PRESENÇA DA LITERATURA ORAL E CORDEL EM SARGENTO GETÚLIO. Simone Almeida Alves Athayde 1 ; Maria Raimunda Gomes 2



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Transcrição:

PRESENÇA DA LITERATURA ORAL E CORDEL EM SARGENTO GETÚLIO Simone Almeida Alves Athayde 1 ; Maria Raimunda Gomes 2 ¹ Bolsista PBIC/UEG, graduanda do Curso de Letras, UnUCSEH Anápolis - UEG ² Orientadora, docente do Curso de Letras, UnUCSEH Anápolis - UEG RESUMO É objetivo desta pesquisa literária, identificar a presença da literatura oral e do cordel no romance brasileiro Sargento Getúlio (1996), de João Ubaldo Ribeiro. Para tanto, nos valemos de estudos a respeito da literatura popular, especialmente os de Câmara Cascudo (2006, 2005). Alguns exemplos desse tipo de literatura seriam os provérbios, as adivinhações, as orações, cantigas e a literatura de cordel. Evaristo (2001) enuncia que algumas marcas da linguagem falada no cordel se encontrariam no léxico, na prosódia, na sintaxe e na existência de vacilações ortográficas. Na obra de João Ubaldo, essas marcas não só permeiam todo o texto, como se tornam a própria matéria-prima para a composição da narrativa. O diálogo com a poesia popular transparece nas narrações hiperbólicas e escatológicas do protagonista, nas narrativas paralelas próprias desse gênero e na própria temática: a gesta de Getúlio, misto de bandido e herói. Espera-se que essa pesquisa, ao abordar a estreita relação entre essa obra da modernidade e a literatura popular de origens medievais, possa contribuir para o estudo dessa literatura. Palavras-chave: Oralidade, literatura Popular, cordel. INTRODUÇÃO Segundo Câmara Cascudo (2006, p.21), a literatura oral se manteria viva principalmente graças a duas fontes: a exclusivamente oral das histórias populares amalgamadas num processo de aculturação, e a reimpressão dos livros e folhas de literatura popular, nos quais se fundem elementos da tradição e da Novelística e a imaginação do autor. No Brasil, esta literatura se comporá de elementos trazidos por indígenas, africanos e predominantemente pelos portugueses. Posteriormente, absorverá a produção contemporânea brasileira, versificada, contendo assuntos da época, políticos, satíricos, sobre o ciclo do gado e do cangaço, além de adaptações de romances clássicos.

O conto popular possui características próprias que o ligam insoluvelmente à oralidade. Sua técnica de exposição é simples e de seqüência lógica e linear, estabelecendo na ação, e não na pormenorização descritiva, a intensidade dramática. Para Marcela C. Evaristo (2001, p.132), as marcas da linguagem falada se apresentariam tanto no léxico como na sintaxe e prosódia. O cordel, enquanto gênero integrante da literatura popular em verso, apresenta algumas peculiaridades, tais como a via de chegada ao leitor, a necessidade de adaptação para a via impressa e o formato dos livretos. A partir dos estudos teóricos sobre a literatura oral no Brasil, entendemos que o romance Sargento Getúlio possui características estruturais e narrativas que o ligam ao conto popular, especialmente ao cordel. Nesse sentido, esta pesquisa pretende analisar esse dialogismo na narrativa de João Ubaldo, além de colaborar para os estudos da literatura popular enquanto gênero que se presta aos papéis, ora de crônica de um tempo e de uma região, ora de propagador da cultura culta transfigurada para a linguagem popular. Para acompanharmos com mais discernimento essa análise, faremos um breve resumo do enredo de Sargento Getúlio. O narrador-protagonista, Getúlio, sargento da polícia militar do estado do Sergipe, é um homem bruto que, como forma de sobreviver ao contingente de miseráveis produzidos pelo agreste, torna-se um matador sem escrúpulos, que executa as ordens de seu superior, Coronel Acrísio Antunes, sem questionamentos de ordem ética. Getúlio recebe uma ordem do coronel, para levar um preso político da Bahia até Aracaju. No meio da viagem, a situação política complica-se para o coronel e ele manda outros policiais-jagunços libertarem o prisioneiro, afirmando não ter dado a ordem para que Getúlio prendesse o seu opositor. O sargento percebe a traição, recusa-se a aceitar a contraordem e decide entregar o preso ao Coronel, queira ele ou não, custe o que custar. A insubmissão o faz passar da condição de militar temido, para a condição de fora da lei. O final trágico ocorre quando Getúlio, após longa fuga com o preso, encontra-se cercado por policiais e recebe um tiro. Apesar do enredo desta obra ser aparentemente simples, trata-se de leitura extremamente complexa. A narrativa em primeira pessoa do protagonista Getúlio intercala monólogo interior, fluxo de consciência e discurso citado, sem delimitações precisas entre cada tipo de discurso, e é rica em experimentações formais. Utiliza artifícios de linguagem tais como: seqüência temporal não linear dos episódios, violações da norma padrão, neologismos, termos onomatopéicos, redundâncias, regionalismos e frases incompletas e retorcidas que buscam reproduzir a linguagem oral. 2

MATERIAL E MÉTODOS Para realização desse artigo foi feita a leitura do romance Sargento Getúlio (1996), de João Ubaldo Ribeiro, que constitui o corpus do nosso trabalho. É nosso intuito fazer um levantamento dos aspectos relacionados à literatura popular, especialmente em relação ao cordel, existentes neste romance. Para isso, foram realizadas leituras de obras teóricas e críticas sobre a literatura popular que darão sustentação básica a essa pesquisa dos seguintes autores: Cascudo (2005, 2006), Umberto (1984), Evaristo (2001), entre outros. RESULTADOS E DISCUSSÃO O conto popular tem sua origem na Antiguidade, com o processo de transmissão de conhecimentos e costumes através da oralidade. No Brasil, a literatura oral recebeu elementos das três raças aqui instaladas e miscigenadas entre si. A tradição oral indígena guardava tanto o registro dos feitos da tribo quanto suas fábulas e lendas. As amas-de-leite negras, numa tarefa inconsciente, substituíram em nosso país os akpalôs, indivíduos que andavam de lugar em lugar recitando contos, e tornaram-se propagadoras dos contos africanos e portugueses com prosódia e vocabulário próprios. Em relação à literatura de cordel, suas primeiras fontes podem ser identificadas com o romanceiro luso-espanhol que floresceu na Idade Média (UMBERTO, 1984, p. 22). Os livretos oriundos da Espanha e Portugal, cuja origem remonta, provavelmente ao século XV, darão origem no Brasil às reimpressões cujos temas, originalmente, referiam-se aos motivos literários dos séculos XIII a XVI, especialmente os mitos cristãos e romances que foram transfigurados pela impressão popular. As marcas da linguagem falada são importantes características do cordel. No léxico existe a prevalência de regionalismos e neologismos; na prosódia é comum a supressão da vogal inicial a e da consoante final s, além da troca da vogal e pela semivogal i, produzindo alterações fonéticas; na sintaxe temos desobediência às regras padrão de concordância e ao uso das preposições. Há presença também de vacilações ortográficas, mais destacadamente quanto à acentuação (EVARISTO, 2001, p. 132). Ainda segundo Proença (1977, p.54), os paralelismos igualmente compõem o mundo do cordel. Formalmente, a literatura de cordel apresenta-se freqüentemente como narrativa versificada em sextilhas setissilábicas, com rimas em ABCBDB. Os versos improvisados, cantados com acompanhamento de viola podem constituir-se em desafios, 3

duelo poético entre dois cantadores que se caracteriza pelo discurso hiperbólico e pelo uso do realismo mágico. Segundo Câmara Cascudo (2006, p.380), esse gênero tem sua origem no canto Amebeu grego. Em relação ao aspecto temático, temos o ciclo do gado, o ciclo social e a gesta, que pode ser inserida no ciclo do cangaço. O homem valente tem a admiração do nordestino e serve como motivo para a literatura de cordel, especialmente na figura do cangaceiro, que enquanto criminoso, é justificado em parte por ter sido vítima de injustiça. Evaristo (2001, p.120) adverte que em termos atuais, pode-se dizer que o cordel mantém, enquanto narrativa, algumas características de origem, como a função social educativa, de ensinamento, aconselhamento, e não apenas entretenimento ou fruição individual. Esclarecidas as particularidades formais e temáticas da poesia popular, passemos à análise dos elementos desta literatura existentes no romance Sargento Getúlio. Podemos aferir que este romance apresenta um tema de gesta. Embasados pelo pensamento de Cascudo, para quem a poesia tradicional sertaneja tem mesmo seus melhores e maiores motivos no ciclo do gado e no ciclo heróico dos cangaceiros (CASCUDO, 2005, p.15), percebemos que a escolha de Ribeiro para a temática de seu romance vem ao encontro dessa tendência do cordel de ressaltar a figura do homem bravio e destemido. Em relação à linguagem, percebemos que se trata de uma narrativa que se constrói sobre regionalismos e expressões vernaculares, o que também ocorre na literatura oral. Veja a comparação de um trecho do romance com um do cordel, nos quais ambos utilizam ampla gama de xingamentos típicos do linguajar nordestino: [...] cão da pustema apustemado, lhe faço uma desgraça, pirobo semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do cão da gota do estupor balaio, mija-na-vareta [...] (RIBEIRO, 1996, p.27) e Coivara, cabra da peste. / gota serena, arretado, /bixiguento, peste ruim, /besta, inxirido, vechado,/ oxente, peste, xambrego, tinhoso, aperriado. (Carvalho apud UMBERTO, 1984, p.40). A crueldade exagerada encontra-se presente tanto nos desafios quanto na narrativa de Sargento Getúlio. Vejamos a similaridade entre a cena na qual o protagonista arranca os dentes de seu prisioneiro com um alicate enferrujado para puni-lo e um trecho de um desafio recolhido por Cascudo. Vosmecê tem um alicate aí? Que eu arranco dois dentes da frente dele. Arranco dois de baixo, dois de cima, que fica mais certo. (RIBEIRO, 1996, p. 60). Eu agarro um cantador, / tiro-lhe dente por dente / tiro a língua, arranco os olhos, / deixo a caveira somente... / tiro-lhe o couro dos beiços, / deixo ele assombrando a gente! (CASCUDO, 2005, p. 235). 4

Quanto mais a gesta de Getúlio se aproxima do final, mais parecida com o cordel se torna, seja pelos temas, seja pelo estilo narrativo impregnado de realismo mágico: Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo e todo mundo na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou melhor (RIBEIRO, 1996, p. 84). O sargento também intercala em seu monólogo narrações típicas do conto popular, como a do macaco e a velha e do demônio logrado ; adágios; deturpações ou paródias de orações católicas; e referência à cantiga de roda, que no romance aparece contextualizada, pois a brincadeira do marcha soldado aparece em uma cena de tortura. Outro tema da literatura popular, o aboio, canto sem palavras com que os vaqueiros conduzem o gado (CASCUDO, 2005, p.127), também é referido na obra. A referência ao boi no epílogo do livro, quando Getúlio cai atingido por balas, pode nos revelar a sua identificação com o boi fugido, que um dia acaba por ser capturado e morto: aê aê aê aê aê eu nunca vou morrer [...] ai um boi de barro, aiumboi aiumboide barroaê ( RIBEIRO, 1996, p. 157). CONSIDERAÇÕES FINAIS Através do estudo crítico de Sargento Getúlio e das teorias a respeito da literatura popular, podemos afiançar que este romance tem como importante característica, o dialogismo com a oralidade e com as manifestações da literatura popular, pois em sua narrativa transparecem quase todos os gêneros encontrados na literatura popular, como adágios, adivinhas, provérbios, anedotas, causos e principalmente o cordel. Nesse sentido, a narrativa de J. U. Ribeiro apresenta-se como uma releitura dessa literatura, seja através de sua temática, seja através da composição da sua narrativa, que contém os mesmos elementos do conto popular, porém na estrutura formal do romance da modernidade. Podemos aferir que apesar do texto de Ribeiro destacar-se por sua originalidade, esta, na verdade, encontra-se na estruturação formal, mas não no conteúdo, retirado, basicamente, do conto popular. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERND, Z. Um certo Sargento Getúlio. In BERND, Z.; UTÉZA, F. O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: UFRGS, 2001. CAMPOS, R. C. Ideologia dos poetas populares do nordeste. Recife: Funarte, 1977. 5

CASCUDO, L. da C. Literatura Oral no Brasil. São Paulo: Global, 2006.. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. EVARISTO, M. C. O cordel em sala de aula. In: BRANDÃO, H. N. (org.). Gêneros do discurso na escola. São Paulo: Cortez, 2001. RIBEIRO, J. U. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. UMBERTO, P. Literatura de cordel em discussão. Natal: Presença, 1984. 6