MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL E ESTADO DE DIREITO EM HEGEL



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Transcrição:

MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL E ESTADO DE DIREITO EM HEGEL Agemir Bavaresco 1 Sérgio B. Christino 2 Resumo: A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às questões coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, conduz-nos ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes. Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de indivíduos, apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito, conforme esta figura é tematizada na Fenomenologia do Espírito? Se a autonomia do indivíduo hegeliano passa pelo reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de agir e pelo cidadão organicamente inserido na sociedade civil e no Estado, quais os alcances e limites do reconhecimento numa futura autonomia individual mundializada? Diante dessa inquietação, apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois, estudamos a figura do estado de 1 Doutor pela Universidade de Paris 1. Professor do PPG em Filosofia PUCRS e Pesquisador na linha jusfilosófica. 2 Advogado, Assistente de Administração na UFPel e Pesquisador na linha jusfilosófica. Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76. 51

Direito na Fenomenologia de Hegel e, no final, apontamos alguns desafios ao futuro da autonomia em face ao estado de Direito atual. Palavras-chave: Autonomia. Estado de Direito. Filosofia. Fenomenologia do Espírito. Introdução Os 200 anos da publicação da Fenomenologia do Espírito (1807-2007), de Hegel desafiam-nos a atualizar seus temas e problemas, permitindo compreender novas figuras do espírito humano, como a da autonomia individual face à sociedade mundializada. A autonomia individual emergente manifesta-se apática e indiferente, frente às questões coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esta noção de liberdade como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, nos conduz ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes. Charles Taylor que evidencia, em Hegel e a sociedade moderna, que o pensamento hegeliano foi presciente quanto às nefastas conseqüências para as quais nos arrasta a noção de autonomia racional cartesiano-kantiana. Assim, a necessidade de retorno a Hegel se faz presente, toda vez que se busque uma visão de autonomia subjetiva que supere as deficiências da perspectiva analítica do entendimento. Conforme Taylor: [...] os escritos de Hegel nos oferecem uma das tentativas mais profundas e de maior alcance de elaborar uma visão da subjetividade corporificada, do pensamento e da liberdade emergindo do fluxo da vida, encontrando expressão nas formas da existência social e descobrindo-se na relação com a natureza e com a história (2005, p. 208). Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de indivíduos, apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito, conforme esta figura é tematizada na Fenomenologia do Espírito? O conceito de autonomia individual para Hegel dá-se mediante a luta pelo reconhecimento que se opera em vários níveis e figuras da história, conforme a experiência da consciência. Se a autonomia do indivíduo hegeliano passa pelo reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de agir e pelo cidadão, organicamente, inserido na sociedade civil e no Estado, quais os alcances e limites do reconhecimento numa futura autonomia individual mundializada? Diante desta inquietação, optamos por cotejar a perspectiva do indiví- 52 Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76.

duo na sua relação com o império romano, empreendida por Hegel na Fenomenologia, com o indivíduo no império atual na mundialização, para situar os possíveis desdobramentos do futuro da autonomia. Apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois, estudamos a figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel, mostrando a atomização do corpo social no império romano, fragmentando a relação do indivíduo com o todo. Na Filosofia do Direito, Hegel descobrirá o direito da liberdade subjetiva, permitindo um outro modo de pensar o Direito: o sujeito mediante o recurso à noção de eticidade. Apontando, portanto, para um percurso em que o futuro da autonomia inicia no nível das relações interpessoais e se realiza na esfera das instituições, conforme a eticidade hegeliana, estruturandose no reconhecimento do cidadão em nível sócio-jurídico-político. Porém, isto não será tratado, especificamente, neste estudo, embora, indiretamente, a teoria hegeliana estará sempre presente. Nossa preocupação, no final, será apontar alguns desafios ao futuro da autonomia face ao estado de Direito atual. 1. Modelos de autonomia individual O conceito de autonomia foi introduzido por Kant para designar a independência da vontade, em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão. A autonomia é, portanto, a capacidade de autodeterminação. Kant contrapõe a autonomia à heteronomia, em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Os ideais morais de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade, porque supõem que ela seja determinada pelo desejo de alcançá-los e não, por uma lei sua. A independência da vontade em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua legislação própria (como razão prática ) é a liberdade no sentido positivo. Portanto, a lei moral exprime a autonomia da razão pura prática, isto é, a liberdade (Cf. BLACKBURN, 1997, p. 31; ABBAGNANO, 2000, p. 97-98). Esse ficou sendo o conceito clássico de autonomia, porém, antes mesmo de ele ter sido elaborado por Kant e, a partir dele, encontramos, na história, modelos diferentes de autonomia individual subjetivos ou intersubjetivos. Apresentamos, brevemente, estes modelos com a finalidade de mostrar que a construção deste conceito antropológico está vinculado às teorias jusfilosófico-políticas. Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76. 53

1.1. Modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva a) Indivíduo egoísta racional de T. Hobbes À objetividade extremada da antiguidade clássica, especificamente à grega, a filosofia moderna, desde Ockham e de Hobbes, oporá um subjetivismo modelado na sua forma mais radical. Conforme acentua Michel Villey em seu livro Leçons d histoire de la philophie du droit, os seguidores destes filósofos se negam a ler na natureza as relações, as obrigações sociais; eles concebem somente os direitos individuais, os poderes, as liberdades naturalmente ilimitadas desde que a lei positiva resultante do consentimento dos cidadãos (e portanto, indiretamente resultante destas mesmas liberdades) não lhes imponha limites (VILLEY, 1962, p. 157) [Tradução dos autores]. Guilherme de Ockham, aponta Villey, com sua crítica reduz a nada o antigo direito natural imutável, recusando-se a reconhecer outra lei natural de valor universal, e portanto imutável, que a lei moral. Para Ockham, a natureza nos apresenta tão somente os indivíduos separados e livres e, a partir daí, defende com ardor, neste universo parcelado, as liberdades que o indivíduo tem por natureza, como dados jurídicos primeiros que, à lei e à convenção somente caberia modelar e adequar de maneira a preservá-los na condição de direitos subjetivos (VILLEY, 1962, p. 246). Estava assim colocado um primeiro esboço, para que Hobbes desenhasse o seu Estado de Natureza, com base em um estado pré-social, onde os homens ao sabor dos instintos, viveriam em uma guerra de todos contra todos. Mas que, para avançar na marcha histórica, precisariam que aí prevalecesse algum direito, qual seja: o direito que o indivíduo recebeu da natureza, com o objetivo de assegurar, por todos os meios, sua conservação pessoal, sua segurança, o livre usufruir da posse dos bens que por sua própria vontade deles se apossasse. Portanto, para Hobbes, desde esta guerra de todos contra todos por si pré-figurada, a teoria política daí decorrente é a do indivíduo ameaçado, que vai constituir um pacto associativo com outros indivíduos para a garantia de seus interesses individuais, [...] sua autoconservação do indivíduo se torna o eixo a partir do qual se pensa sua sociabilidade e sua autonomia (OLIVEIRA, 2007, p. 8). Logo toda estruturação da ordem política é pensada, a partir destes direitos naturais individualizados, que pugnara inicialmente Ockham, e que depois veio a ser consolidado por Hobbes, na condição de profeta por excelência do espírito jurídico moderno (VILLEY, 1962, p. 56). Toda razão de ser da or- 54 Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76.

contra o universalismo abstrato das Luzes e da democracia política, que cada um, individual ou coletivamente, pode construir condições de vida e transformar a vida social em função de sua maneira de harmonizar os princípios gerais da modernização com as identidades particulares (2006, p. 171). Concluindo, tomar-se como referencial de estudo a dicotomia autonomia individual face à sociedade mundializada, implica em trazer à ordem do dia o precipitado teórico que se consolidou ao longo da tradição filosófica no tocante ao duplo oposto mais geral, que se desenha a partir dos pólos indivíduo versus comunidade, ou singular versus universal. Para os fins de nosso estudo, considerada a antiguidade clássica, enquanto aquela quadra histórica, que toma por marco inicial a concepção grega de vida em sociedade e, por derradeiro, a república romana, vê-se que a mencionada dicotomia é quase nula, posto que a subjetividade é muito raramente expressada, diga-se, por vezes na figura de Sócrates e na Antígona de Sófocles, enquanto signos primevos de um direito subjetivo individual. Demais, a vida em sociedade era embebida por uma noção de direito público, cuja origem remonta ao surgimento da pólis. Em As origens do pensamento grego, Jean-Pierre Vernant, após evidenciar que é de um amálgama político-religioso que deflui o jurídico, mostra que a evolução deste último aspecto da vida social já se torna público desde a crise do poder micênico, quando, todo o domínio do pré-jurídico enfim, que governa as relações entre famílias, constitui em si uma espécie de agón, um combate codificado e sujeito a regras, em que se defrontam grupos...uma disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a ágora, praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado (VERNANT, 2003, p. 49-50). Dando-se, pois, com o surgimento da polis a esfera pública implanta-se como um setor de interesse comum, que se opõe à noção de um interesse privado. Doravante, o controle constante da comunidade se exerce sobre as criações do espírito, assim como sobre as magistraturas do Estado. A Lei da pólis, por oposição ao poder absoluto do monarca, exige que umas e outras sejam igualmente submetidas à prestação de contas (VERNANT, 2003, p. 55-56). Em verdade a latência de qualquer dos pólos desta relação seja do pólo subjetivo, seja do pólo objetivo vai reclamar sempre a efetividade da mediação ao longo do desenvolvimento lógico e histórico do conceito de liberdade; no mundo pagão, da antiguidade clássica, este conflito se colocava na inevitabilidade da contraposição entre as esferas do oikos, da família e da polis, confor- Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76. 73

me observa Kojève: Certamente em princípio uma síntese do particular familiar e do universal estatal poderia realizar o homem. Mas tal síntese é absolutamente impossível no mundo pagão. Por que a família e o Estado se excluem mutuamente, sem que o homem possa transitar de um à outra (1994, p. 187). De modo, que falar-se em um par de opostos, no exame da questão em tela, mais paralisa o estudo do que permite seu curso, e configura, na maior parte das vezes um mero recurso retórico de apresentação do problema. Não obstante esta constatação, vê-se que, em algumas etapas do desenvolvimento filosófico, os autores tendem a fixar-se em um dos extremos de uma relação, sem levar em conta a imprescindibilidade da mediação. Hegel evidencia e critica estas formas equivocadas de abordar, metodologicamente, qualquer questão do ponto de vista filosófico, e especificamente a questão do Direito, desde seu notável ensaio escrito em 1802 (HEGEL, 1990), que nós traduzimos assim: Sobre as maneiras científicas de tratar o Direito Natural; seu lugar na filosofia prática e sua relação com as ciências positivas do direito 5. A crítica hegeliana, realizada nesta obra, ao formalismo, e também ao empirismo que são as ditas maneiras tradicionais de ver o Direito Natural, até então começa por mostrar como estas abordagens se fixam em apenas um lado do movimento dialético que o espírito perfaz, constantemente, em sua objetivação. Trata-se, portanto, qualquer procedimento daí derivado, de uma abstração inferior (HEGEL, 1990, p. 29), que visa preencher uma necessidade própria do múltiplo, a que o empirismo já anunciara, a necessidade de que o finito, em sua diversidade, venha a ser superado por algo que paire acima de si, enquanto verdade absoluta, infinita. Entretanto, a abstração inferior que o formalismo apresenta, não logra tal intento, pois se limita a repetir a prática do empirismo, ou seja, enquanto este se fixava na multiplicidade posta (um dos pólos da relação), aquele se fixará no seu oposto, na abstração pura (o imperativo categórico). Hegel insere o Direito como um momento ético num todo orgânico dialético-especulativo, enquanto que o formalismo atribui a esta mesma eticidade relativa a conotação de eticidade absoluta. Mais tarde, na Filosofia do Direito, Hegel incorpora este debate do jusnaturalismo, bem como os dois modelos de autonomia individual, acima expostos, mostrando a instituição da liberdade, garantida na autonomia da pessoa e do sujeito na instituição (KERVÉGAN, 1998, p. 39). Assim, entendemos que os desafios à autonomia no estado de Direito, permite compreender que o fenômeno jurídico-laboral-cultural, num contexto 5 Obra traduzida pelos autores que já se encontra no prelo. 74 Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76.

de globalização, encontra nos modelos antropológicos de autonomia subjetiva e intersubjetiva e nas experiências do Direito, descritos na Fenomenologia de Hegel, parâmetros interpretativos para o futuro da autonomia. Referências bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BIFO, Franco Berardi. O que significa, hoje, a autonomia? Disponível em: <http://www.republicart.net/disc/realpublicspaces/berardi01_fr.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2007. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. FREITAG, Bárbara. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992. HEGEL, G. W. F. La phénoménologie de l esprit. Trad. Jean Hyppolite. Paris: Aubier, 1941.. Phénoménologie de l esprit. Apresentação, tradução e notas de G. Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière. Paris: Gallimard, 1993.. Des manières de traiter scientifiquement du Droit Naturel. Paris: Vrin, 1990.. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Universidade São Francisco, 2002. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. KERVÉGAN, Jean-François. A instituição da liberdade. Apresentação. In: HEGEL, G.W.F. Principes da la philosophie du droit. Paris: PUF, 1998, p. 39-61. KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1994. LABARRIÈRE, P.-J. Introduction à une lecture de la Phénoménologie de l esprit. Paris: Aubier, 1979. Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez. 2007, p. 51-76. 75

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