Corpos novos e velhos: ritual e dança Asuriní em contexto



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Transcrição:

IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 1 Corpos novos e velhos: ritual e dança Asuriní em contexto Alice Villela (UNICAMP) GT Pesquisa em dança no Brasil: processos e investigações Palavras Chaves: Asuriní do Xingu, trabalho de campo, antropologia da performance, dança (BPI) Em novembro de 2006 uma equipe de pesquisadores da USP e da UNICAMP 1 aportou na aldeia Asuriní - grupo Tupi-Guarani que vive à margem direita do rio Xingu (PA). A ocasião para a viagem era singular: a realização da festa do Turé, complexo ritual que atualiza a cosmologia e as narrativas míticas, articulando diversas instituições sociais como a guerra, a iniciação dos jovens e a celebração dos mortos 2. O ritual relaciona-se diretamente à construção da casa grande (tavyva), pois é no interior dela que são abrigadas as sepulturas dos mortos a serem chorados no rito do kawara, etapa final do Turé. Depois de dois anos da construção iniciada e do esforço grande de uns poucos índios, que possivelmente passarão a residir na casa, os Asuriní conseguem finalizar a tavyva e nos convidam para assistir à realização do Turé e documentá-lo em vídeo, com a preocupação de registrar os conhecimentos dos mais velhos na realização dos rituais para as gerações futuras 3. Foram dez dias de cantos e danças no pátio cerimonial, envolvendo crianças, jovens, adultos e velhos entre sessões de flauta (turé), sessões de Tauva, ritual de mulheres, do qual é parte o rito de tatuagem dos guerreiros, rito dos jovens iniciados (kauiraô) e o choro dos mortos na festa do kawara. Os jovens 4, que atualmente estão mais interessados nos assuntos da cidade e no modo de vida dos akaraí (brancos), participaram do ritual e executaram papéis orientados pelos mais velhos. Os jovens iniciados dançaram diversas sessões de Tivagava e Aru 5, tiveram o corpo coberto de jenipapo com penas de gavião e pularam a tauva rukaia, grande panela de cerâmica que é construída dentro da tavyva. As jovens dançaram o Tauva por dias e noites inteiras, duas delas cumpriram a função de vanapy, ajudantes das mulheres xamãs, tauyva. 1 Mestrandos, doutorandos e docentes do Museu de Arqueologia e Etnologia- MAE/ USP, Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais- PROCAN/ USP, Instituto de Estudos da Linguagem- IEL/ UNICAMP, e do Instituo de Artes- IA/ UNICAMP. 2 Os rituais do Turé foram objeto de pesquisa da antropóloga Regina Müller, no entanto, seus últimos estudos basearam-se em etnografias realizadas em 1993, sendo necessária uma atualização haja vista as mudanças no contexto envolvente. Ver Asuriní do Xingu, história e arte. 2ªed. Campinas: Editora da Unicamp, Série Teses, 1993. 3 Atualmente dois terços da população Asuriní é composto por crianças e jovens. São 84 indivíduos com idade entre 0 e 20 anos, do total de 122 pessoas. Há relativamente poucos velhos, detentores por excelência dos conhecimentos tradicionais. Informações extraídas de censo populacional realizado em 2006. 4 Os jovens têm idade de 13 a 16 anos. Já sabem caçar, pescar e realizar outras atividades necessárias ao sustento de uma família, prérequisito para a obtenção de esposas. 5 Danças com participação dos kauiraô, no ritual do Turé.

IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 2 A partir do convite à dança com as mulheres pude experimentar no corpo as qualidades de movimento e somar forças no canto e dança para chamar o espírito da água, Tauva. Percebi a diferença da movimentação das mais jovens (10, 11 e 12 anos) e das moças mais velhas (na faixa dos 20 anos); pude experimentar a força da gravidade e a sensação de deslizar que a dança promove, o grande impulso que parte do centro do corpo, e a resposta rápida dos pés que levam o monobloco composto por duas ou três índias abraçadas a deslizar em torno das duas mulheres xamãs. Enquanto dançam, as moças ajudam às tauyva com o canto, respondendo o coro com a mão direita na boca. As mais novas não cantavam e riam encabuladas dizendo que não sabiam. Antigamente participavam do Tauva as moças da faixa dos 20 anos que, por não terem filhos, podiam se entregar inteiramente às atividades rituais. Atualmente as meninas mais novas passam a cumprir as funções de dançarinas do Tauva e vanapy, enquanto ainda não contraíram casamentos e não tem que se ocupar com a prole. O aprendizado dos mais novos se dá no momento mesmo da performance. Entende-se aqui performance como expressão estética de uma experiência social; possui uma medida de tempo limitada, ou pelo menos, um começo e um fim, um programa organizado de atividades, um conjunto de atores, uma audiência e um lugar de ocasião [...] (TURNER, 1988, p. 24). A performance não libera um significado herdado da tradição, mas o momento da expressão da experiência é ele próprio o lócus em que as culturas articulam seus significados (BRUNER apud MULLER, 2000, p. 3). Tal compreensão dá conta da dimensão processual dos fenômenos sensíveis, tendo em vista o contexto histórico. A transmissão dos conhecimentos acontece enquanto o corpo executa a dança, enquanto cantam e no momento em que se empenham no cumprimento das funções rituais. Aprendem-se os passos e desenvolvemse as qualidades de movimento ao executá-los horas a fio. As meninas devem permanecer imersas no Tauva o dia todo e ao longo de noites inteiras; o corpo vai sendo preparado ao longo do ritual e vai atingindo um estado de vigília, ao mesmo tempo em que ganha resistência. A noção de comportamento restaurado (restoration of behavior) de Schechner nos auxilia a compreender a natureza social da performance e em processo ao longo do tempo. Para ele, todas as ações rituais performadas também artísticas e cotidianas - são construídas a partir de comportamentos previamente exercidos, e devem ser ensaiadas e repetidas (2003, p.27). Os pedaços de comportamento podem ser recombinados, rearranjados ou reconstruídos, e são independentes dos processos causais (pessoais, sociais, políticos...) que os levaram a existir. Mas o dia a dia na aldeia e as atividades tradicionais, todas com muito uso do corpo, também preparam as meninas para a dança. Nesse sentido, há um grande vazio entre velhas e novas: as jovens ocupam-se cada vez mais da prole numerosa e têm cada vez menos tempo para a confecção de panelas de cerâmica, pintura do corpo, dentre outras atividades tradicionais. Interessadas pelas novidades da cidade,

IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 3 pelos produtos industrializados, pelo jogo de vôlei, pelas partidas de futebol, e ocupadas com as crianças, as jovens Asuriní passam a ter o corpo do branco como importante referência 6. Certamente a presença de pesquisadores na aldeia, em parte jovens que valorizam os conhecimentos tradicionais, contribuiu muito para a performance ritual dos jovens atores Asuriní. Enquanto os mais velhos - absortos e completamente envolvidos no ritual - pareciam não se importar realmente com a presença de convidados de fora os assistindo, os mais novos transformavam sua performance em virtude do público akaraí. Este fato, eu notava especialmente entre os kauiraô, jovens iniciados, que não apenas dançavam para o público convidado, mas também se agrupavam para assistir à performance de alguns pesquisadores que se integravam no Tauva e no Turé. Certa vez, ao fim do ritual, um dos jovens me puxou de canto e disse que não queria mais pular a grande tauva rukaia na etapa final do rito dos kauiraô. Contou-me da sua vontade de morar na cidade e do fato de se sentir entediado na aldeia. Seguiu-se uma conversa em que lhe falei sobre meu trabalho e sobre minha vontade de conhecer mais os rituais Asuriní. Percebendo meu interesse pelas coisas que ele acreditava ser dos velhos, o jovem kauiraô demonstrou-se mais animado para permanecer no ritual até seu término. O trabalho de campo aproximou abordagens e metodologias da Dança e da Antropologia. De um lado, a observação participante das etapas e papéis rituais em performance, de outro, a observação da dança ritual e o registro das memórias afetivas no meu corpo, inspirados em princípios do método BPI Bailarino Pesquisador Intérprete, de Graziela Rodrigues 7. Performance, contexto, dança e sensações, tudo se integra no campo, onde o pesquisador encontra-se imerso na realidade do Outro e o corpo está aberto para registrar a experiência vivida. Neste sentido, essa postura metodológica se aproxima do que Graziela Rodrigues chama de co-habitar com a fonte. Ou seja: No momento em que o bailarino-pesquisador-intérprete perde o referencial da razão objetiva de estar ali, ele transpassou o limite de seu mundo e penetrou na moldura do outro. Isso significa que ele está co-habitando com a fonte (1997, p.148). Antes da experiência do campo, foi necessário preparar o corpo para o encontro com o Outro. Numa etapa inicial, fiz aulas de Dança do Brasil 8 como forma de investigar minhas memórias afetivas, imagens e história corporal. Dentre muitos territórios, sensações e histórias vasculhadas, a busca de sentidos com o corpo tornou-se recorrente durante a preparação. Sentia-me disposta a me lançar na experiência de alteridade e vivenciá-la com o corpo, gostaria de presenciar os rituais a fim de compreender os sentidos que os Asuriní lhe atribuem atualmente. Como toda boa experiência de alteridade, a vivência em campo transformou-se em profunda experiência de auto conhecimento. 6 Graziela Rodrigues e Regina Müller notaram que a posição de cócoras é matriz importante da movimentação das mulheres Asuriní. No entanto, esse estado de cócoras é observado entre as mulheres velhas, que executam diversas atividades cotidianas nessa posição. Ver Dança dos Brasis I: As mulheres Asuriní do Xingu, comunicação publicada nos anais do IV Congresso da Abrace- Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, 2006. 7 Ver RODRIGUES. Bailarino Pesquisador Intérprete - Processo de formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. 8 No Departamento de Artes Corporais com a Profª. Carolina Melchert a partir do método BPI. Instituto de Artes, UNICAMP.

IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 4 Já na aldeia me deparo com os jovens; os meninos estão ávidos pela novidade. Eu também estava. Meu encontro com eles provoca transformações ainda em curso para ambas as partes. De certa forma, passam a conhecer outra referência de akaraí (branco) que valoriza os conhecimentos tradicionais fundadores do ethos Asuriní. Para os jovens, o mundo fora da aldeia se resume à Altamira (cidade mais próxima da aldeia), onde conheceram a bebida, as áreas de prostituição e as brigas de gangues. Em busca de novos sentidos, os jovens performam para a platéia de convidados no ritual do Turé. De minha parte, registrei no corpo outros sentidos que emergiram no encontro com eles. Mas que caminhos trilhar com esta pesquisa que tenta articular abordagens e materiais de análise tão distintos? Os registros no corpo e a experiência em campo devem ser sistematizados num texto etnográfico que contenha a descrição do ritual e a análise dos movimentos da dança, ao mesmo tempo em que leva em conta a percepção sensível, via corpo, da realidade Asuriní. Em determinados momentos é interessante trazer à tona as memórias afetivas do pesquisador, que emergiram do encontro com o Outro, em forma de um texto poético que seja capaz de captá-las. De fato, a pesquisa não dá conta de sistematizar toda a experiência, algumas memórias são intraduzíveis e permanecem para sempre nas camadas de carne e músculo. O desafio se dará na construção de uma escrita que articule descrição das etapas rituais em performance e análise da dança a partir de uma abordagem sensível, construída no encontro de corpos com experiências distintas, mas que juntos, compartilham sua parcela de humanidade. Espera-se contribuir para os estudos em Antropologia da Performance que tem por objeto o corpo do Outro e por método o corpo do pesquisador em campo, carregado de memória e história e de uma subjetividade particular; e para as pesquisas em Dança que almejam o processo de criação, por sistematizar a análise dos movimentos da dança e do ritual indígena a partir de trabalho de campo, e pelo esforço de trabalhar com materiais que só são concretos nos corpos dos envolvidos. Bibliografia MÜLLER, Regina. Asuriní do Xingu, história e arte. 2ªed. Campinas: Editora da Unicamp, Série Teses, 1993. MÜLLER, Regina. Corpo e imagem em movimento: há uma alma nesse corpo. In: Revista de Antropologia, v. 43 (2). São Paulo: Departamento de Antropologia USP, 2000. MÜLLER, Regina e RODRIGUES, Graziela. Dança dos Brasis I: As mulheres Asuriní do Xingu. In: Anais do IV Congresso da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, Rio de janeiro, 2006.

IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 5 RODRIGUES, Graziela. Bailarino Pesquisador Intérprete - Processo de formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. SCHECHNER, Richard. O que é Performance?. In: O Percevejo, Revista de Teatro, Critica e Estética, n 12. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2003. TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. NewYork: PAJ, 1988.