Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas



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Transcrição:

Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas

POR MARES ANTES NAVEGADOS JOSÉ DE GUIMARÃES

Conselho Editorial Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt 2014 João Cerqueira Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. C3359 Cerqueira, João. Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas/João Cerqueira. Jundiaí, Paco Editorial: 2014. 164 p. Inclui bibliografia, inclui figuras. ISBN: 978-85-8148-602-4 1. José de Guimarães 2. Intercâmbio 3. Cultura 4. Obra I. Cerqueira, João. CDD: 927 Índices para catálogo sistemático: Artistas 927 Cultura e Processos Culturais 301.2 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal

Um verdadeiro artista-marinheiro, assim se descreve o português José de Guimarães. Ele descobre a imagem com a segurança de um marinheiro que aborda a terra após uma longa viagem. Uma viagem cheira de perigos, os da arte, vivida na solidão completa de um navegador português do século XVI [ ]. Achille Bonito Oliva 1 [ ] Tal como Magalhães, seu compatriota, este homem [ ] lança a sua pintura à conquista de novos horizontes. Catherine Clerc 2 José de Guimarães é português. Como os seus antepassados, ele percorre os mares de todos os continentes e, como eles, coloca, nos locais onde acosta, estranhos objectos, futuros testemunhos da sua passagem. Collete Lambrichs 3 1. Oliva, Achille Bonito; Cler, Catherine. Icarus. Lausane: Editions Catherine Clerc, 1991. 2. Ibidem. 3. Jones, Philippe; Van Thiegem, Jean-Pierre; Lambrichs, Collete José de Guimarães. les voix nomades. Bruxelas: Parc Regional Tourvay Solvay, 2007.

SUMÁRIO Introdução...9 CAPÍTULO 1 Fase Africana...21 1. O Fetiche e a Máscara...29 2. Obras...33 2.1 Sem título 1971...33 2.2 Alfabeto de símbolos Dupla cabeça tatuada com um olho 1972...34 2.3 Gioconda Negra 1975...36 2.4 O Pescador 1983...38 2.5 Automóvel 1983...40 2.6 Devorador de fogo 1983...42 2.7 Velásquez 1984...44 2.8 Ícaro 1985...47 2.9 Camões 1985...50 2.10 Inês de Castro 1986...52 2.11 Rei D. Pedro I 1985...54 2.12 Rei D. Sebastião 1985...56 2.13 Travesti 1987...58 2.14 Esfinge 1988...61 2.15 O grande fetiche vermelho 1989-90...63 2.16 Vasco da Gama 1991...65 CAPÍTULO 2 Fase Mexicana...69 1. A Festa dos Mortos...77 2. Obras...82 2.1 Série México 1995...82 2.2 Chac Mool 1995...85

2.3 Amantes 1995...87 2.4 Sem Título 1995-96...89 2.5 Papeles Picados Série México 1996...92 2.6 Estação de Chabacano 1996...95 2.7 As Civilizações...97 2.8 As Culturas...99 2.9 Estação de Metro de Carnide 1997...102 2.10 A Criação do Mundo...104 2.11 As Tentações...108 2.12 A Vida e a Morte...111 2.12.1 Galeria de Eros...111 2.12.2 Galeria das Caveiras...112 2.12.3 Galeria dos Feitiços...113 2.13 As Grandes Viagens...1114 2.13.1 Mural dos Oceanos...1114 2.13.2 Mural dos Descobridores...1115 CAPÍTULO 3 A Fase Asiática...117 Introdução...123 2. Obras...130 2.1 Série China 1997...130 2.2 Série Hong-Kong Le Pavillon des Cigognes 1997...133 2.3 Série Hong-Kong A Perdiz e os Dragões 1997...135 2.4 Regresso ao Lago do Oeste 1998...138 2.5 Contra a Corrente 1998...141 2.6 A Escultura Pública...142 2.7 O Jardim das Artes de Macau 1999...148 2.8 A Intervenção em Kushiro: José de Guimarães contra o Nevoeiro 2000...150 Referências...153

Introdução Através de signos antropomórficos, zoomórficos e geométricos, José de Guimarães recupera os mitos e as formas de expressão das diversas culturas africana, ameríndia, asiática com as quais os portugueses se relacionaram nos séculos passados, confrontando-os com a própria História de Portugal 4. Tal como a arte manuelina incorporou elementos exóticos animais, flora, indígenas aos elementos decorativos nacionais, José de Guimarães transpõe máscaras, caveiras, entes mitológicos e caligrafia oriental para as telas mesclando-os com sua expressão plástica moderna. Dessa forma, consoante vai navegando pelas terras a que os nautas portugueses aportaram, recolhendo as suas especiarias, o seu ouro e os seus diamantes, promove o encontro sincrético da ancestralidade minhota e da modernidade europeia com as culturas de outros continentes. E a transfiguração de todos estes códigos plásticos nos referidos signos demonstra que José de Guimarães, ao invés de seus antepassados, não se limita a uma política de transporte, investindo a riqueza encontrada. Na nossa navegação pelas rotas de José de Guimarães, num périplo que passa pela Europa, África, o México, a China e o Japão, constatamos que a apologia do encontro das culturas e da mestiçagem dos povos começa, a partir de 1971, por se confundir com a resistência à ditadura do Estado Novo e o protesto contra a Guerra Colonial, sendo durante esse período que o artista descobre a máscara e o fetiche africanos, assim 4. Além das rotas dos navegadores portugueses, José de Guimarães inclui também uma rota dos navegadores espanhóis: o México. Todavia, entendemos que tal não invalida afirmar que o artista percorreu realmente as rotas dos navegadores portugueses, embora haja incluído um outro destino. Pois se o México não se integra nas Descobertas portuguesas, já faz parte do Encontro de Culturas que, a partir do século XV, uniu a Europa ao resto do mundo. 9

João Cerqueira como desenvolve o seu alfabeto de signos inspirado na tribo Ngoio de Cabinda que o próprio define assim: é um processo de representar códigos e susceptível de criar composições onde a forma ideográfica não existe apenas na sua estreita configuração, mas fornece também um conjunto de ideias que transmitem, depois de descodificadas, a mensagem inerente e implícita à própria obra no seu conjunto 5. Talvez porque a própria miscigenação cultural ou afirmação da cultura negra já fosse vista pelo regime o qual entendia a mestiçagem como a imposição da cultura portuguesa aos africanos como um acto de revolta. E essa atitude de desafio e subversão das normas não mais deixará de se manifestar no sequente percurso do artista, como se lutasse constantemente contra uma ordem estabelecida. Munido do poder semiótico de um alfabeto de signos e tomando como modelo a escultura africana, José de Guimarães vai depois criar picto-esculturas de pasta papel e caixas-relicário dois tipos distintos de fetiches, prosseguindo de seguida o seu projecto multicultural na reinterpretação da Festa dos Mortos Mexicana e dos rituais pré-colombianos, para por fim se embrenhar nos mistérios da poesia e da mitologia chinesa e reinterpretar Hokusai. Assim, numa viagem que já leva mais de quarenta anos, cumpriu uma circum-navegação destinada a buscar sempre novos destinos mal considera ter cumprido ou explorado a missão a que se propôs a terra onde aportou. Podemos assim estabelecer um paralelismo entre a assimilação de outras culturas por José de Guimarães e o Movimento Antropofágico brasileiro criado por Oswald Andrade em 1928. Este, inspirado pela leitura de Duas viagens ao Brasil 6, livro no 5. Guimarães, José de. Entender a Pintura 3 José de Guimarães. Revista Arte Ibérica, n. 13, p. 11, abr. 1998. 6. Staden, Hans. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. 10

Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas qual o alemão Hans Staden descreve a vida dos índios brasileiros no século XVI e os seus rituais de antropofagia (dos quais escapa quase miraculosamente), redige o Manifesto Antropofágico 7, onde preconiza a valorização das raízes culturais nativas (índias e negras) e a deglutição ou seja, a assimilação crítica das influências europeias e americanas Tupy or no tupy, that is the question, devendo o artista ou o intelectual se encontrar num permanente estado de insaciável fome pela novidade que o leve a devorar tudo aquilo que o resto do mundo lhes ofereça. Assimilação essa que explica a própria formação do Brasil. Recorrendo a outro pensador brasileiro, consideramos que também existem afinidades entre as teorias de Gilberto Freyre 8, que na interpretação do passado colonial do Brasil procuram reconciliar no presente brancos, negros e índios ou melhor, levar o povo brasileiro a aceitar e a valorizar suas origens mestiças, transformando a vergonha em orgulho nacional, e a obra de José de Guimarães que, pela via plástica, servindo-se de um código de signos, desenvolve e propaga a mesma apologia da mestiçagem dos povos e do encontro das culturas. Mas, se os ícones de outras culturas são transfigurados pela linguagem plástica do artista, também esta é modificada pela vinda daqueles, num processo simbiótico que produz e explica a evolução da sua arte. Como tal, com a introdução de máscaras e fetiches africanos surgem composições misteriosas de sofrimento e violência onde a imagética Pop se torna residual, submergida à exaltação da civilização de consumo ocidental pela magia africana protestante de um regime político; as caveiras e os esqueletos mexicanos trazem materiais térreos, salpicos de tinta e dripping tornados chuva de sangue e favila, um aumento do matiz cinza e uma maior autonomização das 7. Disponível em: <http://www.puccamp.br/centros/clc/jornalismo/projetosweb/2003/ Semanade22/manifesto.htm>. 8. Freyre, Gilberto. A casa grande e a senzala. Lisboa: Livros do Brasil, 2001. 11

João Cerqueira partes anatómicas, conquistando estas o direito a uma existência individual que dispensa o resto do corpo humano; e na fase asiática, a presença massiva dos signos do alfabeto chinês, dos recortes de papel e de fluxos energéticos coloridos satura as telas de elementos pictóricos, volvendo-as um manto denso, a ponto de aquelas se aproximarem da abstracção e da mencionada dança de membros soltos do corpo se tornar mais rara, por a fragmentação física ser apanhada nessa rede de malha fina e, tal um viajante sob uma tempestade de areia, tornar-se indefinida e difusa. Esta exploração de novas culturas foi acompanhada de uma análoga procura de novos materiais e técnicas, completando a descoberta das civilizações com a descoberta da tecnologia. Na pintura, manteve o colorido esfuziante das cores primárias e a estrutura espacial dominada por figuras planas comprimidas contra um fundo neutro, que depois da Fase Mexicana apresentará recortes de papel tributários do artesanato, mas fez desaparecer o contorno de linha negra que delimitava as primeiras figuras. Depois, introduzirá outras inovações nos quadros como a técnica do dripping, a pintura gestual, o empastamento, a mistura de areia, a colagem de estilhaços cerâmicos, a purpurina, e, nas caixas-relicário, onde por vezes pinta sobre cartão, a junção de objectos de consumo e detritos associados ao lixo. Tal demanda permanente de uma nova matéria-prima, como se essa viagem pelo mundo exigisse também uma renovação contínua de materiais, reflecte-se sobretudo nas suas esculturas, para feitura das quais recorrerá à madeira, à pasta de papel, ao azulejo, à pastilha de vidro, a espelhos, ao betão, ao ferro, ao aço inox, ao alumínio, aos néones, à fibra de vidro, à fibra óptica e ao LEM. Porém, trata-se de uma arte europeia contaminada por outras culturas ou de uma genuína arte mestiça onde o peso europeu equivale aos demais? Reformulando a questão, não 12

Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas será, inevitavelmente, a arte de José de Guimarães um olhar europeu, distorcido pela sua própria formação cultural, cujos estudos e viagens, conquanto permitam uma maior nitidez, não chegam todavia a fornecer as lentes exactas para penetrar no âmago dessas culturas estranhas? Se assim for, estaremos apenas perante uma mera justaposição de iconografia, tradições, conhecimentos e técnicas de outras culturas, consideradas exóticas? Ou, pelo contrário, de algo novo, cuja síntese dos variados elementos heterogéneos que a compõe seja distinta de uma colagem dessas partes, acabando por não pertencer a nenhuma cultura nem a nenhum território, mas a todos ao mesmo tempo? Acreditamos que a melhor resposta a esta questão foi dada pelos países onde o artista colheu os elementos culturais que lhe permitiram criar novas obras, uma vez que esses povos, como os mexicanos, os japoneses e os chineses, reconheceram a importância do trabalho de José de Guimarães, encontrando decerto algo nos seus signos que, a nós ocidentais, sempre nos escapará a sua identidade? E a prova desse reconhecimento são as encomendas de obras públicas e o acolhimento em exposições individuais, num trajecto que vai de Chabacano a Kushiro. Quando os poderes públicos da Cidade do México lhe confiam a decoração da estação de metropolitano de Chabacano esperando decerto que o tema da Festa dos Mortos seja abordado, preterindo assim outros artistas nacionais, estão indubitavelmente a afirmar que José de Guimarães captou essa essência do ritual e do ser mexicano. O mesmo sucedendo com os governantes de Macau e das diversas cidades do Japão que lhe encomendaram esculturas públicas e intervenções urbanas, por estar implícito nesse convite o reconhecimento do saber e da capacidade do artista para penetrar na cultura e na mentalidade dos chineses e dos japoneses. E se em África ainda não se verificou tal receptividade embora José de Guimarães tenha 13

João Cerqueira exposto em Angola depois da independência, isso deve-se, provavelmente, à instabilidade política, às guerras e aos problemas económicos que flagelam o continente. Porém, carregada de simbologia, a arte de José de Guimarães exige uma grande preparação do espectador para poder comunicar a sua mensagem, sendo um bom exemplo o Dragão Chinês, o qual tem um significado benéfico totalmente oposto ao da criatura demoníaca europeia. Afinal, estará o público de outros países informado sobre os rituais de magia africana, a Festa dos Mortos mexicana, a complexidade da poesia chinesa e as filosofias orientais? Ou seja, estará realmente a mensagem do artista a ser transmitida às massas ou, pelo contrário, apenas é descodificada pelas elites e nos circuitos da arte? Se não estamos certos de que tal mensagem, pelas dificuldades postas pela decifração dos signos, seja universalmente compreendida, parece-nos no entanto que é possível uma outra leitura iconográfica mais óbvia. Referimo-nos ao sexo. Pois finda a Guerra Colonial, o traço dominante nas obras de José de Guimarães, coabitando, conduzindo ou até se sobrepondo à miscigenação, são os jogos eróticos. O encontro entre dois, ou mais personagens, mesmo quando disfarçado por pantominas lúdicas, escondido numa pletora de elementos iconográficos ou maculado por ambientes tétricos, prefigura ou explicita uma intenção ou um acto sexual. Como que ilustrando o discurso de Aristófanes 9 no Banquete de Platão, quando explica que a atracção entre os sexos é o resultado da tentativa de reunião da natureza original dos Andróginos cortada por Zeus em duas partes uma masculina, outra feminina, os personagens masculinos de José de Guimarães lançam-se impetuosamente sobre as figuras femininas ou procuram seduzi-las com momices exibicionistas. 9. Platão. O Banquete. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986, p. 66-74. 14

Por Mares antes Navegados: José de Guimarães na Rota dos Descobrimentos e do Encontro de Culturas Contudo, fazem-no, não de acordo com o conceito platónico de amor, mas com a fúria de uma posse carnal bruta, evidenciada pelos seus genitais intumescidos e línguas lascivas, onde o desejo é mais forte do que Eros. Daí resulta que se José de Guimarães quer transmitir uma mensagem de apologia do Encontro e da Miscigenação dos povos e das culturas, não sacrifica todavia a sua linguagem plástica a semelhante objectivo. Pois é a apologia da mistura das culturas e dos seres humanos que se submete à sua criação artística eivada de erotismo e não o contrário. Como se um sortilégio do sexo tivesse subjugado todas as referidas civilizações. Mas, conforme atrás afirmado, tendo em conta que o artista se expressa mediante um alfabeto de signos fortemente erotizado onde predominam partes anatómicas femininas como seios, coxas, nádegas e vulvas estilizadas, parece-nos que outro não poderia ser o resultado, acabando os novos signos adicionados por serem também contaminados pelo frenesi do desejo sexual. Porém, se no percurso do artista o erotismo prevalece sobre todas as culturas, nenhuma o conseguindo refrear mesmo quando se trata de fenómenos associados à espiritualidade, essa atracção entre sexos metamorfoseia-se de acordo com a civilização onde se manifesta. A ponto de a própria morte e seres desprovidos de carne como os esqueletos revelarem uma excitação sexual semelhante à de qualquer ser humano desvairado pela volúpia. Desse modo, na pudica Festa dos Mortos mexicana as caveiras e os esqueletos enlaçam as línguas e entregam-se a jogos de sedução, e o sóbrio Dragão Chinês investe de língua em riste sobre corpos femininos e induz em tentação amantes que se encontram nas margens dos lagos comportamentos pouco prováveis de suceder no acordo das mitologias que lhes deram origem. Sendo apenas natural por estar associada aos cultos de fertilidade da magia negra a sexualidade envolvendo fetiches e máscaras africanas. 15