o potencial artístico que o cinema oferecia. Os primeiros passos para que as imagens do cinematógrafo fossem tomadas com fins expressivos foram dados pela chamada vanguarda do cinema, um conjunto de artistas e intelectuais de várias áreas que resolveram explorar as potencialidades da imagem em movimento, alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial. Na França, favorecidos pela atmosfera revolucionária das artes plásticas (dadaísmo, cubismo, expressionismo) e pela importância atribuída ao cinema, como meio de expressão, pelos intelectuais do período, a vanguarda tinha como ambição fundamental a busca de um cinema puro ; encontrar a verdadeira essência do cinema no conhecimento do movimento e dos valores visuais, como afirmaria mais tarde, Germaine Dulac, um dos principais vanguardistas (citado por Henri Angel na Revista do Festival de Cinema de Arquivo). Para a vanguarda francesa, o cinema/arte não poderia ficar preso a 4

convenções, deveria brincar com a luz para evocar estados da alma, na tentativa de representar o imaterial. Foi talvez, também, o desejo de representar o irrepresentável que moveu David Wark Griffith a brincar com a luz, embora com propósitos muito diferentes daqueles defendidos pela vanguarda francesa. Do outro do Atlântico, Griffth usaria a técnica da imagem em movimento para a construção de narrativas visuais dramáticas, dando origem a uma forma de fazer cinema que se tornaria hegemônica ao longo do século XX. De acordo com Ismail Xavier, Griffith pretendia traduzir para o cinema a tradição da representação teatral [de onde ele provinha], dando função dramática às técnicas já utilizadas na produção de imagens em movimento, adensando a psicologia e ampliando o alcance da narrativa no plano da carga simbólica atribuída às imagens. Transformando o close-up em um potente canal de subjetivação, Griffth esperava, tal como os romancistas nos séculos anteriores, que suas narrativas levassem o espectador a vivenciar como sua a experiência vivida pelas personagens, aprendendo com ela como se ele próprio a tivesse experimentado. Sobre essa maneira de usar o close up dirá, anos mais tarde o poeta e romancista suíço Blaise Cendrars: Fixe a objetiva em uma mão, um olho, uma orelha e o drama se perfila, cresce sobre um fundo de mistério (...) A atenção se fixa no franzir sinistro de sobrancelhas. Sobre a mão coberta de calosidades criminais. Em um pedaço de tecido que sangra continuamente. Na corrente do relógio que se 5

estica e incha como as veias das têmporas. E por que [no cinema] a matéria está tão impregnada de humanidade? Na contraface da perspectiva adotada por Griffth, a vanguarda russa, auto-denominada Knoks, proclamaria, em 1922, outras possibilidades as imagens, ainda muda, do cinema. Diziam eles, em seu manifesto, publicado por Dziga Vertov: Chamamo-nos os Kinoks para nos distinguirmos dos cineastas, rebanhos de trapeiros que mal conseguem esconder as suas velhacarias. (...) O cinema dos Knoks, NÓS o depuramos dos intrusos: música, literatura e teatro; nós procuramos o nosso ritmo próprio que não terá sido roubado em qualquer parte e que encontramos nos movimentos das coisas. NÓS convocamos: para fugir dos adocicados enlaces do romance, do veneno da novela psicológica do abraço teatral do amante voltando as costas à música para fugir alcancemos o vasto campo, o espaço das quatro dimensões (3+ o tempo), em busca de um material, de uma métrica e de um ritmo inteiramente nosso. Por meio desse manifesto e de seus filmes, os assinantes, documentaristas russos, defendiam a posição de que a função precípua das imagens cinematográficas era expressar o real, com a mais absoluta fidedignidade possível. Nisso consistia, para eles, o 6

caráter revolucionário daquela forma de arte. Nascia ali o cinemaverdade, para o qual o olho da câmera, ao observar e registrar em imagens a realidade, ampliaria o conhecimento objetivo da humanidade sobre o mundo e, desse modo, ajudaria a transformá-lo, numa ação pedagógica para a construção de um novo homem e de uma nova sociedade. Segundo João Luiz Vieira, para Vertov e seus companheiros a câmera deveria se constituir no olho aperfeiçoado que os homens não possuem, um novo olho, uma nova máquina para ver e entender melhor o mundo. Essa seria, para eles, em última instância, a função da imagem em movimento. Essa era também, com algumas nuances, a perspectiva que viria a ser defendida por John Grierson e pelo brasileiro Alberto Cavalcanti, pouco depois, na Inglaterra, encabeçando o movimento que resultaria na criação da escola documentarista britânica. Grierson não tinha dúvidas quanto ao caráter pedagógico das imagens cinematográficas que, para ele, poderiam fazer, fora das salas de aula, a educação de que o país precisava: para ele, a solução para os problemas sociais exigia a renovação do processo educacional e isso implicava um redirecionamento e uma reconversão do olhar tornados possíveis pelas imagens que mostrariam a realidade vivida pelos cidadãos ingleses, as contradições daquela sociedade e o cotidiano dos seus trabalhadores. Atentos também ao poder de expressão das imagens do cinema, mas com expectativas radicalmente distintas dos demais, os cineastas 7

surrealistas, signatários do manifesto publicado por André Breton, em 1924, acreditavam que a atitude realista era absolutamente nefasta para a criação artística e que o pior que o cinema poderia fazer por si mesmo e pela sociedade era tentar ser expressão do real. Diz André Breton, na abertura do manifesto dos surrealistas: Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal essa crença se perde. É à imaginação, vai dizer o autor do manifesto, que a arte deve servir, à libertar a imaginação da servidão a que ela está submetida pela realidade, pelas regras e convenções sociais, pelas obrigações impostas pela vida cotidiana e, sobretudo, pelo temor à loucura. Não é o temor à loucura que vai nos obrigar a içar ao meio pau a bandeira da imaginação, afirma Breton (...) e continua: a atitude realista, inspirada no positivismo, é hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos e dessas peças insultuosas. (...) Ressente-se com isso a atividade dos melhores espíritos. Citando as descobertas de Freud sobre o inconsciente e o sonho, o manifesto professa a crença na integração futura dos dois estados, sonho e realidade, numa realidade absoluta, de surrealidade, que seria a matéria prima da arte, incluída aí, a arte cinematográfica. Dirá o cineasta surrealista Fernand Léger, alguns anos mais tarde: O cinema é uma invenção diabólica, que pode vasculhar e iluminar tudo o que escondemos, e projetar o detalhe aumentado cem vezes. (...) 8

Um botão de lapela sob um projetor, projetado, cem vezes aumentado, torna-se um planeta irradiante. Um lirismo completamente novo do objeto transformado vem ao mundo, uma plástica vai ser fundada sobre esses novos fatos, sobre essa nova verdade. Nessa perspectiva, a imagem cinematográfica passaria a ser configurada em uma outra lógica, não-racional e não realista, uma lógica própria do inconsciente, à qual somente se tem acesso pela arte e pelo sonho. Poderíamos apontar outros movimentos que atribuíram, o longo da história do cinema, funções expressivas distintas às imagens em movimento, cada uma delas pedagógica, a seu modo. Poderíamos mencionar, por exemplo, os longos planos-seqüência da Nouvelle Vague, feitos com câmera parada e luz direta, com o intuito de quebrar o prazer de uma fruição tranqüila e segura, para oferecer em troca, ao espectador, tempo e possibilidades melhores de apropriar dos significados e refletir sobre a experiência. Ou das imagens sem retórica do neo-realismo italiano, da imagem capturada com câmera na mão e luz estourada da estética da fome, do Cinema Novo ou dos muitos litros de sangue do cinema de horror dos anos 80, cada uma delas pedagógica a seu modo. Cabe assinalar então a complexidade desse sistema, que se expressa em imagens pedagógicas por natureza. Para a artista plástica, Faiga Ostrower, a noção de complexidade na arte refere-se ao modo específico pelo qual se interligam os 9

componentes, estabelecendo-se um equilíbrio dinâmico um equilíbrio ativo, nunca passivo ou mecânico. Em vez de uma combinação de fatores aleatórios e desconexos (...), lidamos com configurações que apresentam um alto grau de integração coerente. Segundo a autora, dessa integração de múltiplos componentes surgem novas totalidades, uma configuração com novas características e propriedades (...), cujo caráter é qualitativo, nãoquantitativo, fundamentando-se em processos recíprocos e reiterativos, isto é, não-lineares, e por isso mesmo nem sempre mensuráveis, previsíveis ou programáveis. Trata-se, então, de sínteses sucessivas que resultam de processos de transformação e não de somatório, o que as torna irreversíveis a um estado anterior e irredutíveis aos componentes anteriores. Por serem sínteses, diz Faiga Ostrower, as formas artísticas visuais podem expressar algo que ultrapassa a verbalização discursiva: elas captam a fluidez e a riqueza de nossas vivências, a interpenetração de sentimentos e emoções por vezes contrastantes ou até mesmo opostos, sem reduzir ou esquematizá-los. Nessas formas, a arte incorpora verdades sobre o viver, cuja profundidade ultrapassa o pensamento lógico racional e na qual uma análise jamais poderia penetrar. Para a artista, quanto mais densas forem as formas, quanto mais complexas em sua estrutura e seu equilíbrio, tanto mais rico há de se tornar seu conteúdo, mais impregnado de significados. Permitirá sempre novas interpretações, que cada um poderá fazer de acordo 10

com suas experiências de vida, ao recriar a obra através de sua própria sensibilidade. Faiga defende a tese de que para serem expressivas as formas de arte precisam ter um mínimo de complexidade, em termos qualitativos, relativo a cada caso particular: um mínimo de tensões, de ritmos, de estrutura, de equilíbrio formal. Abaixo desse mínimo, as formas se tornariam pobres, tediosas, inexpressivas, refletindo pobreza de espírito e de sensibilidade e um vazio de conteúdos. Desse modo, a complexidade pode ser tomada como critério de avaliação de qualidade artística. De acordo com Ostrower, é nos níveis estruturais mais elevados e complexos que são elaborados os processos criativos de nossa mente, pois a grande complexidade permite que se formulem mais livremente novas configurações, novas formas, novas hipóteses, cujas ordenações contenham uma amplitude maior de significados. E isso é válido tanto para a realização quanto para a fruição da obra. Os processos de percepção têm como um de suas principais características a produção de sínteses sucessivas, que transformam umas às outras na medida em que integram e recombinam novos componentes, configurando novas totalidades. Assim, passamos de uma configuração à outra, de um determinado estado de complexidade à outro, sempre integrando dados diversos e interligando-os em combinações que façam sentido para nós. No contexto tratado aqui, pode-se dizer, então, que imagens fílmicas com configurações mais complexas dos elementos que as compõem oferecem ao espectador maiores e melhores possibilidades de 11

interpretação, de elaboração e de produção de novas sínteses o que, de certo modo, determinaria o caráter mais ou menos pedagógico que ela pode vir a ter. Entretanto, seja qual for a pedagogia, o cinema segue ensinando coisas sobre a vida e sobre a morte, coisas sobre o mundo natural e o mundo social e muitas, mas muitas coisas mesmo sobre a humanidade, sua história, suas ruínas, suas culturas, seus afetos e contradições e sobre os mistérios imperscrutáveis da alma humana. O cinema dotou o homem com um olho mais maravilhoso que o olho facetado da mosca. Cem mundos, mil movimentos, um milhão de dramas entram simultaneamente dentro do campo de ação desse olho (Blaise Cendrars). Os textos de cineastas de vanguarda, citados neste texto, encontramse publicados na Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo, editada pelo Arquivo Nacional, em 2006. Os fragmentos de texto de Faiga Ostrower foram extraídos do livro A sensibilidade do intelecto, publicado pela Editora Campus. 12