A RELAÇÃO PROFESSOR SURDO / ALUNO SURDO EM SALA DE AULA

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Transcrição:

A RELAÇÃO PROFESSOR SURDO / ALUNO SURDO EM SALA DE AULA MÔNICA ASTUTO LOPES MARTINS Núcleo de Estudos e Pesquisas: Formação de Professores Mestranda Orientadora Profª Drª Cristina Broglia Feitosa de Lacerda Resumo Nesse artigo procuro destacar a relação do professor surdo com o aluno também surdo, em sala de aula, nos anos iniciais do ensino fundamental. O principal interesse reside em sua atuação como responsável pela formação integral do aluno surdo, utilizando a língua de sinais como língua de instrução no processo de desenvolvimento da linguagem e compreensão dos conceitos, também marcados nas práticas escolares pela língua portuguesa. O foco está no espaço que pode e deve ser ocupado por professores surdos, não apenas na função de instrutores, mas, como aquele que em sua língua de domínio, a LIBRAS, sirva de modelo na construção da subjetividade e interação entre descobertas e as práxis que ocorrem no contexto de sala de aula. Através de uma pesquisa realizada durante um semestre, junto a um grupo de alunos surdos (com idades variando entre 8 a 11 anos), em uma escola da rede municipal de um município de grande porte, me coloquei na condição de professor surdo, professorpesquisador, a fim de conhecer como são os modos de apreensão dos conteúdos numa relação compartilhada pela LIBRAS. Os dados obtidos permitem análises preliminares sobre as ações de ensinar, desse docente surdo, em sua própria língua de sinais e modos de construção de conhecimentos revelados pelos alunos surdos neste contexto. Palavras-chave: Professor Surdo, LIBRAS, Subjetividade, Produção de conhecimentos, interação, dialogia. Introdução A educação de surdos tem passado por mudanças e transformações de concepções filosóficas, principalmente com a criação e regulamentação de leis, decretos, portarias que garantem aos surdos, seus direitos de ir e vir: à escola, ao lazer, ao trabalho e enfim, à sua cidadania plena. Mas, no caso da escolarização de crianças surdas, a maior mobilização está no novo paradigma que é o bilingüismo 1. Devemos lembrar-nos da importância das leis como a Lei nº 10.436 de 24/04/2002, que reconheceu e oficializou a língua de sinais da comunidade surda em todo o território brasileiro; o Decreto federal nº 5.626 de 22/12/2005, que regulamentou e aprimorou a referida lei, no qual estão presentes parágrafos e itens que prevêem a presença do professor surdo no contexto educacional. No capitulo VI, art.22, item I e parágrafo 1º do item II, está prevista que para a Educação Infantil e para as séries iniciais do Ensino Fundamental a língua de instrução em sala de aula para alunos surdos deva ser a LIBRAS 2, conduzida por um professor bilíngüe. No capítulo III, neste mesmo decreto, sobre a formação do professor de Libras e do Instrutor de Libras artigo 5º, a formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, diz que deve ser realizada em curso de 1 Bilingüismo é uma filosofia educacional que prioriza a aprendizagem e o uso de duas línguas com regras distintas e próprias: a língua de sinais como L1 e a língua portuguesa como segunda língua (L2). Deve-se desenvolver material e metodologias diferentes para o ensino das duas línguas. 2 LIBRAS Língua Brasileira de Sinais, é uma sigla reconhecida oficialmente pelo MEC e pela Federação Nacional de Educação de Surdos. 1

Pedagogia ou curso normal superior, onde a Libras e a Língua Portuguesa escrita tenham se constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngüe. Diz ainda que as pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos. Mas o problema é a carência de professores surdos e/ou pedagogos surdos atuando nas escolas, ministrando os conteúdos curriculares para alunos surdos. Assim a presença de professores surdos bilíngües nas escolas é ainda tímida. Esta prática é mais comum na região sul do país ou em algumas instituições especializadas. Todavia, em geral, esses profissionais são responsáveis apenas por ministrarem conteúdos referentes à surdez como aspectos ligados a cultura surda (teatro de surdos, piadas, artes, pintura, literatura surda, etc.) na construção de uma identidade positiva em relação à surdez; no ensino da Língua de Sinais, ou são designados a trabalharem com alunos surdos, em idades avançadas, como nos projetos de educação de jovens e adultos. Poucas vezes vemos o professor surdo atuando como regente de classe sendo o responsável pela formação mais ampla de alunos surdos. O professor é um ator principal das ações de ensino, e justamente por isso precisa construir uma identidade profissional sólida. O jeito de ensinar, o modo como ele vê as suas crenças, seus pensamentos, suas idéias, sua constituição como profissional são básicos para uma atuação conseqüente. Os saberes docentes 3 que ele constrói ao longo do exercício em sua atuação como tal, também são fundamentais nessa formação. A capacidade de se ensinar conteúdos curriculares na própria língua de sinais e, dos alunos surdos se constituírem e produzirem conhecimentos e significados numa relação compartilhada pela LIBRAS, se tornará real na medida que, forem oportunizados os contatos entre professores surdos e alunos surdos nas escolas que estes sejam matriculados. O professor surdo é um adulto que identifica com os alunos surdos e possibilita a compreensão e as reflexões metalingüística entre ambas línguas (Giordani, 2004 e Lebedeff, 2004). A Língua de Sinais - língua natural (L1), é muito importante para os processos mentais e linguísticos da criança surda, pois possibilita o desenvolvimento do pensamento, da linguagem e ajuda na compreensão da outra língua, a língua portuguesa (L2), que dará sentido e suporte para que a criança surda possa compreender e refletir sobre os conceitos em outra língua, desde que sejam estimuladas às trocas com o outro. É nesse processo dialógico que a criança vai se constituindo na sua subjetividade e produzindo novos conhecimentos. Bakhtin afirma que a linguagem só é produzida no contexto histórico-cultural, quando a criança começa a compreender os signos dentro de uma prática discursiva. Isto é o que chamamos de interação verbal, onde há a comunicação entre sujeitos. Na maior parte das vezes, as atividades ou estratégias planejadas e elaboradas por professores ouvintes, não estão permeadas por metodologias adequadas para surdos por não priorizarem as experiências visuais desses alunos, no processo de letramento e aprendizagem de L2. Nessa condição é preciso reconhecer a criança surda como um sujeito estrangeiro em seu próprio país e, que necessita de estratégias singulares de ensino, para propiciar uma real aprendizagem. Perlin (2006, p.77), os alunos surdos que freqüentam aulas com professores surdos são mais assíduos, participantes e permanecem na escola com devido apreço e aprendizagem. 3 Segundo Tardif (2002), o conjunto de saberes é o que caracteriza e personaliza a prática, não são construídos somente na prática, eles são elaborados, construídos, reformulados, desde o inicio da formação do professor e segue ao longo do seu trabalho, da sua docência, os seus conhecimentos que podem sofrer alterações durante toda a sua vida profissional. 2

Procuro focalizar na pesquisa realizada, aspectos históricos-culturais que Vygostki ressalta quando fala na Zona de Desenvolvimento Proximal e na mediação de signos, e nas questões que Bakhtin levanta quando diz que toda língua é uma construção histórica e cultural em transformação, daí a importância de analisar não só aspectos gramaticais da L1 e da L2 mas sim, de toda dinâmica comunicativa produzida, tanto pelos alunos surdos como pelo professor surdo (no caso, eu mesma) através dos enunciados. Toda palavra está sempre carregada de um conteúdo vivencial (Bakhtin, 1995, p.95). Os significados são construídos socialmente, durante as relações dialógicas com o outro e os objetos, por isso, deve-se analisar o processo de ensino-aprendizagem da segunda língua (L2) e a aquisição da língua de sinais (L1), dentro de uma situação discursiva e não fragmentada. Observar a língua só por meio de vocábulos ou pelo aspecto gramatical só leva a prejudicar a criança na internalização de conceitos e significados. Assim, cada gesto, movimento, escrita, desenho, soletração, sinais em LIBRAS, fala, são ENUNCIADOS, que carregam uma posição ideológica, experiências, identidade, valores, bagagem cultural, postura do professor e outras significações que são construídas nas relações. E muitos destes aspectos podem e precisam ser melhor conhecidos na relação professor surdo/aluno surdo, por isso deve pensar-se em conhecer melhor esta realidade, para partindo dela propor modos mais adequados de formar professores surdos, e de ensinar a língua portuguesa para alunos surdos. O contexto da pesquisa Para este estudo procurei focalizar o espaço que pode e deve ser ocupado por professores surdos, não apenas na função de instrutores, mas, como aquele que em sua língua de domínio, a LIBRAS, sirva de modelo na construção da subjetividade e interação entre descobertas e as práxis que ocorrem no contexto de sala de aula. Assim, durante um semestre, foi acompanhada a atuação de um professor surdo (a própria pesquisadora) junto a um grupo de alunos surdos (com idades variando entre 8 a 11 anos), em uma escola da rede municipal de um município de grande porte. Para a pesquisa me coloquei na condição de professor surdo, professor-pesquisador, a fim de conhecer e refletir sobre os modos de apreensão dos conteúdos sobre a escrita da língua portuguesa numa relação compartilhada pela LIBRAS. Destaco a seguir uma situação vivenciada no contexto de sala de aula e partindo dela teço algumas reflexões preliminares. Em uma aula estávamos trabalhando com a história do Patinho Feio e a partir do texto fomos elaborando os conceitos de relação familiar, diminutivo e outros e neste contexto escrevi no quadro a palavra filhote. O aluno G. levantou-se e veio junto a mim, e soletrou (usando o recurso da dactilologia) a palavra BEBE. Nesse momento, interferi dizendo que bebê referia-se às pessoas, como eles quando mais novos nascidos de suas mães, e que o patinho da história, era do reino animal, que nascia do ovo, e que, portanto o termo adequado a ele era o nome de filhote, que é sinalizado na LIBRAS: FILHO + Classificador de pequeno. Mais tarde, numa outra aula, quando tratávamos de outro assunto, esse mesmo aluno G. foi protagonista de um acontecimento interessante. O aluno I. estava descrevendo uma cena sobre um galo que tinha, e que havia morrido, começou a narrar a trajetória de vida da ave. Usando gestos, mímicas e LIBRAS, contou sobre o nascimento do animal, dizendo que a mãegalinha (mímica de asas batendo como as aves fazem), ficara grávida (usando gesto da 3

barriga crescendo como os seres humanos) e do nascimento (em língua de sinais, nascimento, como nasce um bebê, inclusive usando o gesto de ninar o bebê). Ao ver este relato, o aluno G. levantou-se imediatamente e começou a dizer que ele estava errado, que um filhote de galinha (sinalizando FILHO e GALINHA) não nascia desse jeito. Entre gestos, mímica e língua de sinais, começou a descrever uma galinha colocando ovo (de cócoras) e dali surgir o pintinho (utilizando os classificadores da língua de sinais para ovo se quebrando e saindo o filhote de dentro). Após esta intervenção, foi sentar-se dizendo que seu colega era burro e não sabia como narrar direito o nascimento de um filhote de galinha. Percebi que o aluno corrigido ficou olhando e que não contestara a correção realizada pelo colega, como que aceitando esta versão, indo sentar-se no seu lugar, dando como encerrada a história. O aluno G. parece ter apropriado-se do conceito de filhote proposto pela professora surda, e buscado compartilhá-lo com seu colega I. Ele se colocou de forma segura, mostrando sua capacidade de argumentar para convencer o amigo de seu novo conhecimento. A professora pode acompanhar a discussão e perceber os novos sentidos que foram se constituindo para seus alunos. A língua portuguesa foi responsável por acrescentar não apenas uma nova palavra: Filhote, mas por favorecer expansão de conhecimento de mundo construído com e pela LIBRAS nas interações que o professor surdo favoreceu neste espaço escolar efetivamente bilíngue. Antes de chegar à sala de aula, encontrei durante minha atuação como professora, alunos que estavam há muitos anos na etapa de alfabetização, que não trocavam diálogos nem entre si, nem comigo, e cujos rostos só mostravam um vazio e muitas dúvidas. Nessa experiência de pesquisa atual, numa sala de aula em tempos de mudanças, encontrei alunos com menos tempo de permanência na alfabetização, apresentando mais comunicação e interação propiciada pela presença da LIBRAS. Observei também lacunas e alternâncias na aquisição e no desenvolvimento da linguagem escrita, mas em uma situação de processo bem mais rica que as acompanhadas anteriormente quando apenas o Português era valorizado em sala de aula. O professor surdo, precisa ser mais do que uma referência lingüística para os alunos surdos na sua comunicação. Ele pode ser um modelo de conhecimento e didática, se ele se preocupar em compreender os processos gerais de ensino e aprendizagem vivenciados pelos alunos surdos. Deve ser um provocador na construção e mediação dos signos presentes na vida cotidiana, para tornar mais significativo os conteúdos trabalhados em sala de aula. Tal mediação é tão necessária na promoção do desenvolvimento psico-linguistico-afetivo-social como também para a sua constituição histórico-cultural. Ilustrando este comentário, houve uma situação ocorrida durante uma atividade lúdica, cujo objetivo era levar os alunos a pensarem em palavras ou sinais que pudessem ser produzidos por eles. Os alunos jogavam dados (2) e de acordo com o número que era sorteado, eles contavam as casas de um jogo em que o caminho era composto de letras do alfabeto manual (dactilológico). Quando ocorreu cair na casa da letra H, eu, por entender que palavras da língua portuguesa que começam com esta letra são mais difíceis ou que seria necessário um conhecimento maior por parte das crianças, sugeri que sorteássemos outra letra. Qual não foi minha surpresa quando L., de onze anos, muito esperta, participante ativa em todas as atividades propostas, e que possuía um bom domínio da LIBRAS, dirigiu-se para a lousa e escreveu: www.hotmail.com. grifando a letra h. Ela mostrou ter compreendido a atividade, ter um conhecimento funcional sobre o universo da escrita, e ser usuária de computador e internet. Sua resposta favoreceu um diálogo interessante para todos ampliando 4

os conhecimentos de mundo e de escrita. (Cabe ressaltar que o uso da internet traz a língua inglesa para dentro de nossas atividades cotidianas e, neste sentido, a discussão sobre palavras em Português, empréstimos lingüísticos entre outros aspectos se faz cada vez mais necessária às práticas escolares). Depois deste acontecimento, a aluna aprendeu a usar o MSN (ferramenta para troca de mensagens na internet), não com proficiência na linguagem escrita, mas usando com seus recursos a escrita para uma importante função social. E um certo dia, quando eu estava em casa me comunicando com meus amigos via internet, percebi que alguém se dirigia a mim com Oi, escola, escola. Vi então que era a aluna L. e tentei estabelecer com ela uma comunicação inteligível. No início foi complicado por questões de apropriação de vocabulários e códigos pertinentes à área da informática, mas, nos encontros posteriores que tivemos em sala de aula, passei para ela dicas e recursos imagéticos existentes, que poderiam ajudar na comunicação. Soube por outra professora, bilíngüe, que a aluna procurou-a e pediu o seu endereço eletrônico para se comunicar com ela, via MSN, e que esta tem percebido o crescimento dessa aluna, tanto em língua de sinais, como na língua portuguesa. A afirmação de Bakhtin me aprece bastante adequada para refletirmos sobre esta situação: Toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente, a produz (1992, p.290) Também Vygotski (1995) reconhece que a criança significa elementos a partir das relações construídas no cotidiano. A mediação então é uma ferramenta que também faz com que as crianças realizem descobertas e escolhas, além de instigar respostas durante o processo dialógico, no letramento da L1(primeira língua) e L2 (segunda língua) em sala de aula. Tudo o que foi observado no decorrer da pesquisa, foi registrado em vídeogravações, levando-se em consideração todas as expressões faciais e corporais, gestos, movimentos, sinais e intenções comunicativas com o objetivo de interligar as várias ações num eixo que conduza a um novo caminho garantido pelas relações, capaz de nortear o ensino de uma segunda língua. A dificuldade na experiência com a LIBRAS demonstra, entre outros, que não basta que se domine processos de sinalização e tradução. A língua de sinais, por abranger muitos elementos, requer do professor, uma atenção visual que permita perceber as sutilezas nas expressões dos alunos que são fundamentais para se entender os enunciados que estão sendo produzidos. As utilizações de recursos lingüísticos próprios dos professores surdos são evidentemente diferentes de professores ouvintes (Giordani, 2004; Viader, Pertusa e Vinardell, 1999). O fato de ser surda e estar durante este período na pesquisa, assumindo o lugar de professora junto a esses alunos surdos, fez com que fossem produzidos, entre outros sentimentos, motivação, curiosidade, interação e iniciativa dos alunos, tanto nas atividades que exigiam mais, pela complexidade no ensino da L2, assim como nas narrativas de histórias envolvendo língua de sinais (L1). A diferença está no olhar, pois o sujeito surdo, no caso, professor surdo, pode perceber, além das dificuldades. Por identificação e interlocução. É capaz de compreender os signos lingüísticos construídos durante a dialogia, podendo contribuir para um letramento bilíngüe, marcando assim sua história na educação. Pesquisar é um processo de criação e não de mera constatação. A originalidade da pesquisa está na originalidade do olhar (Costa, 2002, p.152). 5

Referências Bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1992. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1995. BRASIL. Decreto nº. 5.626. Regulamenta a Lei nº. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais Libras, e o art. 10 da Lei nº. 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Publicada no Diário Oficial da União em 22/12/2005. COSTA, Marisa Vorraber (Org) e VEIGA-NETO, Alfredo. Introdução: Novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2002. GIORDANI, Liliane F. Encontros e desencontros da língua escrita na educação de surdos. In: LODI, A.C.B; HARRISON, K.M.P; CAMPOS, S.R.L; (orgs). Leitura e escrita no contexto da diversidade. Porto Alegre: Editora Mediação, 2004. LEBEDEFF, Tatiana B. Práticas de Letramento na Pré-Escola de Surdos: reflexões sobre a importância de contar histórias. In: THOMA, Adriana e LOPES, Maura Corsini (Orgs). A invenção da surdez cultura, alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul: Editora EDUNISC, 2004. PERLIN, Gladis. Surdos: cultura e pedagogia. In: THOMA, A.S; LOPES, M. C. (orgs). A invenção da surdez II: espaços e tempos de aprendizagem na educação de surdos. Santa Cruz do Sul: Editora EDUNISC, 2006, p.63-84. VIADER, M.P.F.; PERTUSA, E.; VINARDELL, M. Importância das estratégias e recursos da professora surda no processo de ensino aprendizagem da língua escrita. In: SKLIAR, Carlos (Org.) Atualidade da educação bilíngüe para surdos: interfaces entre pedagogia e lingüística.vol.2. Porto Alegre: Editora Mediação, 1999. p.47-57. VYGOTSKI, Lev S. Genesis de las funciones psíquicas superiores. História del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Obras Escogidas, Volume III Madrid: Visor, 1995, pp. 139-182. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis,RJ: Editora Vozes, 2002. 6