II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional



Documentos relacionados
Os templos religiosos e a formação das Minas Gerais

CODIFICAÇÃO DO BANCO DE DADOS PROJETO AFRICANOS SENHORES DE SUAS CASAS

Os negros na formação do Brasil PROFESSORA: ADRIANA MOREIRA

Memórias de um Brasil holandês. 1. Responda: a) Qual é o período da história do Brasil retratado nesta canção?

Vida religiosa e mudanças sociais no Distrito Diamantino nos séculos XVIII e XIX

História do Brasil Colônia. Profª Maria Auxiliadora

6ª 10 4/out/11 HISTÓRIA 4º. Valor: 80

De que jeito se governava a Colônia

O nosso jeito de falar, de gesticular, de cultuar e rezar, de ser e de viver, é profundamente marcado pela presença dos africanos no Brasil.

AS MULHERES NAS IRMANDADES DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS DE SERGIPE ( )

História. Programação 3. bimestre. Temas de estudo

1. Introdução. 1.1 Contextualização do problema e questão-problema

Projeto integrado 7º ciclo GDG 2012 Álvaro Galdino

A GLOBALIZAÇÃO UM MUNDO EM MUDANÇA

Local: Cais do Valongo Rio de Janeiro - (RJ)

ÁFRICA SUBSAARIANA: Características Básicas, Partilha Europeia e Alguns Conflitos. Rui Ribeiro de Campos

Prova bimestral 4 o ANO 2 o BIMESTRE

São Paulo/SP - Planejamento urbano deve levar em conta o morador da rua

Uma perspectiva de ensino para as áreas de conhecimento escolar HISTÓRIA

COLÉGIO O BOM PASTOR PROF. RAFAEL CARLOS SOCIOLOGIA 3º ANO. Material Complementar Módulos 01 a 05: Os modos de produção.

PROJETO DE LEI Nº, de (Do Sr. Dr. Marcelo Itagiba)

ESTUDO DOS NOMES DE LUGARES (ACIDENTES HUMANOS) E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO DE HISTÓRIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Mineração e a Crise do Sistema Colonial. Prof. Osvaldo

2 Teoria de desastres

ÁREA: RESENHA CRÍTICA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA UESB PROGRAMA DE EDUCAÇÃO TUTORIAL EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS PET ECONOMIA UESB

A DOMINAÇÃO JESUÍTICA E O INÍCIO DA LITERATURA NACIONAL

História/15 8º ano Turma: 1º trimestre Nome: Data: / /

100 anos do Arquivo Histórico Municipal: Painel 11 / 15 um olhar sobre um precioso acervo

AS QUESTÕES OBRIGATORIAMENTE DEVEM SER ENTREGUES EM UMA FOLHA À PARTE COM ESTA EM ANEXO.

Três grandes impérios, além de dezenas de outros povos, que encontravam-se subjugados aos grandes centros populacionais, viviam nas regiões almejadas

O Sindicato de trabalhadores rurais de Ubatã e sua contribuição para a defesa dos interesses da classe trabalhadora rural

ABSTRACT. Diagnóstico e situação das cooperativas de produção no Paraguai

História - 8º Ano Professor Sérgio A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 10 de Junho de 2010

O Planejamento Participativo

Área de Intervenção IV: Qualidade de vida do idoso

Organização em Enfermagem

FACULDADE DE ENSINO SUPERIOR DE LINHARES - FACELI SELEÇÃO E COMENTÁRIO DE CENAS DO FILME GLADIADOR LINHARES

Atividade Mercosul da Marcha Mundial das Mulheres uma prática social da educação popular

O Barroco no Brasil. Capitulo 11

Três exemplos de sistematização de experiências

O USO DE TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO: A UTILIZAÇÃO DO CINEMA COMO FONTE HISTÓRICA Leandro Batista de Araujo* RESUMO: Atualmente constata-se a importância

Gabarito 7º Simulado Humanas

GRUPOS NO JUDAISMO NA ÉPOCA DE JESUS

por Brígida Carla Malandrino * [brigidamalandrino por Ênio José da Costa Brito ** [brbrito

PRECIOSA DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NO VALE DO RIO DAS MORTES 1

SIMULADO 4 JORNAL EXTRA ESCOLAS TÉCNICAS HISTÓRIA

Curso: Diagnóstico Comunitário Participativo.

Colégio dos Santos Anjos Avenida Iraí, 1330 Planalto Paulista A Serviço da Vida por Amor

Para Refletir... De onde vem essa tal Educação Ambiental?

A PEDAGOGIA COMO CULTURA, A CULTURA COMO PEDAGOGIA. Gisela Cavalcanti João Maciel

A educação no Rio de Janeiro

Análise Econômica do Mercado de Resseguro no Brasil

A PRÁTICA DO PRECEITO: AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO

agora a algumas questões Quem pode receber o

MECA a cidade Santa é um centro religioso, onde os árabes fazem a peregrinação ( visita a um lugar sagrado) para orar ao Deus Alá

Missão Arronches 2012 Artigo Cluny

BOLSA FAMÍLIA Relatório-SÍNTESE. 53

Política de Divulgação de Atos ou Fatos Relevantes da Quality Software S.A. ( Política de Divulgação )

Eixo Anhanguera-Bandeirantes virou polo lean, diz especialista

O professor que ensina matemática no 5º ano do Ensino Fundamental e a organização do ensino

CÓDIGO CRÉDITOS PERÍODO PRÉ-REQUISITO TURMA ANO INTRODUÇÃO

FORMAÇÃO, LOCALIZAÇÃO E DIVISÃO POLÍTICA DO BRASIL

CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES Niterói RJ: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012, ISSN X

O PERFIL DO FIÉL NO CULTO AO SANTO POPULAR: O CASO CLODIMAR PEDROSA LÔ EM MARINGÁ.

O Antigo Testamento tem como seus primeiros livros a TORÀ, ou Livro das leis. É um conjunto de 5 livros.

11. EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Meu nome é José Guilherme Monteiro Paixão. Nasci em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 1957.

500 anos: O Brasil- Um novo mundo na TV

O Porto do Rio de Janeiro: reflexões sobre sua modernização e seu impacto social frente suas comunidades circunvizinhas

ESTRATÉGIAS CORPORATIVAS COMPARADAS CMI-CEIC

TRABALHO VOLUNTÁRIO VISITA AO LAR DA TERCEIRA IDADE DONA VILMA

Mosaicos #7 Escolhendo o caminho a seguir Hb 13:8-9. I A primeira ideia do texto é o apelo à firmeza da fé.

PROGRAMA DINHEIRO DIRETO NA ESCOLA: um estudo nas redes municipal de Porto Alegre e estadual do Rio Grande do Sul

FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Colégio Marista São José Montes Claros MG Prof. Sebastião Abiceu 7º ano

CABO VERDE: A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA E AS INSTÂNCIAS SUPERIORES DE PODER

Situação Geográfica e Demográfica

RETROSPECTIVA HISTÓRICA

PLANO ESTRATÉGICO (REVISTO) VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA, ATRAVÉS DE UMA ECONOMIA SUSTENTÁVEL

CARTA INTERNACIONAL. Indice:

A partir desse texto e de seus conhecimentos, responda às questões propostas.

ESTRADA DE FERRO BAHIA E MINAS RELATÓRIOS DE PEDRO VERSIANI

INTRODUÇÃO. Efeitos Regulatórios e Programas Compensatórios de Segurança Alimentar no Brasil. Uma análise em profundidade.

81AB2F7556 DISCURSO PROFERIDO PELO SENHOR DEPUTADO LUIZ CARLOS HAULY NA SESSÃO DE 05 DE JUNHO DE Senhor Presidente, Senhoras Deputadas,

Europa no Século XIX FRANÇA RESTAURAÇÃO DA DINASTIA BOURBON LUÍS XVIII CARLOS X LUÍS FELIPE ( )

Sugestões de avaliação. Geografia 9 o ano Unidade 8

GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO (SEPLAN) Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE)

OLIMPIADAS DE MATEMÁTICA E O DESPERTAR PELO PRAZER DE ESTUDAR MATEMÁTICA

Ferreira Barros & Filhos, Lda.

ADMINISTRAÇÃO GERAL MOTIVAÇÃO

Opinião N13 O DEBATE SOBRE AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL E NA ÁFRICA DO SUL 1

Entre 1998 e 2001, a freqüência escolar aumentou bastante no Brasil. Em 1998, 97% das

FICHA BIBLIOGRÁFICA. Título: Perfil da Mulher Metalúrgica do ABC. Autoria: Subseção DIEESE/Metalúrgicos do ABC

Aula5 LEGISLAÇÃO PATRIMONIAL. Verônica Maria Meneses Nunes Luís Eduardo Pina Lima

Mudanças Socioespaciais em um Mundo Globalizado

Núcleo Fé & Cultura PUC-SP. A encíclica. Caritas in veritate. de Bento XVI

6ª CONFERÊNCIA ESTADUAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL SUSTENTÁVEL TEXTO BASE 4 QUEM SOMOS NÓS OS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

Transcrição:

II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional Nações Africanas nas Irmandades Negras Mineiras do Século XVIII Juliana Aparecida Lemos Lacet * Introdução Os projetos de conquista da África e do Novo Mundo, arquitetados pelos portugueses a partir do século XV, estavam estreitamente ligados à formulação de uma cultura moderna que incluía um conjunto de situações ligadas ao tráfico de escravos, ao comércio de mercadorias e à colonização. O tráfico de escravos entre a África e a América foi, sem dúvida, um dos circuitos comerciais mais importantes da história da humanidade. As estimativas em torno dos escravos traficados para o Brasil giraram em torno de três milhões e meio de africanos. Desses, a metade foi traficada ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, cabendo ao século XVIII um total aproximado de um milhão e setecentos mil escravos 1. Estudos recentes dão conta de que algo em torno de doze milhões de africanos foram negociados entre os séculos XVI e XIX. Desse total, cerca de quatro milhões apenas para o Brasil 2. Em fins do século XVIII a descoberta da região mineradora impulsionou ainda mais a procura por escravos. Nos primeiros vinte anos da mineração entraram em Minas algo em torno de 50 mil escravos. Em 1717 a população escrava na região girava em torno de 30.000 almas e em 1738 atingiu sua maior cifra, 101.607 escravos, ao lado de 1.206 forros 3. Pesquisas desenvolvidas por David Eltis, Stephen Behrendt e David Richardson têm permitido estabelecer as flutuações da economia escravista, reafirmando que a mineração, e não a plantation, constituiu-se como o grande eixo * Mestranda em História na Universidade Federal da Bahia. julianalacet@ig.com.br 1 Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico, São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1975, p. 279. 2 David Eltis; Stephen Behrendt e David Richardson, A participação dos países da Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências, Afro-Ásia, 24 (2000). p. 9-50. 3 Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África (especialmente Angola) e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995. 1

consumidor de escravos. Daí a importância da economia mineradora para o tráfico de escravos 4. A atividade mineradora e as circunstâncias por ela geradas contribuíram imensamente para a ordenação da sociedade mineira. A realidade das Minas do século XVIII era notadamente urbana, sua população era composta pelos ameríndios que ali já estavam, pelos que compunham as bandeiras paulistas, por africanos das mais diversas nações, por brancos; pessoas vindas de outras regiões da colônia, mineradores, comerciantes e religiosos, que faziam daquela região uma área essencialmente marcada pela diversidade. Dentre os critérios de diferenciação social era preponderante o da cor da pele. O grupo dominante, as chamadas "elites" eram representadas pelos "brancos". Os "pretos" eram escravos e libertos, e entre estes existiam também os "pardos" que ficavam entre os "pretos" e os "brancos" 5. Estas designações seguiam o padrão do contexto colonial brasileiro, no qual a cor era entendida como elemento de construção de uma identidade social que engendrava uma hierarquização refletida no cotidiano, nas várias instituições, na coletividade em geral. A diferenciação social, ou seja, a diferença de status entre escravo e senhor, livre ou cativo, preto ou branco, esteve presente nas mais diversas esferas do cotidiano, inclusive no âmbito religioso; as irmandades religiosas, por exemplo, foram locais onde se encontravam marcadas essas distinções. As irmandades foram uma das principais instituições presentes na colônia, principalmente nas Minas Gerais, onde em razão da proibição da fixação de ordens religiosas, a assistência social e o culto católico foram de responsabilidade dos leigos. Surgidas na Europa medieval, as irmandades difundiram-se no contexto da reforma tridentina. De feição predominantemente leiga, essas associações tinham como fim o culto a um santo de devoção e se dedicavam a obras de caridade voltadas para seus próprios membros ou para pessoas carentes não associadas. Foram importantes também na construção das igrejas e na realização das festas 6. Seus associados, os irmãos, contribuíam com jóias e taxas anuais, o que lhes garantia assistência quando doentes ou a realização de seus funerais. Estes sodalícios erguiam-se sob o consentimento do Estado e detinham todo um aparato legal, compromissos e 4 Manolo Florentino, Redescobertas da Escravidão, Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 05 de dezembro de 2004, Caderno Mais!. 5 Hebe Mattos de Castro, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista- Brasil, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995. p. 104. 6 Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil colonial (1500-180), Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 316-317.. 2

hierarquia. Na construção das igrejas e na realização das festas as irmandades também tiveram papel muito importante. No contexto das Minas Gerais do século XVIII as irmandades leigas alcançaram grande importância, por isso, a compreensão de suas funções nas Minas, não pode prescindir do estudo dos aspectos da vida cotidiana daquele período histórico. É inevitável que o estudo das irmandades leigas esteja inserido nas condições do poder político, social e econômico vigentes na época, uma vez que, uma análise desconexa faria com que perdêssemos suas dimensões religioso-culturais. O papel das duas mais importantes instituições da cultura portuguesa, que se instalaram em Minas, Igreja e Estado parecem não ter se cumprido efetivamente. O Estado Absolutista português impôs à capitania mineira uma política religiosa que não permitia a presença e fixação de ordens religiosas, sob alegação de que os religiosos eram os responsáveis pelo extravio do ouro e por insuflar o não pagamento de impostos. O governo metropolitano, apesar da maciça cobrança tributária, deixava de cumprir necessidades básicas da população, ficava então a cargo dos leigos o preenchimento de diversas lacunas da vida social e espiritual. Neste sentido, como destaca Caio Boschi, eram as irmandades que se propunham a facilitar a vida social, desenvolvendo inúmeras tarefas que, pelo menos em princípio, seriam da alçada do poder público. Assim as irmandades se afirmavam como uma das principais forças sociais presentes em Minas colonial 7. Como já dissemos, o principal critério de identidade na sociedade colonial era a classificação social decorrente da cor da pele, em combinação com a "nacionalidade", e isto se deu também nas irmandades. Existiam irmandades de brancos, de mulatos e pretos. As de brancos podiam ser de portugueses ou de brasileiros, as de pretos se subdividiam nas de mulatos e africanos, cativos ou não. As irmandades de escravos, chamadas irmandades de cor, erguidas por escravos e forros, homens e mulheres, obtiveram grande representatividade na sociedade de colonial visto que foram um dos únicos ou talvez o único meio de associação legal permitido aos escravos. Analisando as irmandades negras baianas João José Reis afirma que elas eram uma espécie de família ritual, em que africanos desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente 8 7 Caio César Boschi, Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais, São Paulo, Ática, 1986, p.21-29 8 João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 198. 3

Em torno dessas associações escravos e forros constituiriam formas de reorganização social no Novo Mundo através de mecanismos de solidariedade e formação de novas identidades. 1. As Nações Africanas e as Irmandades Com a quebra das relações familiares provocada pelo tráfico, os africanos buscaram reconstruir em novas bases, inclusive nas irmandades, os laços fundamentais que os uniam. Desembarcados no Brasil os escravos iriam, além de trabalhar, construir relações de amizade, de família, laços religiosos, entre outros. Muitas vezes estas alianças tinham como referencial os critérios de nação presentes em seus nomes. Estas nações ou etnias, tais como Angola, Benguela, Mina, Courana, Nagô, entre outras, presentes nos nomes dos escravos traficados para o Brasil, aparecem nas observações dos viajantes, nos documentos administrativos e da igreja e, geralmente correspondem a um sistema que compreende territórios, povos, principais mercados onde os escravos eram comercializados, ou portos de embarque no território africano. Estas formas de identificação atribuídas pelo colonizador aos escravos traficados eram muitas vezes incorporadas pelos africanos e em torno delas eram criadas novas identidades no cativeiro. Nas confrarias negras, a reunião de escravos e libertos de mesmas nações foi uma das formas encontradas para se recriar afinidades, já que aqui no Novo Mundo, os parâmetros atribuidores de identidades não eram os mesmos que vigoravam quando estes estavam em suas terras natais. Através das irmandades e baseados em critérios de grupo de procedência ou laços de nação 9 seus membros estabeleciam alianças e regras de convivência, formas de solidariedade e resistência. E, em muitas irmandades a designação nação constituía princípio básico para a organização e ingresso de novos irmãos. Foram várias as irmandades erguidas sob a égide das distinções étnicas na colônia. Em seus compromissos estas associações abriam suas portas para certas etnias 9 O conceito de grupo de procedência foi proposto por Soares para a análise dos grupos étnicos africanos na diáspora: Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, especialmente capítulo 3. Quanto ao termo laços de nação, refere-se aos trabalhos de Maria Inês Côrtes de Oliveira, Viver e morrer no meio dos seus, Revista USP, 28 (1995-96), pp. 174-193 e, The Reconstruction of Ethnicity in Bahia: The Case of the Nago in the Nineteenth Century, In: Paul Lovejoy e David Trotman (Eds.), Trans-Atlantic Dimention of Ethnicity in the African Diaspora, Black Atlantic Series, Continuum Press, London, U.K., 2002, pp. 158-180 4

e barravam outras. Em alguns casos, as irmandades permitiam a entrada de pessoas de qualquer origem, mas restringiam os cargos da mesa a uma origem específica. Em Salvador, por exemplo, na Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, permitia-se a entrada de pessoas de todas as origens até mesmo brancos e mulatos, mas somente os crioulos e os angolas poderiam ocupar os cargos da mesa. 10. No Rio de Janeiro as irmandades negras também estavam divididas por nações. Na Irmandade do Rosário se reuniam os angolas e os congos, na Irmandade da Lampadosa estavam os africanos do Gentio da Guiné, enquanto os minas se reuniam na irmandade de Santo Antônio da Mouraria e na de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Nos compromissos das irmandades da região mineradora se não observa a idéia de separação por etnias, mas o que nos chama atenção é que encontramos situações tensas na região entre os grupos étnicos de escravos. Como relata Boxer, o conde de Assumar notificou a Coroa, em 1719, de uma conspiração particularmente ampla, que pretendia massacre geral de todos os brancos, numa Sexta-feira Santa, quando estariam eles assistindo à missa e desprevenidos. A conspiração malogrou no último momento porque os minas (sudaneses ocidentais) e angolas (bantos) não chegaram a um acordo quanto a qual das duas raças iria fornecer o rei que pretendiam proclamar, depois do extermínio dos senhores. Esta rivalidade entre sudaneses e bantos constitui, igualmente, a razão principal do malogro de conspirações similares de escravos, em anos posteriores, das quais as de 1724 e 1756 foram potencialmente, as mais perigosas 11. A hipótese com a qual estamos trabalhando é de que, se os conflitos étnicos entre escravos existiam no interior daquela sociedade, não teriam desaparecido por completo nas irmandades. Apesar de conviverem numa mesma confraria os diferentes grupos étnicos estariam em processos contínuos de negociação de conflitos. Na tabela 1 podemos observar as várias nações africanas em Vila Rica no século XVIII. Considerando que as irmandades representavam lugares onde se exercia uma série de políticas de distribuição de poder e de participação na sociedade, políticas estas concebidas por diversos grupos étnicos, cada qual portador de uma lógica distinta de interpretação da realidade, estamos analisando a Irmandade do Rosário do Alto da Cruz, a partir dessa ótica, a de que os grupos étnicos são constituídos pela contradição, pela 10 João José Reis, Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão, Revista do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. vol.2. 3, (1997), pp. 6. 11 Charles Boxer, A idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, 2ª edição revista, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969,p.197 5

diferença entre o Eles e o Nós. Como destaca Fredrik Barth, a etnicidade, não pode ser concebida senão na fronteira do Nós, em contato ou confrontação, ou por contraste com Eles 12. 2. Vila Rica e a Irmandade Rosário dos Pretos do Alto da Cruz No primeiro quartel do setecentos o arraial de Vila Rica dividia-se em duas paróquias, a de Nossa Senhora do Pilar e a de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, cada qual dotada de vasta jurisdição, com inúmeras capelas na sede e na freguesia. (ver mapa) A irmandade que estudamos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Alto Cruz, pertencia à paróquia de Antônio Dias que tinha como matriz a igreja de Nossa Senhora da Conceição. Dentro desta matriz, surgiram várias irmandades: Nossa Senhora da Conceição, Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Boa Morte, de São Miguel e Almas, São José dos Bem Casados, Nossa Senhora do Terço, São Sebastião, São Gonçalo Garcia, Nossa Senhora das Dores, Mercês e a Ordem Terceira de São Francisco. Algumas delas construíram capelas próprias, dentre elas, o Rosário, objeto de nossa análise 13. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário foi constituída legalmente em 1719, na matriz, mas logo se dirigiu para a Capela do Padre Faria. Inicialmente na Capela de Padre Faria, a irmandade congregava brancos e negros, mas em virtude de desentendimentos, os negros, em 1733 construíram a capela de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, depois intitulada Santa Efigênia. 15. O nosso trabalho com esta irmandade teve início com em estudo monográfico no qual analisamos os rituais de morte no século XVIII, em Vila Rica, especialmente entre escravos e forros. A pesquisa até o momento, chama a atenção para a predominância de irmãos e irmãs de etnia mina, escravos e forros, sepultados pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em relação às outras etnias, tais como angola e benguela. 12 Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da Etnicidade seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Trad. Elcio Fernandes, São Paulo, Editora Unesp, 1997, p. 152-153. 13 Adalgisa Arantes Campos, Roteiro Sagrado: monumentos religiosos de Ouro Preto, Editora Francisco Inácio Peixoto. Belo Horizonte, 2000. p.7. 15 Adalgisa Arantes Campos. Roteiro Sagrado. p. 83. 6

Considerando todos os enterramentos de escravos da paróquia (tabela 2), observamos que a maioria dos escravos e escravas era, de fato, sepultada no adro/cemitério das capelas, havendo uma predominância do adro/cemitério da Matriz. A capela do Rosário, na qual estava instalada a irmandade por nós analisada, foi a que mais enterrou escravos em seu interior. Naquele período, havia a preocupação de não ser enterrado nos cemitérios, uma vez que este tipo de sepultamento significava perder as indulgências da sepultura na capela e as rezas dos irmãos que, cotidianamente, lá realizavam seus exercícios religiosos. No caso dos escravos e libertos, outra possibilidade pode ser acrescentada, a de ficar entre "parentes" depois da morte. A pesquisa encontra-se em fase inicial e a partir dos dados encontrados ainda não podemos tirar conclusões sobre as etnias escravas naquela irmandade. O que pretendemos agora é mapear os grupos étnicos dos irmãos e irmãs, escravos e exescravos, presentes na Irmandade no intuito de perceber as formas de comunicação, conflito, negociação cultural e, as alianças intra e interétnicas que se estabeleceram naquela confraria. Partindo de fontes como as Deliberações da Mesa Administrativa e as correspondências, examinaremos as etnias dos irmãos que compunham a mesa, os critérios para a eleição dos mesmos, se existiam conflitos étnicos entre os irmãos juízes e juizas, reis e rainhas, bem como se a etinicidade tinha implicações nos processos eleitorais e nos processos pleiteados junto às autoridades civis e eclesiásticas. Através das atas de óbito de escravos analisaremos a procedência étnica do enterrado, as formas de enterramento, o local de sepultamento e os sacramentos recebidos, levando-se em conta a etnia do escravo ou escrava enterrado. Os testamentos de forros e forras, por conterem maior número de informações, nos possibilitarão observar a etnia do testador, dos testamenteiros, de seus cônjuges, a quem o testador deixa seus bens, quanto deixa de esmolas à irmandade e aos santos, e a forma com que pede que a dita associação proceda nos seus rituais fúnebres. Enfim, toda a relação que o testador estabelece com a confraria, com a religião e os laços intra e interétnicos que estabelece com seus confrades. 7

3. Anexos Tabela 1 Vila Rica/População 1719-1818 1 Sudaneses 1719-1743 1744-1768 1769-1793 1794-1818 1719-1818 Mina 42 391 688 394 1515 Courana 4 27 29 4 64 Cobu 5 10 9 4 28 Nagô 1 8 15 4 28 Sabaru 1 8 2 3 14 Fom 4 4 - - 8 São Tomé 1 3 - - 4 Cabo Verde 3 13 17 2 35 Bantos Angola 19 195 447 521 1182 Benguela 10 30 43 23 106 Congo 7 7 16 23 33 Cambinda 1 1 2 9 13 Cassange - - 2 2 4 Monjolo 1 3 1 2 7 Rebolo - - 2 6 8 Moçambique 2 7 1-10 1 Iraci del Nero Costa, Vila Rica: População (1719-1818), São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1979. 8

Tabela 2 Distribuição dos sepultamentos de escravos, por ano e por local 1770 1771 1772 1773 1774 1775 1776 1777 1778 TOTAL Cem. Matriz Capela Matriz Da da nº nº nº nº nº nº nº nº nº nº % 29 30 24 35 34 22 18 34 14 240 33,8 2 3 1 2 8 1,1 Cap. de N S. do Rosário dos Pretos Cem. de N S. do Rosário dos Pretos Cem. De Santana Cem. De Padre Faria Cem. do Taquaral Cem. de São João do Ouro Fino Cem. Senhor dos Perdões 10 34 26 18 22 23 17 17 19 186 26 2 2 1 1 1 1 8 1,1 9 12 9 15 20 16 15 19 8 123 17,1 8 14 9 7 13 7 6 11 8 83 11,5 1 4 2 7 7 2 6 3 2 34 4,7 4 2 3 3 3 5 0 6 4 30 4,1 0 0 0 1 0 1 2 0 0 4 0,6 TOTAL 63 98 75 90 100 77 65 90 58 716 Fonte: Livro de óbitos. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, 1770-1778. 9

Mapa extraído de Boschi, Caio César. Os Leigos e o Poder, p. 227 10