DOCUMENTO DE TRABALHO

Documentos relacionados
POLÍTICA DE DIVERSIDADE DO GRUPO EDP

PROPOSTA DE REVISÃO CURRICULAR APRESENTADA PELO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CIÊNCIA POSIÇÃO DA AMNISTIA INTERNACIONAL PORTUGAL

Os Segredos da Produtividade. por Pedro Conceição

GESTÃO CURRICULAR LOCAL: FUNDAMENTO PARA A PROMOÇÃO DA LITERACIA CIENTÍFICA. José Luís L. d`orey 1 José Carlos Bravo Nico 2 RESUMO

CAPÍTULO 2 DEMOCRACIA E CIDADANIA

Educação para os Media e Cidadania

CONCEPÇÃO E PRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: UM OLHAR SOBRE O PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO RAFAELA DA COSTA GOMES

Uma globalização consciente

DECLARAÇÃO DE SUNDSVALL

CNIS / CES / EDUCAÇÃO DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS A EDUCAÇÃO NO SECTOR SOLIDÁRIO DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

1. Tradicionalmente, a primeira missão do movimento associativo é a de defender os

Auxílio estatal n SA (2010/N) Portugal Alteração do regime de auxílios para a modernização empresarial (SIRME)

VOLUNTARIADO E CIDADANIA

Apresentação do GIS - Grupo Imigração e Saúde / Parte 2: a utilidade do GIS para os imigrantes

Código de Ética e de Conduta

A FIGURA DO ESTADO. 1. Generalidades

Tal como pretendemos salientar ao longo do primeiro capítulo, no período da

NORMAS INTERNACIONAIS DO TRABALHO Convenção (n.º 102) relativa à segurança social (norma mínima), 1952

CAPÍTULO I Rádio e Televisão de Portugal, S. A. Artigo 1º. Natureza, objecto e Estatutos

PROJECTO DE LEI N.º 671/X. Altera o Código da Estrada e o Código do Imposto sobre Veículos. Exposição de Motivos

CO SELHO DA U IÃO EUROPEIA. Bruxelas, 3 de Outubro de 2011 (06.10) (OR.en) 14552/11 SOC 804 JEU 53 CULT 66. OTA Secretariado-Geral do Conselho

SEMINÁRIO 'AS NOVAS FRONTEIRAS E A EUROPA DO FUTURO' ( ) Braga

GEOPOLÍTICA PORTUGUESA DO SÉC. XXI: PERSPECTIVA E PROSPECTIVA

SÍNTESE a SÍNTESE. Janet Murdock NOVEMBRO Understanding conflict. Building peace.

Projecto de Lei nº 68/XII. Lei de Bases da Economia Social

PARECER N.º 26/CITE/2006

1.1. REDE SOCIAL EM PROL DA SOLIDARIEDADE

Exercícios de Revisão RECUPERAÇÃO FINAL/ º ANO

Pobreza e Exclusão Social

DEPARTAMENTO DA IGUALDADE E COMBATE

C 188/6 Jornal Oficial da União Europeia

Prioridades da presidência portuguesa na Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

Intervenção de Sua Excelência. o Presidente da República Portuguesa. na Comissão Económica para a América. Latina e Caraíbas - CEPAL

A IMPORTÂNCIA DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO PARA OS CURSOS PRÉ-VESTIBULARES

DOCUMENTO DE CONSULTA REGULAMENTO DO BCE RELATIVO ÀS TAXAS DE SUPERVISÃO PERGUNTAS E RESPOSTAS

PROJECTO DE RELATÓRIO

PLANO ESTRATÉGICO (REVISTO) VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA, ATRAVÉS DE UMA ECONOMIA SUSTENTÁVEL

PROJECTO DE RELATÓRIO

Tratado de Lisboa 13 Dezembro Conteúdo e desafios

DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL

Anexos Arquitectura: Recurso Estratégico de Portugal

LIDERANÇA, ÉTICA, RESPEITO, CONFIANÇA

Senhor Presidente e Senhores Juízes do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo,

Avaliação De Desempenho de Educadores e de Professores Princípios orientadores

INOVAÇÃO PORTUGAL PROPOSTA DE PROGRAMA

L 343/10 Jornal Oficial da União Europeia

UNIDADE 7 DIFERENÇA E IDENTIDADE E DIREITO À DIFERENÇA

Consulta pública. Sistema de Cobertura do Risco de Fenómenos Sísmicos

Equilíbrio de Género nos Conselhos de Administração: as Empresas do PSI 20

POLÍTICA DE EQUIDADE DE GÊNERO E DIVERSIDADE

O SUCH Serviço de Utilização Comum dos Hospitais é uma associação privada sem fins lucrativos ( pessoa colectiva de utilidade pública).

ESPAÇO(S) E COMPROMISSOS DA PROFISSÃO

Centro Nacional de Apoio ao Imigrante

Implicações da alteração da Taxa de Juro nas Provisões Matemáticas do Seguro de Vida

CASAMENTOS FORÇADOS. Amnistia Internacional. Plano de Aula SOBRE ESTE PLANO DE AULA CONTEÚDO OBJETIVOS: MATERIAIS NECESSÁRIOS.

Introdução aos três subtemas da Trienal

CURSO DE GESTÃO BANCÁRIA

Proposta para a construção de um Projecto Curricular de Turma*

Três exemplos de sistematização de experiências

A Bandeira da Europa simboliza a União Europeia e também representa a unidade e a identidade da Europa. O circulo de estrelas douradas representa a

CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Bruxelas, 30 de Novembro de 2000 (13.10) (OR. fr) 14110/00 LIMITE SOC 470

Divisão de Assuntos Sociais

DOCUMENTO DE TRABALHO

De acordo com a definição dada pela OCDE,

Europa e África: que futuro comum? Conferência Sala 1 da Fundação Gulbenkian, Lisboa, 12 de Março de Declaração Final

Junta de Freguesia de Ançã

Elaboração de Projetos

Direito das sociedades e governo das sociedades: a Comissão apresenta um Plano de Acção

Tomada de posse do Novo Presidente do Instituto de Seguros de Portugal. Intervenção do Ministro de Estado e das Finanças. - 2 de Outubro de

POSIÇÃO DA UGT SOBRE A ACTUAÇÃO DO FMI EM PORTUGAL

Vencendo os desafios da Educação nos PALOP

Professor: MARCOS ROBERTO Disciplina: HISTÓRIA Aluno(a): Série: 9º ano - REGULAR Turno: MANHÃ Turma: Data:

Empreendedorismo social

As decisões intermédias na jurisprudência constitucional portuguesa

TUDO O QUE APRENDEMOS É BOM

A Alienação (Karl Marx)

Propostas para uma Política Municipal de Migrações:

Bilinguismo, aprendizagem do Português L2 e sucesso educativo na Escola Portuguesa

Kelly Neres da Silva 1

Projecto de incentivo ao desenvolvimento e organização da micro-produção. Autoria: Junta de Freguesia de Brandara

CONFERÊNCIA ESTADO, ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PREVENÇÃO DA CORRUPÇÃO SESSÃO DE ABERTURA

MINISTÉRIO DA HOTELARIA E TURISMO

COMISSÃO DE DIREITO DO TRABALHO

que implica a redescoberta ou a invenção de actividades produtivas de proximidade. Esta posição tem-se traduzido na identificação, criação e promoção

DISCUSSÕES UE/EUA RELATIVAS AO ACORDO SOBRE EQUIVALÊNCIA VETERINÁRIA

Projecto de Lei n.º 54/X

A 3ª EDIÇÃO DO FÓRUM DA CIDADANIA

SEMINÁRIO OPORTUNIDADES E SOLUÇÕES PARA AS EMPRESAS INOVAÇÃO E COMPETITIVIDADE FINANCIAMENTO DAS EMPRESAS OPORTUNIDADES E SOLUÇÕES

Um projecto voltado para o futuro

TRABALHANDO A EDUCAÇÃO NUTRICIONAL NO CONTEXTO DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA NA SAÚDE DA FAMÍLIA EM JOÃO PESSOA-PB

PROJECTO DE CARTA-CIRCULAR SOBRE POLÍTICA DE REMUNERAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

Organização. Trabalho realizado por: André Palma nº Daniel Jesus nº Fábio Bota nº Stephane Fernandes nº 28591

Transcrição:

Euro-Latin American Parliamentary Assembly Assemblée Parlementaire Euro-Latino Américaine Asamblea Parlamentaria Euro-Latinoamericana Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana ASSEMBLEIA PARLAMENTAR EURO-LATINO-AMERICANA Comissão dos Assuntos Políticos, da Segurança e dos Direitos Humanos 19.3.2009 DOCUMENTO DE TRABALHO sobre a protecção das minorias na União Europeia e na América Latina Co-Relatora: Laura Franco (Parlacen) DT\776547.doc Tradução externa AP100.519v01-00

Introdução A tendência do ser humano para formar grupos é um fenómeno observável praticamente desde os seus primórdios. Deste modo, ao longo da história, os homens uniram-se por diversas razões, tanto de ordem económica como religiosa, social ou política. Por seu turno, estas razões gera entre os homens um sentimento de solidariedade. O sentimento de união e de apoio gerado no interior de um mesmo grupo - os seus membros consideram-se iguais sob um determinado aspecto - é denominado identidade. Assim, podem encontrar-se diversos tipos de identidade: de género (entre mulheres ou entre homens), de classe (entre operários, etc.), de etnia (entre grupos que possuem uma cultura própria e distintiva), etc. A identidade nacional é a solidariedade comum que se estabelece entre os membros de um grupo que, apesar de pertencerem a diferentes classes sociais, colocam a lealdade ao grupo acima de qualquer outra lealdade intermédia. É nesse terreno comum de solidariedade que se desenvolve um tipo especial de identidade. A identidade nacional configura-se a partir de componentes étnicas comuns em algum grau ao grupo (língua, formas de organização, costumes, religião, etc.). Neste caso, a identidade tem como principal característica ser uma identidade de carácter político. A especificidade da identidade nacional reside no facto de remeter para as identidades, alianças e projectos entre várias classes e/ou colectividades com o objectivo de conformar um território próprio. Além disso, o movimento nacional também orienta a constituição do Estado. Uma vez mais, as componentes étnicas e o projecto político de constituir ou manter um território ou Estado próprios conferem a cada nação uma fisionomia particular que a distingue das outras nações do mundo e a que corresponde uma identidade especial. Como a identidade nacional decorre da nação, é necessário fazer algumas referências ao seu aparecimento no mundo contemporâneo. A nação: como surge a nação tal como a conhecemos hoje? Em alguns territórios europeus (por exemplo, Espanha, França, Inglaterra e Portugal), ocorreram dois factos estreitamente relacionados entre si: a ascensão do capitalismo comercial, na economia, e o fortalecimento do Estado. O crescimento económico deu lugar à formação de um mercado interno em cada território (com uma moeda única, com uma política económica específica, etc.). Graças a estes processos, estes territórios, organizados sob a forma de principados, reforçaram as suas solidariedades nacionais, entre si e com o príncipe, o que, em alguns casos, deu origem a lutas pela constituição de Estados autónomos, com base no território que ocupavam e nas actividades económicas que controlavam. Deste modo, uma das bases económicas da nação é o mercado nacional, a sua base política fundamental é o Estado e a sua base ideológica é o nacionalismo, alimentados por movimentos como o da Revolução Francesa de 1789, cujos princípios continuaram a inspirar os movimentos nacionais da época (um dos quais dominante até ao presente na ideologia nacionalista é o da vontade nacional, o direito dos povos à autodeterminação). Na América Latina, a formação desse mercado foi tardia, como resultado de um lento e difícil processo que conduziu à transformação das sociedades pré-capitalistas em sociedades capitalistas. Aqui, o capitalismo não se impôs como resultado de uma revolução. Nos finais do século passado, o mercado interno da América Latina era muito desigual e tinha um espaço nacional muito díspar. Todo esse processo foi determinado pela forma como o capitalismo mundial foi introduzido AP100.519v01-00 2/7 DT\776547.doc

na América Latina. A dependência existente aprofundou o carácter desigual do desenvolvimento latino-americano e dificultou a plena conformação das entidades nacionais. Assim, a criação do Estado nacional na América Latina enfrentou e enfrenta barreiras internas e externas. Já no século XVII era evidente que uma burguesia comercial poderia assumir politicamente a responsabilidade de um Estado e erguer toda uma população contra um poder estrangeiro. Contudo, este movimento nacional contra qualquer forma de opressão nacional e em prol da criação de Estados nacionais apenas se observou na fase inicial do capitalismo (1750-1840). Uma vez formados os mercados internos e generalizado o nacionalismo, surgiram as rivalidades entre as nações na repartição comercial e colonial do mundo (1870-1914). Por conseguinte, nação é um termo histórico da época do capitalismo ascendente, embora possa servir interesses distintos, consoante a classe ou o momento em que surge. Vemos também que a formação das nações ocorre a partir de solidariedades (de origem comum, por exemplo) e através de conflitos (uma guerra ou uma invasão). A identidade nacional é construída com materiais que integram estes dois grupos de elementos. A definição de nação como organização política dos habitantes de um determinado território é verdadeira, mas limitada; a nação é muito mais do que isso, abrangendo aspectos económicos, políticos e ideológicos, como o nacionalismo. A nação é um conceito versátil, como versátil é a identidade que dela nasce. Presentemente, as identidades nacionais redefinem as suas fronteiras. Na América, observam-se processos que são produto da internacionalização generalizada que se regista a nível mundial, nomeadamente no que respeita às implicações da ampliação dos mercados. Deste modo, a realidade da América Latina está marcada por profundas desigualdades, que têm vindo a resistir à modernidade e ao crescimento económico. É necessário avançar no sentido da compressão dos mecanismos que produzem e reproduzem essas desigualdades. A análise habitual incidiu na determinação do papel que cada factor ou processo histórico por si só etnia, género e classe social - desempenha na geração e na perpetuação das desigualdades, embora seja necessário um maior esforço analítico, que permita avaliar igualmente a forma como a interacção destes factores pode reforçar a desigualdade. Se não tiver em conta esta interacção, a análise da desigualdade está a separar artificialmente os elementos étnicos dos elementos de género, proporcionando uma visão incompleta. Reconhecendo que as pessoas pertencentes aos povos originários e os afro-descendentes vivem enquanto colectivo social uma situação de marginalidade e de exclusão, que se traduz numa maior taxa de pobreza, numa menor autonomia e num menor exercício da cidadania, a questão que se coloca é a de saber se os homens e as mulheres que pertencem a grupos excluídos se relacionam de forma diferente com o sistema de exclusões. A luta pelo reconhecimento da diferença, enfatizando a identidade de grupo construída em torno do género, etnia ou classe, converteu-se numa das principais expressões do conflito político actual. A dominação cultural, os padrões de interpretação e comunicação a que estão sujeitas as mulheres e a população indígena e afro-descendente, associados a uma cultura que lhes é estranha por ser androcêntrica e eurocêntrica, tende a deslocar a atenção da exploração enquanto mecanismo fundamental de injustiça e, por conseguinte, de mobilização política. Na prática, as lutas pelo reconhecimento decorrem num contexto de crescentes desigualdades redistributivas, tanto no interior de cada país como entre países. Por esse motivo, as políticas de redistribuição e reconhecimento devem conjugar-se numa política social de igualdade, articulando a justiça social, cultural e económica numa proposta que subverta todas as formas de subordinação. É necessário enfrentar o falso dilema que consiste em situar a justiça em DT\776547.doc 3/7 AP100.519v01-00

pólos excludentes, como uma questão exclusivamente de igualdade social ou de reconhecimento cultural, bem como a tendência para separar ou hierarquizar, por ordem de importância, a etnia, o género e a classe. Formas de compreender e articular a diferença étnica No mundo moderno, as sociedades tiveram de enfrentar o desafio e as contradições resultantes do seu carácter multiétnico, dada a sua aspiração de se constituir em sociedades tão alinhadas quanto possível pelo ideário de homogeneidade cultural e política construído a partir do paradigma da modernidade. Mais recentemente, o auge dos movimentos reivindicativos indígenas no continente, associado ao desenvolvimento conceptual estimulado pelo apogeu das visões pós-modernas e pelas dinâmicas de globalização, tem dado origem ao desenvolvimento de propostas orientadas para a reconfiguração dos Estados-nação no sentido de integrarem, de forma mais plural e equitativa, as exigências e os direitos dos diferentes grupos étnicos que os constituem. Actualmente, no contexto latino-americano, distinguem-se basicamente duas perspectivas com base nas quais se pretendeu conjugar e resolver esta dialéctica: o assimilacionismo (no caso guatemalteco conhecido como ladinização ) e o multiculturalismo (com a sua variante da interculturalidade). O assimilacionismo e a ladinização Na modernidade, a ideia de nação implica a ideia de uma comunidade imaginária em que todos os que a integram se sentem, ou devem sentir-se, parte de um mesmo conjunto social com uma história, uma cultura e uma língua comuns. Contudo, na prática, em quase todos os Estados, esta ideia serviu para impor a conjuntos que antes eram étnica e culturalmente diferentes características, uma história e uma identidade únicas. Deste modo, a dominação política de um grupo sobre outros implicou também a dominação cultural através da criação de uma língua oficial e de uma história pátria, entre outros símbolos, ficando os traços culturais dos restantes grupos confinados aos museus ou ao folclore. Esta situação era rematada com a ideia da igualdade perante a lei, que homogeniza o conjunto social ao não reconhecer que poderá haver pessoas que não partilham dos traços culturais assumidos como comuns a todo o conjunto nacional. Deste modo, Estado, nação e cultura surgem como uma unidade. Na América Latina, a diversidade étnica, cultural e de origens ficou associada, através da rígida estratificação da colónia, à desigualdade social e económica, característica que não desapareceu com a ideologia liberal da igualdade perante a lei que veio a prevalecer posteriormente. Passou, então, a regular-se implicitamente a participação política e o acesso aos recursos com base nas diferenças culturais falar ou não castelhano, vestir de uma ou de outra forma, a partir do que foi criada a cidadania e a sua negação. Dado que a nação é concebida como uniforme, há resistência a culturas diferentes da oficial: a língua é o castelhano, a religião, a católica e o direito, o romano. Daqui surgirá o discurso de assimilar os indígenas, de os integrar na nação através da sua castelhanização. Contudo, simultaneamente, a população indígena é considerada atrasada, sendo por isso segregada da nação e excluída das vantagens do progresso. Assim, apesar de a abordagem oficialmente adoptada ser a assimilacionista, na prática é uma abordagem segregacionista não assumida abertamente que rege o comportamento social. A tensão entre estas duas abordagens marcará o resultado da ideologia étnica de cada país. A Guatemala é um caso talvez mais extremo do que os seus países vizinhos: neste país, a nação nunca foi concebida como mestiça, AP100.519v01-00 4/7 DT\776547.doc

tendo-se antes dividido a população sob dois rótulos étnicos: o de indígena e o de ladino. O multiculturalismo Enquanto doutrina política, o multiculturalismo tem as suas origens nas transformações ideológicas que se registaram na década de 1960 nos Estados Unidos e no Canadá e que se difundiram nas décadas de 1970 e 1980 na Europa que procurava uma resposta política para a crescente diversidade étnica, cultural e de origens das sociedades pós-industriais. Esta atenção à cultura e à identidade colectivas não é fortuita: há décadas que se ouvia em todo o mundo a voz de grupos que reivindicavam o respeito pelos seus traços característicos, demonstrando que praticamente em todas as sociedades contemporâneas desenvolvidas ou não existem grupos culturalmente diferenciados. A ideia de homogeneidade subjacente às nações está a ser posta em causa tanto pelos factos a evidência da diversidade no interior das sociedades como pela pressão destes grupos até agora excluídos. Para esta mudança, contribuíram especialmente os movimentos migratórios, cada vez mais intensos, registados em todo o mundo e que colocaram num mesmo território pessoas com culturas distintas, bem como a adopção generalizada da democracia como regime político na América Latina, o que permitiu que as reivindicações latentes de equidade e de participação dos grupos subordinados da sociedade pudessem tornar-se explícitas. Por último, o fim da guerra fria reduziu as diferenças ideológicas e permitiu que as de carácter cultural assumissem maior importância. Acresce que a globalização lança sérios reptos aos Estados tal como foram concebidos na sua relação com a nação. Com efeito, a soberania dos Estados é desafiada pelos fluxos transnacionais de capitais e pela proliferação de organismos multinacionais e de tratados comerciais (como o NAFTA), entre outros. O multiculturalismo atinge a maturidade na década de 90, no século XX, e baseia-se no argumento de que a diversidade pode ser gerida no quadro de um liberalismo que, para além de reconhecer os direitos individuais, reconheça os direitos colectivos. A abordagem de cidadania multicultural de Will Kymlicka centra-se na análise das questões relacionadas com as minorias nacionais e os grupos étnicos que foram marginalizados dentro da sua própria sociedade nacional ou do seu grupo étnico. Surgem três tipos de cidadania diferenciada, que ajudam a proteger uma minoria do poder económico ou político da sociedade em que se insere: Os direitos especiais de representação em benefício de um grupo dentro das instituições políticas do conjunto da sociedade, que reduzem a probabilidade de uma minoria nacional ou étnica ser ignorada em decisões que afectam globalmente o país; Os direitos de autogoverno que conferem poderes a unidades políticas mais pequenas, de modo a que uma minoria nacional não possa ser subestimada ou sobrestimada pela maioria em decisões particularmente importantes para a sua cultura, como as relativas à educação, à emigração, ao desenvolvimento de recursos, à língua e ao direito da família; Os direitos poliétnicos, que protegem práticas religiosas e culturais específicas que poderiam não ser suficientemente apoiadas através do mercado (por exemplo, subvencionando programas que fomentam as línguas e as manifestações artísticas dos grupos), ou que são desfavorecidas (muitas vezes de forma não intencional) pela legislação em vigor (por exemplo, as derrogações à legislação relativa ao encerramento dominical ou tipos de indumentária que entram em conflito com convicções religiosas). DT\776547.doc 5/7 AP100.519v01-00

Ao aprofundar o conceito de direitos políticos, o princípio de igualdade perante a lei passa do individual ao colectivo, porquanto parte da constatação de que um sector da população não usufrui dos direitos universais, como, por exemplo, o de falar e de que lhe falem na sua língua. Em consequência, propõe o reconhecimento de direitos específicos a um grupo, pois esse grupo é diferente em alguns aspectos. No entanto, estas ideias básicas podem revestir diversas origens e, com efeito, provêem de duas tradições. Na sua formulação norte-americana, são dirigidas à população imigrante. Perante o fracasso da abordagem assimilacionista o melting pot é aceite a existência de outras culturas, que podem desenvolver-se em convivência pacífica ao abrigo de normas nacionais comuns. É promovida a participação política a partir das suas identidades diferenciadas, rotuladas. Na Europa, esta doutrina surge com o reconhecimento da existência de povos, nações que ocupam um espaço concreto, com histórias e identidades próprias que exigem reconhecimento político. A América Latina combina ambas as tradições. Alguns indígenas pretendem uma evolução para Estados multinacionais que lhes reconheçam uma série de direitos políticos associados ao seu carácter de nação oprimida. Mas, normalmente, estes Estados trabalharam na lógica das nações multiculturais que reconhecem ser compostas por diversos grupos que reclamam uma série de direitos culturais. Estas concepções pressupõem outras tantas resoluções para a equação que iguala Estado, nação e cultura, e têm implicações políticas distintas. Na América Latina, esta doutrina assumiu relevância quando a luta dos indígenas conduziu à formulação de uma série de exigências, reconhecidas pelas Nações Unidas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT: o reconhecimento de que vivem numa situação de colonialismo interno e a exigência do reconhecimento jurídico da sua existência, o direito de cultivarem os elementos culturais distintivos e o direito a um tipo de representação política que os tenha em conta. No seguimento destas reivindicações, nas décadas de 1980 e 1990 do século passado, os Estados latino-americanos alteraram as suas legislações e adoptaram políticas públicas que podem ser classificadas como "multiculturais. Esta doutrina propõe a correcção dos efeitos do liberalismo homogeneizador, reconhecendo aberta e legalmente a existência de grupos culturalmente diferenciados no interior dos Estados nacionais e erigindo-a na base para a concessão de direitos a usufruir colectivamente. Em consequência, a sua acção baseia-se na política de reconhecimento desses grupos e na execução de uma série de políticas que garantam aos cidadãos o exercício da diferença cultural e a sua participação política enquanto membros desses grupos. A proposta política do multiculturalismo não visa fazer desaparecer o que diferencia as pessoas o que constituiu o cerne da aposta liberal da igualdade, mas antes dotar de um novo conteúdo, agora positivo, o que existia anteriormente: o grupo e os seus elementos característicos. Deste modo, a diferença não é ocultada nem negada, mas sim reforçada. No caso da Guatemala, onde os indígenas constituem a maioria da população, isto traduz-se, por exemplo, numa mudança de atitude em relação a vários elementos culturais da identidade maia, que anteriormente eram associados a inferioridade ou atraso e que agora são vistos como sinais de legitimidade e de autenticidade: os dialectos passaram a línguas maias, a idolatria a espiritualidade maia, os bruxos a guias espirituais maias. Deste modo, o multiculturalismo abre caminho a que a cultura e a identidade se afirmem como eixos de direitos e deveres políticos. Por outro lado, o multiculturalismo defende o respeito e a tolerância face à diversidade cultural, sem abordar necessariamente a eliminação de atitudes racistas ou discriminatórias existentes na sociedade. Verifica-se também uma tendência para elaborar políticas concretas para comunidades específicas. Por exemplo, nos Estados Unidos, os filhos dos imigrantes têm de aprender a língua inglesa, mas as crianças norte-americanas AP100.519v01-00 6/7 DT\776547.doc

brancas não são obrigadas a estudar outras línguas faladas pelas crianças da sua turma. Por último, importa sublinhar que, no que respeita aos direitos das minorias étnicas, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, aprovada em 1989, constitui um instrumento jurídico internacional específico nesta matéria. A Convenção contém capítulos sobre diversas matérias, nomeadamente: terras, contratação e condições de emprego, formação profissional, artesanato e indústrias rurais, segurança social e saúde, educação e meios de educação, contactos e cooperação através das fronteiras. A Convenção é aplicável: a) aos povos tribais em países independentes cujas condições sociais, culturais e económicas os distingam de outros sectores da comunidade nacional e que estejam regidos, total ou parcialmente, por costumes ou tradições próprios ou por uma legislação especial; b) aos povos em países independentes que sejam considerados indígenas pelo facto de descenderem de populações que habitavam o país ou a região geográfica a que o país pertencia na época da conquista ou colonização ou do estabelecimento das actuais fronteiras estatais e que, independentemente da sua situação jurídica, conservem as suas próprias instituições sociais, económicas, culturais e políticas. E sugere que seja tido em conta o seguinte: l. A consciência da sua identidade indígena ou tribal deve ser considerada um critério fundamental para determinar os grupos a que se aplicam as disposições da presente Convenção; 2. A utilização do termo povos na presente Convenção não deverá ser interpretada como tendo quaisquer implicações no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional. Entretanto, o sexagésimo primeiro período de sessões (tema 68 do Programa do Conselho dos Direitos Humanos, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Assembleia Geral da ONU de 2007) aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direito dos Povos Indígenas, norteada pelos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e pela boa-fé no cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados em conformidade com a Carta. Na referida Declaração, afirma-se que os povos indígenas são iguais a todos os outros povos, ao mesmo tempo que se reconhece o direito de todos os povos a serem diferentes, a considerarem-se a si mesmos diferentes e a serem respeitados na sua diferença. Na referida Declaração afirmava-se igualmente que todos os povos contribuem para a diversidade e para a riqueza das civilizações e das culturas, que constituem o património comum da humanidade. Além disso, a Declaração reafirma que, no exercício dos seus direitos, os povos indígenas devem estar livres de qualquer forma de discriminação. Considera, ainda, que o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas fomentará relações harmoniosas e de cooperação entre os Estados e os povos indígenas, baseadas nos princípios da justiça, da democracia, do respeito dos direitos humanos, da não discriminação e da boa-fé, incentivando os Estados a cumprir cabalmente todas as suas obrigações para com os povos indígenas decorrentes de instrumentos internacionais, nomeadamente as relativas aos direitos humanos, em consulta e em cooperação com os povos interessados. DT\776547.doc 7/7 AP100.519v01-00