Capítulo Ocupação do solo urbano: Desafios pós Estatuto das Cidades Getulio Teixeira Batista 1 e Nelson Wellausen Dias 2 1 Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais; getulio@agro.unitau.br 2 Programa de Pós-Graduação em Gestão e Desenvolvimento Regional; nelson.dias@unitau.br Universidade de Taubaté Estrada Mun. Dr. José Luiz Cembranelli, 5.000 Bairro Itaim 12.081-010 - Taubaté, SP Pré-Print de capítulo do Livro: Uma agenda para a sustentabilidade regional: Reflexão e ação - Parte II: Desafios Resumo O processo de urbanização no Brasil aconteceu até recentemente sem planejamento. Na primeira metade século XX, o país era tipicamente rural, após a década de 50 começa a mudar para um perfil urbano, sendo que na década de 1970 o país passa a ser mais urbano que rural, em termos de população. Como resultado desse processo houve um crescimento urbano que resultou em ocupação desordenada dos solos. Nesse ínterim, vários documentos legais para disciplinar o uso do solo foram aprovados em diferentes instâncias. Vale ressaltar a Lei 4.771/65 (Código Florestal), adaptado para o solo urbano pela Lei 7.803/89 alterando (4.771/65 6.535/78 7.511/86), a Lei de Parcelamento Territorial Urbano (Lei 6766/79), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81), a Lei da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9433/97), a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação SNUC (Lei 9985/2000). Entretanto, o maior avanço, em termos legais, veio com o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) que regulamenta o capítulo de política urbana (artigos 182 e 183) da Constituição Federal de 1988. Ao mesmo tempo em que esse documento legal abre amplas perspectivas para a melhoria do uso do solo urbano, ele apresenta o grande desafio de promover a participação comunitária, de forma democrática e efetiva, para salvaguardar o interesse coletivo de melhoria de qualidade de vida, em um setor de atividades econômicas, tradicionalmente dominado pela especulação imobiliária e segregação social. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o mais alto princípio da democracia a participação dos cidadãos nos processos decisórios. Entretanto, ele traz como desafio o exercício democrático por um longo período para se tornar verdadeiramente um instrumento de mudanças. Portanto, o maior desafio para a melhoria do uso do solo urbano é tornar esses documentos legais, primorosamente preparados, aplicáveis à mudança e à restauração de erros de séculos que permearam o processo de urbanização. O desafio se completa na implementação dos Planos Diretores Municipais resultantes da avaliação da legislação vigente, definição dos objetos de mudança, discussão pública, discussão no legislativo e consolidação da proposta.
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 2 Tópicos do Capítulo: 1. Situação do uso do solo urbano no Brasil, em especial da Região do Vale do Paraíba Paulista. 2. Revisão da legislação sobre o uso do solo Inovações Estruturais do Estatuto da Cidade. 3. Realidade urbana versus legislação vigente. 4. Desafios para a efetiva implementação do Estatuto da Cidade - Em que medida os membros da sociedade (civil e governo) estão preparados para a maioridade sugerida pelo Estatuto? 5. Desafios para a definição de indicadores ambientais que permitam uma avaliação constante da sustentabilidade do processo de urbanização envolvendo aspectos econômico-sociais. 6. Considerações finais 7. Referências bibliográficas Situação do uso do solo urbano no Brasil, em especial da Região do Vale do Paraíba Paulista. Para se ter uma visão completa da situação do uso do solo urbano há que se fazer uma abordagem abrangente, desde os tradicionais princípios do Urbanismo e da Arquitetura, até análises que envolvem diferentes escalas no tempo e no espaço, uma vez, que o que ocorre hoje nas cidades é fruto do que aconteceu no campo e do contexto histórico do desenvolvimento do país que passou de uma economia de produção primária, basicamente agrícola, para um modelo com forte componente industrial. A conseqüência foi um êxodo rural marcadamente a partir da revolução industrial do século passado para as cidades trazendo para os solos urbanos um forte componente de especulação imobiliária e segregação sócio-econômica. Desde o início da colonização, as cidades se desenvolveram às margens de rios, por estes facilitarem a comunicação e transporte de mercadorias e abastecimento de água. Esse modelo trouxe duas conseqüências graves: uma na questão ambiental que foi a poluição dos mananciais, com prejuízos substanciais para a pesca, lazer e tratamento de água; outra é o grande desafio da drenagem urbana, agravada pela ocorrência de eventos climáticos extremos, como chuvas torrenciais, cada vez mais freqüentes devido à mudança climática global resultante do efeito estufa causado principalmente pelo crescimento industrial e do transporte, com base no uso de combustíveis fósseis, hoje, uma das grandes verdades
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 3 inconvenientes, didaticamente demonstrada por Al Gore, e que a humanidade terá de enfrentar nas próximas gerações. Historicamente, a urbanização resultou do processo de colonização, para exploração dos recursos naturais, usando principalmente a malha hidrográfica. Hoje, ela sofre influência da legislação e da ação do capital. No Brasil, a urbanização se deu praticamente sem planejamento, raras são as excessoes e quase sempre está ligada à especulação imobiliária. No processo da ocupação do solo, quando a população já está instalada, as atividades diárias geram resíduos, poluem o ar, a água e promovem a segregação, criando divisão nas cidades entre os que têm poder aquisitivo e os que não têm. As classes mais altas ocupam áreas propícias ou modificam as menos adequadas por estarem bem situadas. As classes menos favorecidas ocupam áreas de declives acentuados ou planícies de inundação. A degradação ambiental ocorre em ambos os casos, num por falta de condições, noutro, para satisfazer necessidades. As classes menos favorecidas se adaptam ao local, normalmente inadequado à ocupação. A urbanização em área de inundações compromete recursos de grande importância, especialmente os recursos hídricos, mesmo sendo protegidos por lei, já que muitas vezes prevalece o interesse privado sobre o coletivo (Stempniak, 2005). É bem conhecido que vários aspectos favorecem a degradação dos corpos de água nas cidades, tais como a impermeabilização dos solos (edificações, compactação, asfaltamento, concretagem e resíduos), que dificulta sobremaneira a infiltração de água no subsolo, e acentua as cheias nos períodos de grandes precipitações; os esgotos que, sem tratamento, são lançados nos rios e a mata ciliar que muitas vezes é substituída por grama, para atender planos paisagísticos que valorizam mais a estética do que o funcional. Esses processos das edificações além de impermeabilizarem o solo, alteram a paisagem, afugentam a fauna, geram ilhas de calor pela drástica alteração do micro clima. A crescente urbanização leva à ocupação de áreas impróprias para construção, como as margens de rios e várzeas. Do ponto de vista econômico e de mercado, o espaço tem valor em função de sua localização geográfica e facilidades instaladas, tais como rede viária com avenidas e ruas que aproximam o comércio e serviços oferecidos. Quanto à localização geográfica, a proximidade dessas facilidades valoriza o local, colocando-o à mercê da
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 4 especulação e, conseqüente ocupação, a valorização comercial se potencializa, e conseqüentemente o processo de degradação do entorno. A degradação devido à ocupação do espaço ocorre em dois momentos: inicialmente, na implantação, a construção das edificações, vias de acesso e de serviços básicos (água, esgoto, energia, comunicação, etc.) promovem grande impacto ambiental; posteriormente, quando da fixação da população o processo de degradação continua, resultante das atividades diárias da população implantada. Hoje, a situação urbana do Vale do Paraíba é o resultado de uma longa história de desenvolvimento intra-regional desigual. Um fato marcante foi a mono cultura de café que passou paulatinamente a partir de 1836 a um colapso que culminou em 1935 na decadência econômica de várias cidades, o que inspirou Monteiro Lobato (1923) escrever Cidades Mortas se referindo principalmente a região leste do Vale (Areias e Bananal) onde a produção de café caiu vertiginosamente (SILVA, 2005). Mais recentemente, entre 1950-70 houve um crescimento rápido e desarticulado nas cidades mais industrializadas e situadas nas vias de circulação bem estruturadas como a Estrada de Ferro Central do Brasil, Estrada Velha Rio-São Paulo e Rodovia Presidente Dutra. Esse é o exemplo de São José dos Campos que puxou também o crescimento populacional de cidades como Taubaté, Jacareí, Lorena e Guaratinguetá, o que gerou o aparecimento de centros espontâneos, sem planejamento, de ocupação, com o surgimento de favelas, sem condições mínimas de habitabilidade. Dados demográficos dos anos 80 atestam o grande crescimento populacional de São José dos Campos e cidades vizinhas como Jacareí, Caçapava, Jambeiro, Paraibuna, e Santa Branca passaram a constituir periferia da região metropolitana de São José dos Campos que passou também a atrair a população ativa de outras cidades da região. Dessa forma, São José dos Campos passou a ter um desenvolvimento perigoso, sem condições de estabelecer infra-estrutura adequada para esse afluxo populacional (SILVA, 2005). Em termos quantitativos, a desigualdade intra-regional na ocupação urbana é revelada pela densidade populacional que para o ano base de 2000, variou de 7,2 a 442,4 habitantes por km 2, com média de 103,1 habitantes/km 2 (DIAS et al., 2006). A região geográfica do Vale do Paraíba Paulista abrange 34 municípios e com base em dados do IBGE, em 1950 a população urbana total desta região totalizava 202.498
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 20 social, que tem a saúde como foco de atenções. É também um movimento de luta por um estilo de desenvolvimento sustentável, que satisfaça as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das futuras de satisfazer suas próprias necessidades (WHESPHAL, 2000). Um outro aspecto ligado às ciências sociais e à filosofia é o fato da qualidade de vida ser ligada às condições materiais necessárias a uma sobrevivência digna, ou à necessidade de socialização, sentir-se integrado socialmente e em harmonia com a natureza. Ultimamente, um indicador da desigualdade social freqüentemente utilizado é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse índice mede a qualidade de vida obtida a partir de diversas variáveis, tais como o PIB per capita, a expectativa de vida ao nascer, aspectos da educação formal, entre outras, porém, não incorpora a questão ambiental, fator fundamental na qualidade da saúde e vida das cidades em evolução.
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 21 Considerações finais Um dos principais desafios na ocupação do solo urbano pós Estatuto da Cidade é a mudança de um modelo de política nefasta, segregadora e excludente que imperou por séculos para um modo diferenciado e democrático de gestão urbana que reconheça os conflitos sócio-ambientais, resultantes da ocupação do solo. Esse novo arcabouço jurídico abre espaço para uma nova concepção do uso do espaço público. Novos caminhos se abrem para a melhoria da habitabilidade e combate à degradação ambiental no país, na direção da sustentabilidade urbana. É indubitável que o Estatuto da Cidade constitui-se em importante aparato legal para os gestores urbanos na construção das tão desejadas cidades sustentáveis. Entretanto, apenas a lei não assegura mudança. A abertura legal para a mobilização e participação da comunidade na gestão do espaço público terá que ser construída para ser efetivada na prática. O grande desafio é sedimentar essa gestão descentralizada ao longo da implementação dos planos diretores que nesse ano de 2006 foram formulados. A solução dos conflitos urbanos extrapola a questão legal, os conflitos entre a proteção ambiental e a necessidade de ocupação de novas áreas para receber uma população sempre crescente nos remete a outro desafio que é a inversão do processo de urbanização para o de ruralização, situação que já começa a se configurar no Vale do Paraíba, ainda que de forma muito tímida, e que se apresenta como uma alternativa para a sustentabilidade por facilitar a reciclagem, e o reuso de recursos naturais.
Batista & Dias (2008). Ocupação do solo urbano P. 22 Referências Bibliográficas ABSY, M. L. et al. Avaliação de impacto ambiental: agentes sociais, procedimentos e ferramentas. Brasília, IBAMA, 1995. SILVA, D.F. Crescimento e desequilíbrio regional no Vale do Paraíba: uma abordagem das disparidades econômicas e tecnológicas. 2005, 145 f., Dissertação do Mestrado em Gestão e Desenvolvimento Regional, Universidade de Taubaté, 2005. UNCHS. An Urbanization World: Global Report on Human Settlements. Oxford University Press, Oxford, 1996. World Health Organization (WHO/EOS). Creating healthy cities in the 21st century. Background paper to the United Nations Conference on Human Settlements Habitat II (Istambul, Turquia 3-14 junho). WHO. Genebra, 1996. WESTPHAL, M. F. The Healthy Cities Movement: a commitement with quality of life. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n 1, Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1413-81232000000100005&lng=en&nrm=iso>. Access on: 13 Dec 2006. doi: 10.1590/S1413-81232000000100005, 2000.