VATICANO II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica



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Transcrição:

VATICANO II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica

Coleção Marco Conciliar Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica, Elias Wolff Doutrina Social da Igreja e o Vaticano II, Luiz Gonzaga Scudeler O Concílio Vaticano ii e os pobres, Maria Cecilia Domezi Liturgia no Vaticano II Novos tempos da celebração cristã, Antônio Sagrado Bogaz e João Henrique Hansen Apresentação e coordenação editorial: João Décio Passos e Wagner Lopes Sanchez

Elias Wolff VATICANO II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica

Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Tiago José Risi Leme Manoel Gomes da Silva Filho Mario Roberto de M. Martins Diagramação: Ana Lúcia Perfoncio Capa: Marcelo Campanhã Ilustração da capa: Sergio Ricciuto Conte Impressão e acabamento: PAULUS Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wolff, Elias Vaticano II: 50 anos de ecumenismo na Igreja católica / Elias Wolff. São Paulo: Paulus, 2014. (Coleção Marco Conciliar) Bibliografia. ISBN 978-85-349-4003-0 1. Concílio Vaticano II (1962-1965) 2. Documentos oficiais 3. Ecumenismo 4. Igreja Católica - História - Século 20 I. Título. II. Série. 14-07552 CDD-262.52 Índices para catálogo sistemático: 1. Concílio Vaticano II: Documentos 262.52 1ª edição, 2014 PAULUS 2014 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br editorial@paulus.com.br ISBN 978-85-349-4003-0

Siglas AAS Acta Apostolicae Sedis AG Ad Gentes ARCIC Comissão Internacional Anglicana e Católica Romana CDC Código de Direito Canônico CIC-CIMI Comissão Igreja Católica-Conselho Mundial de Igrejas CD Christus Dominus CDF Congregação para a Doutrina da Fé CICL Comissão Internacional Católico-Luterana CICO Comissão Internacional Católico-Ortodoxa CMI Conselho Mundial de Igrejas CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CONAC Comissão Nacional Anglicano-Católica CPPUC Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos DE Diretório Ecumênico DH Dignitatis Humanae EG Evangelii Gaudium EO Enchiridion Oecumenicum GS Gaudium et Spes LG Lumen Gentium NA Nostra Aetate OE Orientalium Ecclesiarum SC Sacrosanctum Concilium UR Unitatis Redintegratio UUS Ut Unum Sint 5

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez O a Igreja católica em muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de construção assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e perseverante desse Papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo Concílio em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas. Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo, assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade, reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão consigo. 7

Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo. O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto da reflexão teológica, o pós-concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso, sobretudo nas primeiras décadas do pós-concílio, e particularmente no hemisfério sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas, sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II, do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas por esforços de de- 8

monstração da intenção original das decisões dos padres conciliares. Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso, expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos e esperançosos. O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse Concílio em curso completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas. Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou, entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parcei- 9 Apresentação da coleção Marco Conciliar

Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica ros de busca da verdade e na construção da fraternidade universal. A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas, nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e a análise crítica balanço e prospectiva dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a partir da Cúria Romana. Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em mui- 10

tos aspectos radicalmente diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de 1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua, sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o serviço desinteressado a toda humanidade, particularmente aos mais necessitados. O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram, sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges passaram ao status de irmãos separados, de distantes passaram a fazer parte do grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de um possível pensamento conciliar. O olhar ecumênico esteve presente como um vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais do Concílio (cf. UR 1). 11 Apresentação da coleção Marco Conciliar

Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da Igreja. Em seu Discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: Deus quer salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4). E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão geral: Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo (n. 24). De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas denominações. A constatação comum dos cristãos de que as divisões internas da mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão fazia do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das fronteiras católicas. 12

Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelaram avanços e estagnações. O medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós-conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a convivência entre todos os povos. Em tempos de pluralidade cultural e religiosa, o diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que possibilita a construção de patamares para a convivência humana. Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 244). Apresentação da coleção Marco Conciliar João Décio Passos Wagner Lopes Sanchez Coordenadores 13

Introdução No contexto da celebração do cinquentenário do Vaticano II (1962-1965), muitas são as iniciativas de revisitar o Concílio, buscando compreender o que ele significou e significa ainda hoje para o ser e o agir da Igreja católica. Este livro situa-se no conjunto dessas iniciativas, com um objetivo específico: refletir sobre o ensino ecumênico do Vaticano II, verificando a sua incidência na consciência e na ação eclesial dos católicos, bem como no movimento ecumênico. É importante rever as razões do ingresso da Igreja católica no movimento ecumênico, as implicações do ecumenismo na vida da Igreja, suas iniciativas mais significativas, os desafios atuais e as perspectivas para o futuro do ecumenismo. Pretendemos verificar aqui em que medida o Vaticano II e o ecumenismo se implicam mutuamente na orientação para a Igreja dos nossos tempos, tanto no âmbito universal quanto no âmbito local. A proposta ecumênica do Vaticano II é compreendida no horizonte do programa de aggiornamento proposto pelo Concílio, que, compreendendo estar a Igreja necessitada de renovação (UR 6), entende ser o ecumenismo uma fundamental contribuição para que ela aconteça. O impulso para isso vem, entre outros, do método teológico proposto por João XXIII ao estabelecer uma distinção entre o conteúdo da fé e a sua formulação, o que dá abertura para reconhecer elementos de convergência e até mesmo de comunhão com a explicitação da fé na teologia das outras Igrejas. Por sua vez, os padres conciliares afirmaram a existência de uma 15

Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica hierarquia das verdades na doutrina católica (UR 11), o que possibilita melhor aproximação entre as Igrejas na medida em que elas se entendem vinculadas ao núcleo comum da fé cristã. Esses elementos metodológicos da reflexão da fé possibilitaram um redimensionamento eclesiológico em perspectiva ecumênica, compreendendo a distinção entre as instituições católicas que concretizam a Igreja de Cristo e esta Igreja em si mesma, que subsistindo na tradição católica não deixa de ter uma presença operante também nas outras Igrejas (LG 8; UUS 11). Tal é o que se expressa no reconhecimento dos elementa ecclesiae Christi nas diferentes tradições eclesiais e, consequentemente, da graça salvífica de Cristo, que, por esses elementos, nelas atua (LG 15; UR 3). Foi com esse espírito que, nas primeiras décadas após a realização do Concílio Vaticano II, os cristãos católicos passaram a se integrar nas fileiras ecumênicas com a consciência de, por um lado, ter entrado tarde nos caminhos ecumênicos e, de outro, cientes de que há ainda muito caminho a ser feito para alcançar a meta da unidade. Agradecidos aos cristãos e às Igrejas ecumênicas da primeira hora, que abriram os caminhos em busca da unidade, os católicos podem agora, e devem, dar a sua contribuição para alargar suas veredas, fortalecer os passos da caminhada, ajudar na busca da direção. A partir do Vaticano II é impossível abandonar o caminho ecumênico porque ele é tanto o caminho da Igreja quanto o jeito de a Igreja caminhar. Após cinquenta anos do Vaticano II e, concomitantemente, cinquenta anos de caminhada ecumênica para a Igreja católica, o que nela mudou? A resposta a essa questão deve ser buscada no interior da tradição católica e na sua relação com as diferentes Igrejas. Na perspectiva ad intra, somente onde o Vaticano II foi de fato assumido é que o ecumenismo ganhou espaço na Igreja. Ali houve um redimen- 16

sionamento da Igreja em sua autoconsciência, suas instituições, seus projetos de evangelização, sua espiritualidade, na perspectiva do diálogo com as diferentes tradições eclesiais, religiosas e culturais do nosso tempo. Nesses ambientes, o ecumenismo pode influenciar positivamente no modus essendi e no modus operandi das comunidades católicas. Na perspectiva ad extra, o novo modo de a Igreja ser em si mesma é o que possibilita novas relações com o mundo exterior, com a sociedade, com as religiões, com as demais Igrejas. Em relação a estas, mudou a perspectiva do olhar católico, com o reconhecimento da identidade cristã de seus membros e do patrimônio comum na fé cristã; o reconhecimento da sua eclesialidade pela presença e ação nelas da Igreja de Cristo (LG 8.15; UR 3; UUS 11); o reconhecimento do valor da sua ação evangelizadora, do seu testemunho de fé e de santidade, da salvação que o Espírito nelas e por elas realiza (UR 3). O Vaticano II mudou o rosto da Igreja católica para as outras Igrejas, e o rosto destas para a Igreja católica. Agora são rostos de irmãos, com as mesmas marcas e cicatrizes do pecado que as fragiliza e também da graça que as fortalece. É pouco? Certamente, em vista do muito que é preciso ainda obter para alcançar a unidade desejada. Houve quem se frustrou pelo fato de o Concílio não ter abolido a excomunhão de Lutero, ou por ter sido muito tímido na eclesiologia das Igrejas oriundas da Reforma, ou demasiado reticente na prática da hospitalidade eucarística, entre outros. Poderia ser feito mais da parte católica para promover o ecumenismo? Sim. Há um mea-culpa explícito em vários documentos do magistério católico tanto por reconhecer a sua parcela de responsabilidade na divisão dos cristãos quanto pela consciência de nem sempre ter impulsionado os esforços para recompor a unidade. Mas o Vaticano II não pode ser tirado do contexto no qual aconteceu. A maioria dos padres conciliares alimentava a expectativa de uma simples conti- 17 Introdução

Vaticano II 50 anos de ecumenismo na Igreja católica nuidade ao Vaticano I, e é inegável o avanço que o Vaticano II significou na abertura para o diálogo com o mundo plural, em termos de cultura e de religião. Naquele contexto, são compreensíveis as resistências para assumir o compromisso ecumênico e a timidez do seu posicionamento teológico em questões que hoje podem ser consideradas superadas. Mais difícil, porém, é compreender as resistências ao ecumenismo no período pós-vaticano II. Os meios católicos onde existem atualmente manifestações de preconceito e discriminação por motivos religiosos, de fundamentalismo e exclusivismo confessional no campo da doutrina, da espiritualidade e da pastoral, significam distanciamento do Vaticano II e o consequente abandono da sua orientação ecumênica. As pessoas e as instâncias da Igreja que assumem essa postura nem sempre negam, em teoria, a doutrina ecumênica da Igreja. Mas vivem uma desobediência prática do magistério conciliar. Falta-lhes o sentire et vivere cum ecclesia na recepção do Vaticano II. O ecumenismo não se faz apenas com bons propósitos e nem mesmo apenas com afirmações doutrinais. E muito menos pode-se amparar na doutrina para afirmar posições pessoais antiecumênicas. O ecumenismo precisa tornar-se estrutural e natural no cotidiano da Igreja, adquirindo cidadania eclesial. O Vaticano II, bem como o magistério posterior, exorta os cristãos católicos para um engajamento efetivo em iniciativas ecumênicas, a disponibilidade sincera para o diálogo, o reconhecimento dos dons do Espírito nos outros, posturas que de fato expressam a convicção ecumênica da Igreja. Não é suficiente nem mesmo realizar atos ecumênicos, é preciso ser ecumênico. O ecumenismo é uma atitude, um comportamento, um modo de ser. É um espírito, um carisma e uma vocação de todo cristão, de modo que o ecumenismo deve impregnar o ser cristão como o impregna a sua própria fé. O ecumenismo é uma forma de crer. Fé cristã e ecumenismo são realidades 18

que se implicam mutuamente, a fragilidade e a força de uma são também a fragilidade e a força de outra. Assim, o ecumenismo é um serviço ao Evangelho e à Igreja, alargando os horizontes da sua compreensão e vivência, possibilitando a interação com outras formas de crer e de organizar a vida cristã. Nesse serviço interagem mística e militância, identidade e profecia, realismo do presente e esperança utópica no futuro. Como profecia utópica, de um lado o ecumenismo questiona toda tendência ao fechamento identitário da Igreja, toda pretensão de absolutismo, fundamentalismo e exclusivismo que não considere o valor da diversidade, dos dons e carismas que o Espírito concede no interior do cristianismo. De outro lado, o ecumenismo afirma que a comunhão plena entre os cristãos é possível porque tal é o desígnio de Deus, não obstante as dificuldades que se manifestam no presente. A nós cabe trabalhar para que esse desígnio aconteça o mais breve possível em nossa história. Para todos os cristãos cabem as palavras do Vaticano II: Introdução Este sagrado Concílio deseja insistentemente que as iniciativas dos filhos da Igreja católica juntamente com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar consciente de que o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca inteiramente a sua esperança na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai para conosco e na virtude do Espírito Santo. E a esperança não será confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5) (UR 24). 19