SOFRIMENTO PSÍQUICO DE MULHERES MILITARES E SUAS RELAÇÕES COM O PODER



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SOFRIMENTO PSÍQUICO DE MULHERES MILITARES E SUAS RELAÇÕES COM O PODER Joice de Lemos Fontes 1 O presente trabalho é fruto de uma pesquisa que objetivou investigar a existência de sofrimento psíquico em mulheres militares da Marinha do Rio de Janeiro, bem como as estratégias defensivas utilizadas pelas mesmas no enfrentamento de tal sofrimento, utilizando como referencial teórico a Psicodinâmica do Trabalho. A relevância desta temática incide sobre a dimensão social, na medida em que corrobora para uma reflexão a respeito das implicações que a organização do trabalho militar pode causar à saúde da mulher trabalhadora, e fornece subsídios para a compreensão mais aprofundada de tal organização e da inserção feminina neste contexto. Para tanto, a amostra foi composta de quarenta militares, que responderam à questionários não-estruturados submetidos à análise de conteúdo. Os resultados apontaram que, apesar de não associarem o seu trabalho à sofrimento, as militares também não o associam ao prazer. As pressões impostas pelos mecanismos disciplinares, de poder e pela hierarquia, característicos do ambiente militar, não deixam de constituir-se como fonte de sofrimento, bem como o sentimento de discriminação por estarem inseridas em uma instituição predominantemente masculina. O Contexto Militar e a Mulher O serviço militar possui muitas peculiaridades, diferindo em muitos aspectos de outras instituições, mesmo aquelas que são regidas pelo Estado, tendo como características principais: a sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia, que condicionam toda a vida pessoal e profissional do militar; a disponibilidade permanente, não podendo, o militar, se negar a atender as exigências de sua profissão à qualquer dia e em qualquer hora; o risco de vida, pois em caso de guerra ou qualquer outro tipo de conflito, o militar, seja da área de combate seja da área burocrática, deve estar sempre disponível; restrições a direitos trabalhistas, tais como remuneração de trabalho noturno, hora extra ou qualquer tipo de compensação; a mobilidade geográfica, pois o militar pode ser movimentado a qualquer momento para outro estado ou região; o vigor físico, 1 Estudante de Psicologia, 9 o período, Universidade Salgado de Oliveira. Militar

inspecionado através de constantes exames médicos e testes físicos que condicionam a sua permanência no serviço ativo; e o vínculo eterno com a carreira, pois mesmo na inatividade, o militar permanece vinculado à sua profissão 2. É importante ressaltar que todos os deveres e restrições mencionadas cabem tanto ao corpo masculino quanto ao corpo feminino. Na Marinha do Brasil o trabalho da mulher é diferenciado. Normalmente, trabalham em áreas administrativas e não precisam estar em navios, nem participam de viagens nos mesmos, exceto as mulheres que trabalham na área de saúde, como as enfermeiras. Tal diferenciação é o ponto de partida do preconceito e da não-aceitação da sua inserção na força em questão. Na marinha americana, por exemplo, a mulher desempenha as mesmas funções que o homem desempenha, não havendo distinção entre eles. Uma questão que se torna fundamental apontar, é o tipo de poder que se exerce em uma instituição militar. Existem inúmeros enfoques que abordam o conceito de poder, como a perspectiva weberiana, na qual o poder é definido como a habilidade de fazer pessoas obedecerem determinadas ordens sem oferecer resistências (WEBER, 1968 APUD CAPPELLE & BRITO). Weber enfoca um poder mais formal, um poder legítimo, inevitável, ou seja, um poder referente à estrutura hierárquica dos cargos e suas relações recíprocas. É exatamente este tipo de poder que se exerce em uma instituição militar. Trata-se de um poder explícito, um poder que não é sutil. A Psicodinâmica do Trabalho A abordagem da Psicodinâmica do Trabalho, disciplina que trouxe como importante contribuição, as análises da relação entre trabalho e saúde mental e a ampliação do seu entendimento para além dos quadros psicopatológicos, uma vez que desloca sua análise para a normalidade - a qual abarca tanto o sofrimento quanto o prazer no trabalho - pressupõe que a organização do trabalho tem um papel central na determinação do sofrimento psíquico dos trabalhadores. Dejours (1992) a define como a esfera que abarca, por um lado, o modo operatório prescrito (conteúdo das tarefas) e, por outro, a divisão das tarefas e das responsabilidades, a hierarquia, o comando e o controle (relações de trabalho). A organização do trabalho constitui-se, portanto, de uma dimensão que transcende os aspectos técnicos, pois se trata de uma relação social construída em meio a uma relação intersubjetiva (Dejours, 1994). Dentro do contexto 2 Material retirado do site oficial da Marinha do Brasil. Endereço Eletrônico: www.mar.mil.br.

desta organização, pode-se dizer que existem dois fatores principais sobre os quais os estudos do autor se debruçam. A organização prescrita e real do trabalho e a barragem da liberdade ou autonomia do trabalhador sobre a consecução deste. Trabalhar exige dar conta daquilo que, independente da qualidade da concepção e da precisão dos procedimentos, impõe-se aos trabalhadores por meio do imprevisto, do inesperado, daquilo que foge à prescrição. Neste sentido, estamos no âmbito do trabalho real (Dejours, 1997). A organização prescrita não leva em consideração os imprevistos, os fatores psicoafetivos envolvidos na consecução do trabalho, mas se baseiam puramente na tarefa, naquilo que precisa ser executado. A organização real está intimamente relacionada ao trabalhador como sujeito da tarefa. Um sujeito que, apesar de qualquer prescrição, não está imune aos imprevistos ou a outros fatores externos e internos. Porém, certa dose de prescrição é necessária, justamente para guiar o trabalhador na consecução do seu trabalho. As atividades realizadas pelos trabalhadores implicam reajustamentos dos modos prescritos, ou seja, independentemente do grau de prescrição da tarefa, sempre restará uma parcela de responsabilidade que retornará aos trabalhadores. Nessas situações, o engajamento subjetivo é convocado mediante procedimentos e decisões que, muitas vezes, se antecipam a simbolização de qualquer ato prático. É por isso que Dejours (1992) afirma que uma das condições para a mobilização da inteligência criativa é a existência de uma organização prescrita do trabalho. A saúde e o prazer no trabalho estão, dentro dessa abordagem, justamente na possibilidade de que os sujeitos negociem com a organização prescrita do trabalho sua inscrição no domínio do trabalho real, ou seja, na possibilidade de criar. É a partir do desafio colocado pelo real do trabalho, que o sujeito acrescenta algo de inédito ao trabalho, algo de sua autoria, por intermédio de sua ação singular sobre a tarefa e sobre as rotinas já dadas pela organização prescrita. O trajeto que vai do trabalhador ao seu comportamento diante do trabalho, que oscila entre prazer e sofrimento foram estudados por Dejours (1992), que se preocupou com a chamada anulação muda e invisível dos comportamentos livres dos trabalhadores. A submissão a uma organização autoritária do trabalho favorece a uma exclusão radical do desejo do trabalhador, não dando lugar a sua criatividade. É importante salientar que a inserção do sujeito entre o trabalho prescrito e o real é sempre conflitiva, e não se dá fora do contexto das relações sociais no trabalho. È nesse ponto que aparece outro elemento fundamental para que o sofrimento no trabalho

ganhe sentido e se transforme em prazer e saúde: o reconhecimento. Para Dejours (1997, 1999) o reconhecimento é a condição indispensável no processo de mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho, e se dá por duas vias de julgamento: o julgamento de utilidade e o julgamento de beleza. O primeiro diria respeito à utilidade técnica, social ou econômica dada à atividade desempenhada pelos trabalhadores. Este julgamento seria proferido por aqueles que, em relação ao sujeito, encontram-se numa posição hierárquica diferente, como os chefes, os gerentes, os supervisores e, até mesmo, os subordinados. O julgamento da beleza é aquele efetuado pelos pares, ou seja, aqueles que estão situados na mesma faixa hierárquica e compartilham o mesmo ofício. O objeto de estudo da Psicodinâmica do Trabalho é, preferencialmente, o sofrimento, o que não significa que tudo fique reduzido à sua constatação. O objetivo é compreender como os trabalhadores alcançam determinado equilíbrio psíquico, mesmo estando submetidos a uma organização de trabalho desestruturante (Dejours, 1994). Não se busca investigar o sofrimento em si, mas que destino o sujeito dá a esse sofrimento. O sujeito se constitui através de um corte que deixa vestígios mesclados de prazer e sofrimento na memória e no corpo (Brant e Dias, 2004). Tal corte permite a inserção do sujeito no mundo cultural, no mundo simbólico, e essa inserção, que representa a constituição do sujeito, é marcada pelo sofrimento. Este não constitui um dado da natureza, mas um posicionamento do sujeito diante do corte. O sofrimento é inerente ao ser humano, na medida em que está inscrito no corpo, e se configura como uma manifestação da insistência em viver sob circunstâncias que, na maioria das vezes, não é favorável ao homem. Por isso, pode-se dizer que não há trabalho sem dor nem sem esperança, assim como não há lembranças sem sofrimento, sem o desejo do eterno retorno ao paraíso perdido (Brant e Dias, 2004, p. 943). De acordo com Freud (1930), o sofrimento advém de três fontes: do próprio corpo, do mundo externo e dos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que advêm das relações entre sujeitos, na opinião de Freud, talvez seja o mais penoso de todos. Seguindo esta linha de raciocínio, de que o sofrimento é inerente ao ser humano, Dejours (1994) diferencia sofrimento patogênico de sofrimento criativo como dois destinos possíveis para o sofrimento no trabalho. Porém, cabe ressaltar, que essa diferenciação se dá em nível funcional, pois em nenhum momento se retira o sofrimento de questão. Pode-se dizer que o desafio real da Psicodinâmica do Trabalho é definir e

explorar as ações suscetíveis de modificar o destino do sofrimento e favorecer sua transformação e não a sua eliminação, o que seria impossível. É baseado neste pensamento que a Psicodinâmica do Trabalho afirma trabalhar com a psicopatologia da normalidade, ou seja, com um sofrimento compatível com a normalidade, bem como já foi mencionado anteriormente. Quando a organização do trabalho torna-se rígida, dificultando ou barrando a expressão criativa e autonomia dos sujeitos, ou ainda, quando o reconhecimento não se faz presente, emerge o chamado sofrimento patogênico (Dejours, 1994). Quando o sujeito se rende às pressões dando margem, assim, ao aborrecimento, à repetição, ao medo ou ao sentimento de impotência diante da situação e do trabalho em si. Quando o sofrimento pode ser transformado em criatividade, ou seja, quando o sujeito é autorizado a usar a sua subjetividade no âmbito do trabalho, o sofrimento é criativo. O foco da Psicodinâmica do Trabalho está nas relações intersubjetivas que se estabelecem no trabalho. Através de tais relações, a identidade do sujeito se reafirma, se fortalece, pois estas envolvem, principalmente, o reconhecimento e a identificação. Desta forma, pode-se dizer que a relação entre trabalho e identidade é mediada pelo outro, pelo julgamento e reconhecimento deste outro. Há pessoas que, inclusive, encontram seu equilíbrio psíquico somente porque executam trabalhos que lhes dão acesso à criatividade, à sublimação e ao reconhecimento (Hallack e Silva, 2005). Dejours (1992) salienta que, para os trabalhadores darem conta do prescrito, corresponderem às expectativas da organização e não adoecerem, eles utilizam estratégias de enfrentamento contra o sofrimento, tais como conformismo, individualismo, negação de perigo, agressividade, passividade, entre outras. De acordo com o autor, a utilização dessas estratégias, chamadas estratégias defensivas, propicia proteção do sofrimento e a manutenção do equilíbrio psíquico por possibilitar o enfrentamento e a eufemização das situações causadoras do sofrimento. Dejours (1994) considera as estratégias defensivas, na sua maioria, coletivas. Ele as define como mecanismos pelos quais o trabalhador busca modificar, transformar e minimizar a percepção da realidade que o faz sofrer. Através das estratégias defensivas, o sujeito consegue realizar uma certa abstração em relação àquilo que o acomete e, assim, mantém o equilíbrio psíquico. Mas essas estratégias, quando levadas ao extremo, podem se tornar uma ideologia que beneficia mais a organização do que ao sujeito em si, pois este continua sendo útil à organização à custa do seu sofrimento que precisou

ser modificado para que o adoecimento pudesse ser evitado. Desta maneira, as estratégias defensivas podem ser utilizadas em proveito da produtividade e da própria organização do trabalho. O sujeito colabora com a organização enquanto esta explora seu sofrimento. Hallack e Silva (2005) investigaram a reclamação, no discurso dos trabalhadores, das organizações seguindo a abordagem de Christophe Dejours. A hipótese da pesquisa é de que a reclamação no discurso dos trabalhadores vem a ser um mecanismo coletivo de defesa, uma luta contra o adoecimento, produzida pela subjetividade resultante dos laços discursivos do coletivo da organização. A reclamação é uma forma de o indivíduo pertencer ao grupo, ma medida em que, ao reclamar, ele compartilha com seus companheiros seu sofrimento, conseqüente da organização do trabalho. Reclamar é uma das possibilidades de evocar o sofrimento e a doença através de atos de linguagem comuns aos trabalhadores (Dejours, 1994). Porém, a reclamação apresenta uma contradição. Ao mesmo tempo em que se constitui como mecanismo de defesa coletiva, que mantém o equilíbrio psíquico dos trabalhadores, esse mecanismo, levado ao seu extremo, demonstra a falência de outras tentativas de proteção contra o sofrimento, contribuindo com o conformismo, a repetição e a estagnação dos sujeitos e servindo a própria organização. Este é um paradoxo da reclamação ou de qualquer outro mecanismo de defesa no coletivo de trabalho (Hallack e Silva, 2005). O estudo concluiu, apesar da ressalva, que a reclamação é uma saída mais saudável do que o silenciamento, a repressão das idéias, a aceitação passiva do que é imposto e pode ser ouvida a ponto de proporcionar mudanças na organização do trabalho, causadora do sofrimento. As atividades, intelectual e cognitiva, são necessárias para manter a integridade do aparelho psíquico. Surge daí uma série de agravos a saúde física dos trabalhadores, bem como o sofrimento psíquico patogênico. É o sofrimento que surge da impossibilidade de um rearranjo entre um sujeito portador de uma história singular e personalizada, e uma organização despersonalizante. Quanto mais rígida for a organização do trabalho, mais acentuada é sua divisão e menor o conteúdo significativo da tarefa, bem como as possibilidades de mudá-lo. Assim, o sofrimento psíquico aumenta correlativamente. O trabalho pode ser compreendido como um território ambivalente, uma vez que tanto pode dar origem a processos de alienação e mesmo de descompensação psíquica, como poder ser fonte saúde e instrumento de emancipação (Dejours, 1999). Para que ele

seja fonte de saúde, no entanto, há a necessidade do reconhecimento daquele que trabalha, uma vez que neste reconhecimento reside a possibilidade de dar sentido ao sofrimento vivenciado pelos trabalhadores. Pode-se dizer que o reconhecimento é condição indispensável no processo de mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho, desempenhando um papel fundamental na possibilidade de transformar o sofrimento em prazer. Ao dar sentido ao sofrimento, o indivíduo pode encontrar com suas potencialidades e singularidades para que, assim este se transforme no que Dejours e Abdoucheli (1994) chamam de sofrimento criativo. Investigar as manifestações do sofrimento do trabalhador se constitui como tarefa difícil, pois implica em circunscrever conceitualmente o sofrimento. Este é um termo impreciso, que ora é utilizado como manifestação de saúde, no sentido de ser considerado como inerente ao ser humano, ora é utilizado como manifestação de doença mental. O conceito de sofrimento foi trabalhado aqui como uma dimensão contingente ao trabalho e não como um distúrbio mental, visando facilitar e promover uma visão crítica a respeito da rigidez das organizações de trabalho atuais, principalmente, quando atinge a mulher, alvo desta pesquisa. Discussão e Resultados As categorias referentes ao entendimento das militares em relação a palavra trabalho, apontam uma associação do mesmo à meio de sustento ou meio pelo qual as necessidades básicas são satisfeitas. O mesmo resultado, com um percentual mais baixo, é encontrado nas categorias que se referem ao entendimento das militares em relação ao seu próprio trabalho o trabalho militar. As militares entendem o próprio trabalho como rotineiro e pautado na hierarquia, e na disciplina. As duas últimas se configuram, para as mesmas, como exigências organizacionais difíceis de cumprir. Spode e Merlo (2006) constataram que as pressões impostas pelos mecanismos disciplinares e a alta exigência de respeito à hierarquia, característicos da organização do trabalho policial militar, podem constituirse como fonte de sofrimento. Apesar de a organização investigada não se tratar de uma instituição militar, Martins e Pinheiro (2006) concluíram que a relação com os superiores se configura como um gerador de sofrimento, sendo este mesmo sofrimento amenizado pela estabilidade oferecida pela organização. E, justamente, a categoria estabilidade foi apontada pelas militares como a principal motivação para a escolha pela profissão militar. Cabe lembrar que, quando as militares se referem à disciplina e à

hierarquia, elas fazem referência direta ao poder explícito inerente à uma instituição militar. Como exigências de trabalho mais difíceis de cumprir, de acordo com as militares, tem-se a rapidez na execução de tarefas, a pontualidade e a alta permanência no ambiente de trabalho. O grande número de atribuições no âmbito administrativo, bem como a exigência de rapidez na execução das mesmas, faz com que, regularmente as militares tenham que estender o horário de trabalho para além das horas diárias estipuladas. As militares consideram a elevada carga de trabalho como um dos fatores que tornam a sua profissão desgastante. A disponibilidade permanente demandada pelo trabalho militar, também ressaltada por Spode e Merlo (2006) na descrição do trabalho policial, justifica o cumprimento das várias atividades inerentes à profissão, que são realizadas dentro ou fora do horário de trabalho normal, tais como formaturas, representações e serviços de pernoite por escalas. As atividades realizadas em horários não convencionais e o grande número de atribuições administrativas é que colaboram para a alta permanência das militares em seu ambiente de trabalho. Estes são os fatores que, na opinião das militares, dificultam a divisão do tempo em casa, com a família, e no trabalho. Como forma de cumprir as exigências impostas pela instituição e lidar com o sofrimento, as militares procuram não lembrar do assunto após o término do expediente. Elas preferem cumprir as exigências sem resistências, apesar de se utilizarem também das reclamações entre si, e se apóiam na idéia de que tudo voltará ao normal quando o expediente terminar. Pode-se afirmar que o conformismo e as reclamações entre si permitem que estas se defendam do sofrimento. Hallack e Silva (2005), afirmam que a reclamação se trata de um mecanismo coletivo de defesa dos trabalhadores. O conformismo também é apontado por Dejours (1994) como um mecanismo de defesa para lidar com o sofrimento imposto pelas exigências de trabalho. O principal sentimento suscitado nas militares, pelo fato de fazerem parte de uma instituição militar, é a discriminação. As militares se sentem discriminadas por estarem inseridas em uma instituição militar, que ainda é predominantemente masculina. Elas não se sentem totalmente aceitas pelos homens, sejam eles superiores ou militares do mesmo nível hierárquico. De acordo com Souza et al (2002) o fato de a mulher trabalhar fora e ocupar determinados cargos ditos masculinos pode ser interpretado como uma transgressão às regras sociais estabelecidas em relação ao papel do gênero feminino.

O orgulho também aparece como um dos sentimentos relacionados ao trabalho militar, apesar de ser em menor proporção. Como um dos fatores que trazem este sentimento está a percepção que têm da importância do trabalho que realizam ou do status que ele representa. Ao mesmo tempo, ainda que muitas determinações tenham que ser cumpridas tal como foi previamente prescrito, existe um espaço de autonomia que permite adaptá-las e decidir sobre como serão realizadas. Se por um lado, há um certo grau de autonomia, por outro lado há, segundo as militares entrevistadas, uma falta de liberdade de opinião. Às militares é concedida autonomia suficiente para executar as tarefas com o mínimo de auxílio dos superiores imediatos, porém a opinião das mesmas, no que se refere às prioridades ou a necessidade ou não de realização de determinada tarefa, não é levada em consideração. Diante disso, acabam sendo obrigadas a realizarem tarefas que, muitas vezes não fazem nenhum sentido para elas. Apesar de os resultados indicarem uma visão negativa das militares em relação à organização do trabalho militar da marinha, estas não associam o trabalho à sofrimento. Mendes e Tamayo (2001), afirmam que a necessidade inerente à condição humana de buscar constante prazer e evitar o sofrimento através de estratégias defensivas pode explicar o não predomínio do sofrimento. Considerações Finais Os resultados obtidos com a pesquisa em questão fundamentam a idéia de que, apesar de a organização do trabalho militar da marinha ser vista de forma negativa, o sofrimento não aparece como predominante no contexto organizacional. No entanto, foi possível constatar que a excessiva carga de trabalho administrativo - que demanda o aumento do número de horas dedicadas ao trabalho - aliada ao sentimento de discriminação vivenciado é fator significativo de pressão e desgaste para as militares. Estas, independente da posição hierárquica que ocupam, estão submetidas aos efeitos e às exigências impostas pela organização do trabalho em função dos mecanismos disciplinares de vigilância e de controle que engendram a divisão dos trabalhadores por meio de postos e graduações. A manutenção da hierarquia, assegurada pela divisão dos trabalhadores por meio de postos graduações, pode se vista como uma barreira para a criação de uma relação saudável e de cooperação entre os subordinados e seus superiores. Esta pesquisa objetivou colaborar, acima de tudo, para o enriquecimento da literatura na perspectiva teórica da Psicodinâmica do Trabalho, pois permite a discussão

sobre sofrimento psíquico no trabalho e as estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores do gênero feminino no sentido de evitar, minimizar e transformar o sofrimento. Algumas limitações da pesquisa devem ser reconhecidas tais como o fato de terem sido investigadas militares de apenas quatro organizações militares; há a necessidade de investigações mais aprofundadas e ampliadas sobre sofrimento e saúde no trabalho militar, principalmente no que diz respeito à mulher, o que contribuiria, assim, para o avanço e fortalecimento do conhecimento nas áreas de saúde mental e do trabalho na abordagem da Psicodinâmica do Trabalho. Referências Bibliográficas: Brant, L. C & Dias, E. C. Trabalho e Sofrimento em gestores de uma empresa pública em reestruturação. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 4, p. 942-949, Jul/Ago, 2004. Cappelle, M. C. A & Brito, M. J. Trabalho, gestão e poder Disciplina e autoregulação humana. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. Dejours, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. Dejours, C. O fator humano. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. Dejours, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Oboré, 1992. Dejours, C. Abdoucheli, E. & Jayet, C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994. Freud, S. Além do princípio do prazer. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1920. Freud, S. O mal-estar na civilização. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1930. Hallack, F. S. & Silva, C. O. A reclamação nas organizações do trabalho: estratégia defensiva e evocação do sofrimento. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 3, p. 67-72, Set/ Dez, 2005. Martins, J. C. O. & Pinheiro, A. A. G. Sofrimento Psíquico nas relações de trabalho. PSIC Revista de Psicologia da Vetor Editora, v. 7, n. 1, p. 79-85, Jan/Jun, 2006. Mendes, A. M. & Tamayo, A. Valores organizacionais e prazer-sofrimento no trabalho. Psico-USF, v. 6, n. 1, p. 39-46, Jan/Jun, 2001.

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