A questão do alongamento da dívida pública 1 * Francisco L. Lopes



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Transcrição:

1 A questão do alongamento da dívida pública 1 * Francisco L. Lopes O Brasil, hoje, é seguramente o recordista mundial no que diz respeito ao valor da taxa de juros básica praticada pelo Banco Central. E provavelmente também o é no que se refere ao encurtamento da dívida pública em poder do público, isto é, fora do Banco Central. Cerca de 52% dessa dívida, algo próximo de R$ 485 bilhões, consiste em títulos indexados à taxa overnight do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), cuja duração é de um dia. A criação de um papel indexado à taxa overnight foi uma solução brilhante para o ambiente de inflação crônica anterior ao Plano Real. Com as Letras do Banco Central (LBCs), depois Letras Financeiras do Tesouro (LFTs), o governo brasileiro evitou a armadilha de tentar leiloar títulos pré-fixados em momentos de grave crise e instabilidade, como ocorreu, por exemplo, na Rússia antes da moratória de 1998. O sistema financeiro brasileiro sobreviveu razoavelmente bem à inflação crônica, a vários planos de estabilização fracassados e à forte instabilidade externa porque estava em grande parte ancorado na dívida em overnight do governo. Agora, porém, com a estabilidade monetária praticamente consolidada, cabe perguntar se a permanência das LFTs não se transformou em uma deformação do nosso sistema econômico. Afinal, países com história recente de instabilidade como México e Argentina, este caso bem pior que o nosso, operam normalmente com papéis pré-fixados de prazo superior a um mês. Na Argentina, mesmo nos piores momento de sua crise, o prazo mínimo da dívida pública era de sete dias. Cabe perguntar se o Brasil, após ter, de forma brilhante, inventado as LFTs, um instrumento inédito de endividamento público, não teria se viciado num tipo de papel que hoje já teria perdido totalmente a razão de ser. Inicialmente, é útil tentar entender por que é vantajoso ter uma dívida pública mais alongada. Talvez o principal argumento seja de natureza negativa. A existência de uma dívida pública muito curta tende a ser percebido pelos investidores como indício de que o governo não tem credibilidade suficiente para vender uma dívida longa. Conseqüentemente, esses mesmos investidores exigem prêmios elevados para aceitar toda oferta de dívida pública mais longa. Se isso efetivamente induzir o governo a não tentar alongar sua dívida, terá sido criada uma espécie de círculo vicioso em que o emissor tem rating ruim porque sua dívida é curta e não consegue alongar sua dívida porque seu rating é ruim. Outra possível vantagem de uma dívida longa é a criação de benchmarks que funcionem como instrumentais para o desenvolvimento do mercado de crédito e para a disseminação de 1 Publicado em E. Bacha e L. C. de oliveira F., Mercado de Capitais e Dívida Pública, AMBID Contra Capa 2006

2 papéis privados longos. É conhecido o fato de que fundos de pensão e companhias de seguro são demandantes típicos de papéis públicos longos, haja vista seu interesse em casar prazos em suas estruturas de ativos e passivos. Provavelmente, um benchmark longo também será benéfico ao desenvolvimento de um mercado de hipotecas, que é de fundamental importância para a construção civil. Uma terceira vantagem de dispor de uma estrutura a termo suficientemente alongada é que as taxas de juros longas tendem a se tornar relativamente independentes das contingências da política monetária. Como o Banco Central normalmente opera na parte curta da curva, as taxas mais longas são menos afetadas por essa atuação. Dito de outro modo, as taxas longas tendem a ser mais estáveis e menos sujeitas ao efeito das intervenções da autoridade monetária, e essa relativa estabilidade se revela benéfica ao desenvolvimento do mercado de capitais. Creio que a grande maioria dos economistas concorda em relação às vantagens do alongamento da dívida pública e também acerca da inconveniência de soluções artificiais para o problema. Impor impostos diferentes de acordo com os prazos ou o governo forçar administrativamente a compra de papéis longos pelo sistema financeiro são soluções artificiais que não fazem qualquer sentido. Na realidade, não apenas não fazem qualquer sentido, como também tendem a não funcionar na prática, havendo muitas evidências históricas a esse respeito. Por exemplo, quando olho um gráfico da taxa DI, observo que, no início de junho de 2002, a taxa Selic estava em 18% e permaneceu nesse nível por vários meses, enquanto a taxa DI caiu para 14% durante alguns dias e, em seguida, retornou à sua posição inicial, próxima à da Selic. Não me recordo dos detalhes, mas não tenho dúvida de que nesse momento o Tesouro tentou vender um título que o mercado não queria, o leilão fracassou e, como punição, o Banco Central resolveu não absorver o excesso de caixa das instituições financeiras. Certamente a diretoria mandou o (antigo) Departamento de Operações do Mercado Aberto (DEMAB) não zerar o mercado e, com isso, a taxa DI derreteu. Naturalmente, como a taxa relevante para o sistema financeiro é a DI e não a Selic, a queda da primeira fez com que toda a estrutura de taxas começasse a cair também. É claro que, em face disso, a autoridade rapidamente entendeu que, se não estava disposta a baixar a taxa básica do sistema em três pontos percentuais, teria que mandar o DEMAB zerar o excesso de liquidez do mercado no nível da taxa Selic. Dito de outro modo, o sistema financeiro, em última instância, tem capacidade para simplesmente rejeitar uma oferta indesejada de títulos públicos. Se o governo brasileiro resolver que só oferecerá papéis pré-fixados de três anos ao mercado, uma rejeição desse tipo provavelmente ocorrerá e, em vez de comprar essas LTNs longas, as instituições zerarão suas operações compromissadas com o Banco Central, o que, em última análise, equivale à compra de LFTs. Conclusão: o alongamento da dívida pública só poderá ocorrer de fato, se houver demanda por dívida pública alongada.

3 Acredito que a forma mais produtiva de abordar a questão do alongamento é a análise dos determinantes da demanda por alongamento e da oferta por alongamento. Do ponto de vista da análise da demanda, é interessante notar, de início, que o alongamento tem a ver mais com o risco de taxa, associado à trajetória no tempo da taxa de juros, do que com o risco de crédito. Uma dívida mais longa implica que seu tomador sofrerá perdas patrimoniais se a taxa de juros subir, e esse é o principal elemento de risco em uma economia com tradição de instabilidade monetária. O risco de crédito tem importância indireta uma vez que uma crise de inadimplência pode provocar uma reação da taxa de juros e, como conseqüência, perda patrimonial. Na prática, porém, é mais útil focar a discussão no risco de taxa. Para pensar sobre essa questão, é interessante imaginar um modelo simples com dois títulos públicos, uma LFT com duração de um dia e, portanto, sem risco de taxa, e um papel préfixado, de prazo longo e com certo risco de taxa. Se considerarmos o gráfico tradicional de retorno-risco, com o retorno no eixo vertical e o risco no eixo horizontal, podemos identificar a LFT com um ponto sobre o eixo vertical e o título longo com um ponto à sua direita e de ordenada mais elevada. Essa ordenada será tanto mais elevada quanto maior for a taxa de juros paga pelo título longo. A linha reta entre os dois pontos define as possibilidades de composição da carteira e o investidor típico escolhe o ponto em que essa linha de possibilidades tangencia uma curva de indiferença no espaço de risco-retorno. O grau de alongamento da dívida pública pode ser avaliado pela posição desse ponto de tangência em relação aos dois pontos extremos. Se a tangência se dá em um ponto próximo daquele identificado pela LFT, esse papel curto terá participação dominante na carteira do mercado e a dívida terá prazo médio curto. Se, no entanto, o ponto de tangência se dá em um ponto próximo daquele identificado pelo título longo, esse papel longo terá participação dominante na carteira do mercado e a dívida terá prazo médio longo. O que acontece se o risco de taxa resultante da instabilidade monetária diminuir? Naturalmente, essa linha de possibilidades gira no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Supondo uma família de curva de indiferenças bem comportada, o ponto de tangência se move na direção nordeste, ou seja, na direção de mais risco e mais retorno. Isso significa uma maior participação do título longo na carteira demandada pelo mercado. Em outras palavras, uma redução do risco de taxa tende a aumentar a demanda por alongamento da dívida pública. Algo semelhante deve acontecer se o Banco Central reduzir a taxa Selic. Nesse caso, o ponto em que a curva de possibilidades corta o eixo vertical dos retornos, e que é o ponto identificado com a LFT, se reduz e, ceteris paribus, a linha de possibilidades novamente gira no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Aqui também o ponto de tangência se move na direção nordeste, indicando uma maior participação do título longo na carteira demandada pelo

4 mercado. Em outras palavras, uma redução da taxa Selic tende, ceteris paribus, a aumentar a demanda pelo alongamento da dívida pública. Essa análise do lado da demanda sugere que, mesmo sem artificialismos, o alongamento da dívida publica poderá ocorrer naturalmente como conseqüência tanto da redução do risco de taxa associado à instabilidade monetária quanto da redução da taxa Selic. Em última análise, a idéia aqui é que o excessivo encurtamento da dívida pública brasileira resulta do nível excessivamente elevado da taxa de juros overnight. Quando essa taxa é muito alta, a disposição dos investidores para aceitar um título longo marginalmente se reduz porque a relação retornorisco se torna muito desfavorável. Fica muito caro mover-se no sentido de maior risco na carteira quando já se está satisfeito com o nível de retorno auferido. A taxa de transformação marginal entre risco e retorno fica muito desfavorável, mas a tendência natural é, à medida que a taxa básica cai, demandar mais alongamento. À primeira vista, portanto, essa análise da questão do alongamento parece sugerir que não existe realmente um problema. Basta ter os fundamentos econômicos corretos que permitirão baixar gradativamente a taxa de juros e deixar o tempo correr, que o mercado alonga naturalmente, sem qualquer artificialismo. A análise até aqui, todavia, considerou apenas o lado da demanda e temos de considerar também o lado da oferta, sobretudo se falamos de dívida pública. Importa saber, então, se há algum limitador do lado da oferta para o alongamento da dívida. Em princípio, parece estranho que o governo brasileiro ainda se veja compelido a vender papéis com duração de apenas um dia, quando é possível observar outros países emergentes operando com títulos pré-fixados de prazo mínimo bem superior (próximo, ao menos, de um mês). O que impede o Tesouro brasileiro de migrar imediatamente para um regime em que as LFTs sejam substituídas por um papel pré-fixado curto com prazo, digamos, de um mês? De fato, o Brasil hoje tem o risco soberano de sua dívida externa próximo de 200 pontos, patamar de credibilidade internacional no qual diversos países emergentes operaram com um nível de alongamento muito maior que o nosso em suas dívidas públicas internas. O que parece atípico no caso brasileiro é a própria existência das LFTs, que se assemelham, sob certos aspectos, a uma droga aditiva. Por exemplo, as LFTs permitiram ao governo brasileiro aumentar o prazo médio de sua dívida uma forte demanda de investidores estrangeiros, sem pagar o alto custo de aumentar a sua duração, que continuou sendo de um dia para toda a parte constituída por elas. Como os estrangeiros não entendiam nada de Brasil e queriam ver dívida pública de prazo longo para se sentirem mais confiantes no país, o governo brasileiro foi induzido a praticar o seguinte truque : vocês querem prazo longo, então está bem, tomem lá uma LFT com prazo de dois a cinco anos, mas cuja duração e isso vocês não parecem perceber continua sendo de apenas um dia.

5 De fato, é essa característica das LFTs que permite ao governo aumentar o prazo do papel sem afetar sua duração, que está na raiz do não-alongamento da dívida pública que aparentemente existe do lado da oferta. Imaginemos, por exemplo, que o Tesouro decida transformar os atuais cerca de R$ 500 bilhões de dívida em LFTs para papéis de um mês. Em um prazo de 18 meses a dois anos, toda essa parte da dívida teria prazo mensal, ou seja, o Tesouro passaria a ter de fazer leilões semanais com volume de oferta superior a R$ 100 bilhões. Ora, leilões semanais de aproximadamente R$ 50 a 70 bilhões já aconteceram no Brasil em momentos de crise, como no período 1997-1998, em que parte substancial da dívida era emitida pelo próprio Banco Central. Já nesse período o Tesouro não gostava de fazer leilões desse porte, e isso naturalmente continua a ser verdadeiro, principalmente depois de toda a dívida pública federal ter se tornado sua responsabilidade. A dificuldade do Tesouro com leilões de grande porte é simples de ser entendida. Quando é preciso rolar semanalmente grande volume de títulos, há vulnerabilidade a momentos de instabilidade. Imaginemos a seguinte situação: pouco antes de um de seus grandes leilões regulares, a situação política se complica, o preço internacional do petróleo dispara, a Argentina quebra novamente ou ocorre algum outro evento de uma longa lista de possibilidades desestabilizadoras. O leilão fracassa. Isso não apenas ameaça a reputação do agente público, podendo inclusive afetar sua avaliação na burocracia estatal, como também leva para a ordem do dia a falsa questão do risco de rolagem. A possibilidade de o governo ser forçado a uma moratória interna em virtude da incapacidade de rolar sua dívida é o que imediatamente pensam alguns investidores internacionais (e alguns analistas locais) menos esclarecidos. É claro que nós sabemos que isso nunca ocorrerá porque o Banco Central sempre pode zerar o sistema financeiro em uma base overnight usando o guichê do DEMAB (ou seu equivalente atual). Jamais haverá, portanto, uma moratória em decorrência da impossibilidade de rolar a dívida pública. Mesmo assim, muitos analistas e investidores parecem se confundir com essa questão, sendo fato que a percepção de risco de rolagem existe, a despeito de sua completa ausência de fundamento real. Pode-se concluir dessa análise que existe mesmo um dilema na situação brasileira, já que parece haver, de um lado, demanda para um certo alongamento da parcela da dívida pública atualmente em LFTs em direção, digamos, a papéis pré-fixados de três a seis meses e, de outro, uma limitação do lado da oferta, uma vez que ao Tesouro só interessaria alongar a dívida em LFTs rumo a papéis de mais longo prazo, digamos, de três a cinco anos. Se os R$ 500 bilhões da dívida em LFTs forem transformados em papéis pré-fixados de três anos, por exemplo, o Tesouro seria obrigado a fazer leilões semanais de aproximadamente R$ 3 bilhões que não gerariam desconforto em relação ao risco de rolagem. Se, porém, a migração ocorresse rumo a um papel pré-fixado de seis meses, os leilões semanais seriam de aproximadamente R$ 19 bilhões, ao passo que se a migração se desse em direção a um papel pré-fixado de um mês, os

6 leilões semanais atingiriam R$ 116 bilhões, um volume obviamente desconfortável para o emissor público. É possível, todavia, imaginar uma solução simples para esse dilema se o Tesouro, em vez de buscar o alongamento via substituição do estoque de LFTs por títulos pré-fixados, visasse obtê-lo pela redefinição das próprias LFTs. Afinal, as LFTs, um papel com indexação diária à taxa overnight, são apenas um caso extremo na categoria dos papéis com taxa de juros flutuante, chamados internacionalmente de floaters ou floating rate instruments, entre os quais o mais conhecido é o Eurobond, que é tipicamente um título de longo prazo indexado à Taxa Interbancária do Mercado de Londres (Libor) de três a seis meses. Há diversas estratégias possíveis para promover a transformação da dívida pública em LFTs em dívida mais longa com taxas flutuantes. Uma solução simples, mas possivelmente menos satisfatória, seria fazer a curva do novo papel evoluir mensalmente, a partir da data de sua emissão, de acordo com uma taxa pré-fixada igual à taxa overnight do início de cada mês (ou de uma média de alguns dias anteriores a essa data). Uma solução mais complexa e preferível à anterior seria começar com leilões regulares de papéis pré-fixados de um mês, mas limitados a um volume de oferta aceitável para o Tesouro, digamos, de R$ 1 a 2 bilhões por semana. Após algum tempo, com o mercado de papéis mensais pré-fixados adequadamente consolidado, o Tesouro deixaria de emitir LFTs, passando a emitir apenas papéis com taxas de juros flutuantes indexadas em base mensal à taxa do leilão semanal dos pré-fixados mensais. Poderíamos denominar esse novo título de LFT1, lido como LFT-um, de modo que por analogia a atual LFT poderia ser considerada uma LFT-zero. Com os parâmetros atuais, em um período de 19 meses, toda a dívida atual em LFTs poderia estar transformada em dívida em LFTs1, isto é, em dívida com taxas flutuantes de base mensal. É fácil imaginar como tal processo de alongamento por meio da redefinição das LFTs pode ser acelerado quando isso parecer conveniente ao governo. Mesmo antes de terminar o processo de conversão da dívida atual em LFTs para LFTs1, o Tesouro poderia introduzir ofertas semanais regulares de papéis pré-fixados de três e seis meses, e com base neles, após algum tempo, criar as LFTs3 e as LFTs6. Mais adiante, pelo mesmo processo, poderiam ser criadas as LFTs12 e LFTs24, ponto a partir do qual a estrutura se completaria com a emissão de LTNs de prazo mais longo. É claro que, eventualmente, quando a estrutura de prazos já estiver adequadamente habitada em toda a extensão desejável, será simples e quase natural transformar todas as velhas e novas LFTs em papéis pré-fixados, igualando prazos e durações para aposentá-las definitivamente. Como vimos, esse tipo de papel foi uma invenção brilhante dos economistas da era do Cruzado, serviu-nos bem nos anos de crise e experimentação dos planos de estabilização, continuou sendo fundamental na primeira fase da consolidação pós-real, mas agora precisa deixar a cena sem recorrer a traumas e artificialismos.