Felix / Fotolia.com Luiz Paulo Iazzetti não baixa filmes piratas da internet. Não ouve mp3 sem pagar por licenças. Em seu computador, não há vestígio de software falsificado. Tudo isso apesar de viver imerso no universo tecnológico, tanto por prazer quanto por profissão. Editor de vídeo, ele é rara exceção entre jovens brasileiros moradores de grandes centros urbanos. Depois de muita reflexão, Luiz Paulo tomou uma decisão firme, que ele justifica sem meias palavras. Eu entendi que era igual a roubar, aí eu parei de fazer. Eu não faço down load nem de filme, nem de música, nem de software, nem de nada que não seja oficial, assegura. 22 Cidade Nova Janeiro 2013 nº 1
O peso da corrupção SOCIEDADE O alarde criado pelos grandes escândalos de corrupção da política nacional pode esconder um dado preocupante: os mais frequentes desvios de conduta estão ao alcance de qualquer cidadão Recentemente a BBC Brasil, em parceria com o promotor de Justiça de Minas Gerais Jairo Cruz Moreira, divulgou uma lista com as dez maneiras mais comuns de corrupção no cotidiano dos brasileiros. O destaque ficou para o fato de que nenhum dos itens do top 10 da corrupção nacio nal se encontra no âmbito da política. Todos eles são desvios de conduta que, longe de ser exclusividade de parlamentares, ministros ou secretários, estão ao alcance de qualquer cidadão. Furar fila, subornar o guarda de trânsito para não pagar multa, deixar de declarar o Imposto de Renda, e por aí vai (confira a lista completa na próxima página). c Cidade Nova Janeiro 2013 nº 1 23
Para Moreira, responsável pela elaboração da lista e coordenador da campanha O que você tem a ver com a corrupção?, existe uma estreita relação entre os pequenos desvios de conduta do dia a dia e a corrupção política, que vira e mexe toma as manchetes dos jornais e escandaliza o país. Se nós aceitamos o pequeno ato de corrupção, estamos legitimando a grande corrupção. Hoje quem faz um pequeno desvio na sua vida privada se sente autorizado, na vida pública, a também fazer o mesmo. No Ministério Público trabalhamos com a perspectiva de não banalização das pequenas atitudes. Também alertamos para o perigo da generalização, ou seja, de dizer que é cultural e que não tem como resolver, aponta o promotor mineiro. Foi justamente a não banalização o que motivou Luiz Paulo a adotar sua atitude em relação à pirataria. Há 15 anos eu baixava música pela internet. Aí eu pensei: eu estou baixando um negócio sem pagar por ele. Existe toda uma produção por trás, tem uma pessoa que criou isso, existe produção intelectual, produção artística e alguém gastou dinheiro. Eu estou ouvindo sem ter a permissão. Os donos do material não liberaram, então eu estou roubando. Eu percebi que é um roubo, concluiu o editor de vídeo. O que eu vejo e o que eu faço A ausência de atos de corrupção política na lista divulgada pela BBC revela uma lacuna por parte da sociedade civil entre a percepção do que acontece em âmbito polí tico nos bastidores de ministérios, câmaras e sedes do Executivo e o que acontece a todo momento na rua, no supermercado, nas empresas, na fila do banco. É o que enfatiza o promotor de Justiça Jairo Moreira. As pessoas têm dificuldade de entender o que seja corrupção e de onde ela vem. É uma ruptura de valores e efetivamente há uma necessidade de reflexão nesse sentido, aponta. Todo mundo, num primeiro momento, diz que não tem nada a ver com corrupção. Dizem: eu não sou político. Mas se formos ver a corrupção em um sentido mais amplo, percebemos que todos nós temos a ver, seja fiscalizando seja adotando uma política correta, uma postura ética, complementa. O último Índice de Percepção da Corrupção (IPC) elaborado pela Transparência Internacional (TI) atri buiu nota 43 para o Brasil em uma escala de zero a cem, sendo zero o grau mais alto de corrupção. A avaliação é feita por uma amostragem da própria população do país analisado. O Brasil ocupa a 69ª posição em uma lista de 176 nações lideradas por Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia, empatadas com 90 pontos cada. O IPC mede apenas a corrupção na esfera pública, aquela envolvendo políticos, funcionários do governo e contratos referentes ao uso de recursos públicos. O discreto desempenho brasileiro no índice mostra o quanto a corrupção é vista como prática recorrente na gestão pública. Porém, se somos criteriosos ao avaliar nossos políticos, não demonstramos, segundo Moreira, o mesmo rigor ético na hora de tomar decisões em relação à nossa conduta pessoal. Para a ativista Jéssica Magalhães, da organização Bauru Transparente (Batra), o problema da corrupção cotidiana está relacionada a um certo tipo de mentalidade difundida na sociedade. Quando as pessoas tomam esse tipo de atitude, elas A corrupção no cotidiano Não dar nota fiscal Tentar subornar o guarda para evitar multas Falsificar carteirinha de estudante Comprar produtos falsificados Dar/aceitar troco errado 24 Cidade Nova Janeiro 2013 nº 1
Não declarar Imposto de Renda Roubar TV a cabo No trabalho, bater ponto pelo colega Furar fila Falsificar assinaturas Fonte: BBC Brasil Ilustrações/André Marques não conseguem relacionar com a corrupção política. Não existe essa barreira, a questão é a corrupção de valores. Há valores invertidos na sociedade e isso se reflete na política, avalia. É por isso que, na opinião dela, as pessoas acabam não percebendo e não relacionando aquela vaga que pegam do idoso com a corrupção que envolve dinheiro e poder público. Pesquisa realizada pelo instituto Vox Populi em pareceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) relevou dados alarmantes a respeito de como a sociedade avalia alguns de seus próprios atos. O estudo aponta que, para 23% dos brasileiros, subornar o policial rodoviário ou o guarda de trânsito para se safar de uma multa não configura ato de corrupção. Para Jairo Moreira, esta é mais uma comprovação de que é preciso promover a reeducação cívica da sociedade, já que o país se depara com posturas contraditórias em relação aos desvios de conduta. Metade dos brasileiros entende que corrupção e honestidade vêm de berço: ou a pessoa é corrupta ou ela não é. As pessoas não se enxergam individualmente na problemática da corrupção, mas 41% entendem que um bom motivo para ter vergonha de ser brasileiro é a corrupção. Depois vem a violência, a pobreza e a miséria. É um paradoxo: temos vergonha de ser brasileiros por causa da corrupção e, no âmbito privado, esses atos não são entendidos como corruptos, questiona. Menos pó debaixo do tapete A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de condenar os responsáveis pelo megaesquema de corrupção promovido durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva ainda ecoa por todo o país como o sinal de que talvez estejamos diante do início de um novo tempo na história brasileira. A sensação de impunidade, ao menos no caso do Mensalão, não prevaleceu. Mas, apesar de ser um marco na evolução da democracia brasileira, o êxito do processo não é garantia segura da afirmação de uma nova mentalidade. Ainda vasto e difuso, o repertório da corrupção nacional exige uma reviravolta ética no país. É o que acredita Rafael Vargas, presidente da Associação Brasileira de Combate à Corrupção (Abraccorp). A sociedade costuma dar muita ênfase para a falta de ética na política, mas a falta de ética está primeiro na sociedade. E isto se reflete em todos os outros setores, tanto na segurança pública, como na corrupção policial, na corrupção do judiciário, sentencia. A organização presidida por Vargas atua prioritariamente no combate aos desvios no campo político, mas ele reconhece que para uma mudança de rota definitiva em relação à corrupção será necessário mudar a própria sociedade. As pessoas esquecem que os políticos saem da sociedade. É necessário promover uma conscientização ética da sociedade, o que não é feito. Não há um acompanhamento do cidadão, aponta. Na opinião da psicóloga Lidiane Leite, especialista em ética e cidadania, para haver a tão almejada mudança de mentalidade em relação à conduta social é necessário entender o cidadão não somente como alguém que se vincula à sua comunidade com o objetivo de assegurar os próprios direitos, mas como alguém que participa de uma relação caracterizada pela responsabilidade recíproca. É necessário pensar o sujeito político a partir da perspec c Cidade Nova Janeiro 2013 nº 1 25
tiva da ética, e não somente como um sujeito de direito. Esse sujeito se insere na sociedade a partir de um cuidado com o outro, com o mundo e consigo mesmo, explica. Lidiane cita um episódio que ocorreu em um dos fóruns populares de Vitória, no Espírito Santo, como exemplo de ambientes em que se desenvolve uma nova conduta no espaço público. Nos fóruns populares as pessoas falavam do risco de desmoronamento de casas na encosta de morros. Até que uma mulher se levantou e falou ao secretário da habitação: eu não sei se você consegue dormir à noite, mas eu não consigo, porque lembro que a casa de dona Maria, que eu nem conheço, vai cair. E eu não sou secretária de nada, sou só uma moradora, conta a psicóloga. A chave para a mudança, na visão dela, está na postura que o cidadão adota na relação com os demais membros de uma comunidade e com o ambiente que o cerca. Lidiane reforça a necessidade de uma guinada no modo de conceber esse tipo de relação. Quando falo que a ética está relacionada ao cuidado de si, esse si não é um si intimista, porque pressupõe sempre o outro com quem se estabelece a relação. Sem isso não dá para pensar uma perspectiva ética. O cuidado de si, do outro e do mundo não são coisas separadas, mas acontecem ao mesmo tempo, esclarece. Superar a mera exigência dos próprios direitos enquanto cidadão e agir em vista do bem-estar do restante da sociedade, conforme prescreve Lidiane, foi o pano de fundo da mudança de postura de Luiz Paulo em relação ao consumo de produtos piratas. Não é porque simplesmente é ilegal, mas é porque eu acredito, sim, que eu estou ferindo a outra pessoa, conta o editor de vídeo. Nesta perspectiva, o presidente da Abraccorp sublinha que a corrupção fincou raízes no Brasil porque encontrou terreno fértil em meio a uma sociedade com baixa escolaridade e com uma consciência cívica ainda não completamente amadurecida. A saída para isso está na educação, no Ensino Médio e Fundamental. Essa é a nossa visão, temos até projetos para instituir matérias de ética nas escolas, afirma Vargas. Ele destaca, por outro lado, que é preciso não cair na armadilha de demonizar a sociedade brasileira por causa da corrupção. Vargas lembra que a prática está difundida em diversos países e não é uma especiaria tupiniquim. A corrupção não está presente só no Brasil, mas ela é da humanidade em si, lembra. O próprio desempenho do Brasil no IPC confirma a análise de Vargas. Apesar de ser avaliado com uma inexpressiva nota 43, o país ainda ficou à frente da maioria das nações do mundo. A voga do tema da corrupção na imprensa e fora dela também é vista como um sinal de que um processo de transformação já está em curso. A bandeira da corrupção é a bandeira do momento. Anti gamente se falava de qual planeta gostaríamos de deixar para as próximas gerações. Hoje falamos também de qual geração nós queremos deixar para cuidar do planeta. É um trabalho que tem de ser desenvolvido a cada dia, ressalta Moreira. Outro sinal positivo é atestado pela pesquisa do instituto Vox Populi e da UFMG a mesma que mostra o quanto os brasileiros têm dificuldade de avaliar seus próprios atos. O levantamento aponta que 84% da população acreditam que em todas as situações da vida sempre existe a possibilidade de se tomar atitudes honestas. Os melhores e os piores do IPC Medir a percepção da corrupção que a população de um país tem pode ser mais importante do que analisar os casos comprovados de desvios na gestão pública, segundo a Transparência Internacional. Isso porque apenas parte dos esquemas ilícitos vêm à tona. Além disso, muito deles acabam não desembocando em condenação. Confira os melhores e os piores da corrupção mundial, segundo a percepção dos habitantes de cada país. As melhores pontuações 90 Dinamarca 90 Finlândia 90 Nova Zelândia 88 Suécia 87 Cingapura 86 Suíça 85 Austrália 85 Noruega 84 Canadá 84 Holanda As piores pontuações 8 Afeganistão 8 Coreia do Norte 8 Somália 13 Sudão 15 Miamar 17 Uzbequistão 17 Turcomenistão 18 Iraque 19 Haiti 19 Venezuela 19 Chade 19 Burundi Fonte: Tranparency International 26 Cidade Nova Janeiro 2013 nº 1