TRANSCRIÇÃO DE LIBRAS NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO



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Transcrição:

RESUMO TRANSCRIÇÃO DE LIBRAS NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO Laura Amaral Kümmel Frydrych (UFRGS) Luiza Milano Surreaux (UFRGS) O presente trabalho propõe apresentar uma abordagem teórico-metodológica de base enunciativa acerca das especificidades da transcrição lingüística da interpretação para Libras. Sendo assim, valemo-nos do campo de estudos da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste (1988, 1989) para refletirmos sobre as especificidades de uma transcrição desta natureza. A transcrição de uma interpretação para Libras não é comparável epistemologicamente a transcrever dados de outra natureza, visto que, na passagem do oral para Libras, há uma mudança radical na modalidade comunicativa (o que já é, por si só, um impasse em qualquer transposição intermodal). Soma-se a isso uma nova mudança provocada pela passagem de Libras para o escrito (outra transposição intermodal). Nossa pergunta é: há diferença entre transcrever do oral para o escrito e transcrever de Libras para o escrito? Caso afirmativo, de que ordem seria essa diferença? Segundo Flores (2006) a transcrição, vista como um ato enunciativo, como um mostrar de um dizer que comporta, ela mesma, um outro dizer, pode ser estendida a estudos de diferentes corpora. Assim, a transcrição nos permite, através de uma mesma materialidade escrita, depreender as diferentes vias interpretativas que os dizeres, na língua fonte e na língua meta, possam indicar. Olhar para o intérprete como sujeito, ou seja, enquanto alguém atravessado pela linguagem, e não apenas como um ser locutor no mundo é reconhecer-lhe sua posição de enunciador. Em uma interpretação temos, portanto, uma dupla enunciação: o que interpreta enuncia, bem como o que narra na língua fonte. Sendo assim, nesse trabalho visamos apresentar como uma transcrição de base enunciativa pode servir como recurso para se analisar os diferentes desdobramentos de sentido produzidos em cada ato enunciativo envolvido na transcrição de uma interpretação para Libras. Dessa forma, podemos apontar inicialmente que as especificidades na transcrição lingüística de uma interpretação para Libras decorrem, de um lado, da instância enunciativa em que o dado/texto é produzido e, de outro lado, do fato de a própria transcrição ser também o produto de um ato de enunciação. Assim temos que a transcrição da interpretação comportaria uma tripla enunciação porquanto estão em jogo três enunciadores: o que narra, o que interpreta e o que transcreve. Por isso, deve-se levar em consideração também o fato de que a transcrição implica o transcritor, que enuncia de forma muito particular essa passagem do oral para Libras

e da Libras para o escrito. INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo propor uma abordagem teórico-metodológica com base na linguística enunciativa através de uma reflexão sobre a importância da transcrição do ato de interpretação para Libras. A perspectiva da Teoria da Enunciação aqui mobilizada é a de Émile Benveniste (1988, 1989), pelo fato de sua teoria levar em consideração a relação do falante com sua língua. Segundo Benveniste, a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização (1989:82). E é na particularidade da transformação que o intérprete realiza, na passagem da língua falada para Libras, que brota uma outra instância enunciativa. Por isso dizemos que olhar para o intérprete como sujeito, ou seja, enquanto alguém atravessado pela linguagem, e não apenas como um ser locutor no mundo é reconhecer-lhe sua posição de enunciador. Partimos então da situação de uma interpretação na qual temos uma dupla enunciação: o que interpreta enuncia, bem como o que narra na língua fonte. O registro gráfico desse processo a transcrição nos possibilita explorar os rumos que as particularidades de cada ato enunciativo fazem brotar. Assim, nesse trabalho apresentamos como uma transcrição de base enunciativa pode servir como recurso para se analisar os diferentes desdobramentos de sentido produzidos em cada ato enunciativo envolvido na transcrição de uma interpretação para Libras. Passemos agora para o detalhamento de nossas questões teóricas desdobradas em dois pontos. 1. Sobre a Teoria da Enunciação Segundo Flores & Teixeira (2005), a lingüística da enunciação (no singular) abarca diferentes teorias da enunciação (no plural), visto que o campo abrange uma série de teorias da enunciação cujo eixo comum é a abordagem de fenômenos relativos ao uso da língua e à subjetividade na linguagem. Dentro desse campo, situamos nossa referência em Émile Benveniste (1988, 1989), ao propormos analisar as especificidades da transcrição linguística de uma interpretação para Libras. Em Benveniste (1989) encontramos que a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso (p 83), e a essa conversão ele caracteriza como sendo o sentido se formando em palavras ao que, em outro texto, A forma e o sentido na linguagem (1989), ele chama de semantização da língua. A partir destas afirmações benvenistianas, Flores & Teixeira (2005) constatam que a enunciação (...) é produto de um ato de apropriação da língua pelo locutor, que, a partir do aparelho formal da enunciação, tem como parâmetro um locutor e um alocutário (p 35). Conforme estes mesmos autores, o quadro teórico proposto por Benveniste dá conta do processo de referenciação como parte da enunciação, isto é, ao mobilizar a

língua e dela se apropriar, o locutor estabelece relação com o mundo via discurso de um sujeito, enquanto o alocutário co-refere (p 35, 36). Benveniste postula que a semantização é criadora de referência 1, logo, a referência é parte integrante da enunciação (1989: 84). Sendo assim, a referência cria uma situação muito singular de uso da língua e, como a apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala (idem, p 84), formas específicas se manifestam no intuito de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação (idem, p 84). Dada a imprevisibilidade e a efemeridade da enunciação, e com isso, do valor semântico dos enunciados, temos, em um contexto de interpretação para Libras, um tradutor/intérprete de língua de sinais (doravante TILS) que se vê às voltas com essa unicidade de referenciação constituída a cada instância de discurso. É a partir dessa perspectiva que passaremos a contextualizar a seguir como a tarefa de transcrição nos permite analisar a singularidade enunciativa presente na atividade do TILS. 2. Sobre a transcrição A transcrição de uma interpretação do oral para Libras tem especificidades 2. Essa afirmação é evidenciada na constatação do fato de que na passagem do oral para Libras, há uma mudança radical na modalidade comunicativa, pois há uma transposição intermodal. Soma-se a isso uma nova mudança provocada pela passagem de Libras para o escrito - outra transposição intermodal. Assim, a transcrição nos permite, através da materialidade da escrita buscar depreender as diferentes vias interpretativas que os dizeres, na língua fonte e na língua meta, possam indicar. Dentre as funções da transcrição, destacamos a tomada do intérprete como sujeito de fala, ou seja, enquanto alguém atravessado pela linguagem, e não apenas como um ser locutor no mundo, o que implica em reconhecer sua posição de enunciador. Em uma interpretação temos, portanto, uma dupla enunciação: o que interpreta enuncia, bem como o que narra na língua fonte. Nesse sentido, objetivamos apontar como uma transcrição de base enunciativa pode servir como recurso para se analisar os diferentes desdobramentos de sentido produzidos em cada ato enunciativo envolvido na transcrição de uma interpretação para Libras. Conceber a transcrição na perspectiva da lingüística da enunciação significa tomá-la também como produto de um ato de enunciação. 1 É importante lembrar que a noção de referência em Benveniste relaciona-se ao próprio ato enunciativo (e não ao mundo). 2 Citamos como exemplo o trabalho de McCleary e Viotti (2007) que, em Transcrição de dados de uma língua sinalizada, fazem um panorama das pesquisas que foram feitas até o momento abarcando a transcrição de sinais, gestos e movimentos (faciais e corporais), endereçando-o à uma descrição das Línguas de Sinais, através de um sistema de transcrição.

Dessa forma, faz-se necessário marcar uma diferença importante entre o contexto oral, o contexto visuo-espacial e o contexto escrito. Enquanto no contexto oral e no visuo-espacial aquele que enuncia está ali, no contexto escrito quem enunciou não está mais presente. E na realidade, no caso específico da transcrição da tradução de Libras, estão em jogo três enunciadores: o que enuncia oralmente, o que enuncia em Libras e o que enuncia ao transcrever por isso deve-se levar em consideração sempre o fato de que assim como a tradução implica o tradutor, a transcrição implica o transcritor, que enuncia de forma muito particular essa passagem do oral para o escrito. Nesse sentido, encontramos aproximação da abordagem enunciativa de Silva 3 (2009: 212), ao apontar que a transcrição deve conter aspectos que levem em conta a teoria, o corpus e o transcritor. Sendo assim, a transcrição e a análise de fatos enunciativos, nesse trabalho, seguirão o estatuto do singular no campo da enunciação, conforme apontado por Flores (2006: 74): Transcrever é condição de análise empreendida em lingüística, sendo até mesmo uma etapa da análise; A transcrição, vista como ato enunciativo, como um mostrar de um dizer que comporta, ela mesma, um outro dizer, pode ser estendida a estudos de diferentes corpora; Cada transcrição é sempre única, singular e não linearmente extensível: é o efêmero da enunciação; Não há integralidade na transcrição. MÉTODO Os dados que serão analisados fazem parte de campanha televisiva sobre a Classificação Indicativa de programas de televisão, veiculada pelo Ministério da Justiça. O referido material foi selecionado por meio eletrônico 4. Em seguida, foram transcritas e analisadas as diferentes modalidades: 1. Transcrição da tradução/interpretação para Libras do conteúdo do vídeo; 2. Comparação com a legenda oculta veiculada pelo comercial; 3. Transcrição do áudio do comercial. Abaixo segue uma breve descrição da cena enunciativa. No vídeo aparece uma boneca sentada em um sofá em frente à televisão. O telespectador apenas vê a boneca no sofá pois o que a televisão veicula não está visível. Apenas são depreensíveis os sons emitidos pela televisão. As reações da boneca (um sorriso no rosto, os olhos vendados e uma expressão de espanto, respectivemente) são mostradas consoante os 3 SILVA, C.L. da C. A criança na linguagem enunciação e aquisição. Campinas, SP, Pontes Editores, 2009. 4 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=sbf5jftdicq acessado em 12/08/2010.

sons. A cena seguinte mostra uma família (uma mãe, um filho e uma filha - esta última com a boneca em seus braços) sentada no mesmo sofá em frente à televisão. Após isso, aparece em destaque no vídeo a gradação das faixas etárias compreendidas pela Classificação Indicativa. O vídeo é finalizado com uma tomada da menina e sua boneca, esta última voltando-se para o telespectador, sorrindo e dando uma piscadela. Por último é mostrado o logo "Brasil, um país de todos", juntamente com a inscrição dos nomes do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. RESULTADOS Primeiramente, para a análise, transcrevemos a tradução/interpretação para Libras do conteúdo do vídeo. Sem o recurso do áudio, no intuito de não sermos influenciadas pelo texto oral, transcrevemos a narração em forma de glosas, ou seja, em palavras da língua portuguesa que se equivalessem ao sinal ou ao conceito do mesmo. Das marcações não-manuais transcrevemos também apenas a expressão facial (EF), visto ser este um tipo de interpretação controlada em termos do uso do espaço e movimentação. Marcamos as entradas de acordo com o tempo em que ocorriam e duravam. Vide a seguir o exemplo: 0:01 0:02-0:04 [EF: leve sorriso] televisão mostrar desenho 0:05-0:07 [EF: neutra] televisão mostrar coisas sexo 0:08-0:10 [EF: neutra] televisão mostrar _(sinal desconhecido por mim)_ tiros (guerra/violência?) 0:11-0:26 [EF: neutra] você direito escolher televisão conteúdo (programa) filho ver televisão então antes conteúdo anunciar assunto também idade combinar divulgar saber porque você responsável escolher certo 0:27-0:30 Quadro 1: Transcrição da tradução/interpretação para Libras do conteúdo do vídeo Em seguida, de posse da legenda oculta (closed caption) veiculada em algumas edições do mesmo vídeo, comparamo-na com a transcrição primeira da interpretação: 0:01 0:02-0:03 [ A boneca está assistindo a um desenho animado... ] 0:04-0:07 [ Está assistindo a uma cena de sexo... ] 0:08-0:10 [ Agora está assistindo a uma cena violenta... ] 0:11 0:12-0:14 Você tem o direito de selecionar o que seu filho vê na TV. 0:15-0:16 Por isso, antes de cada programa, 0:17-0:20 serão mostrados o conteúdo e a idade indicada. 0:20-0:22 A Classificação Indicativa é informação. 0:23-0:25 E com informação, o controle é todo seu. 0:26-0:30 Quadro 2: Legenda oculta veiculada pelo comercial

E, posteriormente, transcrevemos o áudio da vinheta: 0:01-0:03 (efeitos sonoros típicos de desenho animado) 0:04-0:07 (efeito sonoro típico de uma cena sexo) 0:08-0:10 (efeito sonoro típico do uso de armas) 0:11 [fundo musical suave, (alegre)...] 0:12-0:14 Você tem o direito de selecionar o que seu filho vê na TV. 0:15-0:20 Por isso, antes de cada programa, serão mostrados o conteúdo e a idade indicada. 0:20-0:22 A Classificação Indicativa é informação. 0:23-0:25 E com informação, o controle é todo seu. 0:26 0:27-0:29 Brasil, um país de todos. 0:30 Quadro 3: Transcrição do áudio do comercial Comparando-se as transcrições, deparamo-nos com a seguinte questão semântica: qual a diferença entre dizer que a televisão mostra algo e que fulano assiste a algo? (vide transcrição da tradução vs. closed caption [0:02-0:10 ]). O que a televisão mostra, será necessariamente o que alguém vê? Já na transcrição do áudio, ainda que tenha sido difícil transcrever os sons e barulhos, não se pôde dizer ao quê eram atribuídos. Descrevemo-os como semelhantes à, aproximados a algo que emita esses sons. Aí vemos o quão singular é essa transcrição, principalmente a dos barulhos e sons iniciais, elementos integrantes do contexto da cena enunciativa e extremamente significativos nesse caso. Interessante pensar no quê - ignorando-se as imagens que a personagem vê, ou que a TV veicula -, os sons significam (e obviamente o significarão singularmente para cada sujeito) e em como a interpretação dos sons direciona esses sentidos. Quanto ao conteúdo do vídeo, interessante notar que, quando na legenda oculta aparece que a personagem está assistindo a uma cena de sexo..., a mesma está com as mãos cobrindo-lhe o rosto, ao que é traduzido pela intérprete como sendo o que a televisão estaria mostrando. Pudemos constatar, portanto, que nesse vídeo, o texto em Libras se difere significativamente do texto oral. Este refere-se ao conhecimento que os pais podem ter sobre a programação veiculada na televisão, por meio da Classificação Indicativa, enquanto aquele refere-se à escolha dos pais, sem enfatizar qual o recurso disponibilizado à eles para tal, qual seja, a Classificação Indicativa. Ou seja, há uma diferença de foco nos dois textos. Quando veiculados concomitantemente na televisão, ambos os textos divergem quanto ao foco, distanciando as informações presentes neles. Através da transcrição de ambos os textos, sinalizado e oral, pudemos depreender as diferenças de ênfase dadas em cada um, ou seja, através de uma mesma materialidade escrita pudemos perceber que cada um indica uma

via interpretativa distinta do outro. A isso nos referimos quando dissemos que uma transcrição de base enunciativa pode servir como recurso para se analisar os diferentes desdobramentos de sentido produzidos em cada ato enunciativo envolvido na transcrição de uma interpretação para Libras. DISCUSSÃO Longe de esgotar tais questões, propusemos com este trabalho delinear possíveis considerações para um maior aprofundamento nelas. Sabemos que todas as diferenças entre Libras e a língua portuguesa devem ser levadas em consideração numa análise enunciativa. A teoria não abarca a priori essas questões, mas seu arcabouço teórico pode ajudar a começar a subsidiar essa extensa reflexão. Além disso, faz-se necessário um maior delineamento e a exploração de uma metodologia enunciativa de análise da tradução (como sugere Nunes, 2008:48) e da transcrição. Refazemos a pergunta formulada por Nunes (2008: 65): qual é o modo singular de existência a que o sujeito promove seu enunciado? Em outras palavras, como ele, ao se marcar em seu enunciado, torna-o único? Pensar esse lugar único do tradutor-intérprete de língua de sinais através da perspectiva da enunciação com base na transcrição lingüística de seus enunciados é um desafiante trabalho. Nossa contribuição pretende apenas auxiliar na reflexão sobre a prática desse profissional. A consideração da singularidade de cada ato enunciativo seja na tradução oral, seja na tradução para Libras, é um passo decisivo nessa direção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 1991. BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. FLORES, V. N.; TEIXEIRA, M.. Introdução à Lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005. FLORES, V. N. Entre o dizer e o mostrar: a transcrição como modalidade de enunciação. In: Organon, Porto Alegre, nº 40/41, janeiro-dezembro, 2006, p. 61-75. McCLEARY, L.; VIOTTI, E. Transcrição de dados de uma língua sinalizada: um estudo piloto da transcrição de narrativas na língua de sinais brasileira (LSB). In: H. SALLES (Org.), Bilingüismo e surdez. Questões lingüísticas e educacionais. Goiânia: Cânone Editorial, 2007, p. 73-96 NUNES, Paula Ávila. O tradutor como função enunciativa: uma análise de autotradução. Porto Alegre. Monografia (Graduação em Letras) IL/UFRGS, 2008. SILVA, C.L.C.. A criança na linguagem enunciação e aquisição. Campinas, SP, Pontes Editores, 2009. EIXO TEMÁTICO Metodologias para implementar a interpretação de/para a língua de sinais.