HERMENÊUTICA: O PROBLEMA DA COMPREENSÃO HERMENEUTICS: THE PROBLEM OF UNDERSTANDING

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Transcrição:

HERMENÊUTICA: O PROBLEMA DA COMPREENSÃO HERMENEUTICS: THE PROBLEM OF UNDERSTANDING Edimarcio Testa 1 Resumo: O problema central da hermenêutica é o da compreensão. Este artigo explicita os principais elementos constitutivos da noção de compreensão, através de uma descrição simplificada de sua estrutura, a partir das abordagens da hermenêutica tradicional e da hermenêutica de Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. Neste universo histórico, a noção de compreensão hermenêutica desdobra-se em três momentos, cuja especificidade se determina pelo predomínio de preocupações de natureza técnica, científica e filosófica. Embora cada preocupação tenha sua devida importância no âmbito da hermenêutica, elas se apresentam, historicamente, como momentos complementares e necessários para a compreensão do fenômeno hermenêutico, em sua totalidade. Palavras-chave: Hermenêutica. Hermenêutica filosófica. Compreensão. Interpretação. Abstract: The central problem of Hermeneutics is it of the understanding. This article explores the main constitutive elements about the notion of understanding, through a simplified description of its structure, using for that the approaches of traditional Hermeneutics and the Hermeneutics of Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer. In this historical universe, the Hermeneutic understanding has three different moments, whose specificity is determined by the predominance of technical, scientific and philosophical concerns. Although each concern has its importance in the context of Hermeneutics, they present themselves, historically, as complementary and necessary moments to comprehend the Hermeneutic phenomenon in its totality. Keywords: Hermeneutics. Philosophical Hermeneutics. Understanding. Interpretation. 1. Introdução No cerne da hermenêutica está o problema da compreensão. Isso é bem exposto por Emerich Coreth (1973, p.45) quando afirma: O problema da hermenêutica é o problema da compreensão. Entretanto, o que significa propriamente compreensão? Significa, segundo ele, apreensão de sentido. Na compreensão daquilo que se ouve ou se lê, na compreensão de enunciados ou instituições, está envolvido uma apreensão de sentido, seja ela um 1 Doutorando em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor de Filosofia no IFRS. Bolsista CNPQ. E-mail: edimarciotesta@yahoo.com.br

conteúdo, uma relação, uma estrutura ou um acontecimento de sentido. Assim sendo, sentido é algo que se manifesta à compreensão enquanto conteúdo. Contudo, para além de ser o conteúdo da compreensão, o sentido pode ser interrogado quanto ao próprio sentido qual é o sentido do sentido? Seja ele algo fixo, dado, original, passível de ser extraído, revelado, descoberto, no momento adequado, ou algo dinâmico, emergente, constituído, o sentido parece estar fundamentalmente envolto à questão da compreensão hermenêutica. Sob o ponto de vista histórico, o problema da compreensão emerge, primeiramente, no amplo contexto da hermenêutica tradicional, como sendo um problema de natureza técnica, na interpretação de textos religiosos, jurídicos e literários. Manifesta-se, em seguida, nas hermenêuticas de Schleiermacher e Dilthey, a partir de um caráter científico, voltado para a interpretação de todo tipo de texto e de toda e qualquer realidade históricocultural. Apresenta-se, também, mais recentemente, na hermenêutica de Heidegger e de Gadamer, como sendo um problema de natureza filosófica, orientado para a interpretação do mundo da vida (Lebenswelt). Por conseguinte, é com base neste triplo desdobramento histórico da temática, que se estrutura a presente investigação. O problema da compreensão diz respeito, antes e sobretudo, à nossa própria existência. Nela vivenciamos, em muitos momentos e circunstâncias, o fenômeno da incompreensão. Seja no sentido de não compreendermos um texto, uma obra de arte, um comportamento, a fala de alguém; seja no sentido de não nos explicarmos bem ou de não conseguirmos nos fazer entender. Não compreender e não ser compreendido designa, não só uma experiência irritante, mas uma experiência de caráter humano e social. Sendo o compreender uma atividade humana e social, [...] sentir-se incompreendido é o princípio de toda solidão, precisamente ali, onde alguém tem que desenvolver sua vida em companhia de outras pessoas (HERNÁNDEZ-PACHECO, 1995, p. 110). A experiência da incompreensão, especialmente de uma mensagem transmitida, além de pôr em jogo todo o âmbito da comunicação ou intersubjetividade, explicita que a compreensão deveria ocorrer imediatamente à audição ou leitura desta mensagem. Considerando que a leitura de um texto ou audição de uma mensagem não produz imediatamente uma compreensão, torna-se necessário realizar uma interpretação daquilo 2 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

que se transmite em toda comunicação. A compreensão não é, portanto, algo imediato, mas resultado daquilo que Gadamer denomina de esforço hermenêutico 2. 2. O problema técnico 3 É do esforço hermenêutico para se alcançar a compreensão adequada do sentido das mensagens divinas, que surge, na Antiguidade grega, a referência a Hermes, o mensageiro dos deuses. Embora não exista certeza filológica, mas somente probabilidade, a tradição atribui a ele a gênese da palavra hermenêutica. Hermes, ao levar anúncios, advertências e profecias aos humanos, exerce, após exercício de transformação e comunicação, uma atividade tipicamente prática. Será, então, este aspecto prático, contrapondo-se à teoria como contemplação de essências eternas, que marcará a origem e a trajetória histórica da hermenêutica, como evidencia Maurizio Ferraris (2000, p. 9): E é sobretudo a esta dimensão prática que a hermenêutica deve sua qualificação tradicional: hermeneutiké téchne, ars interpretationis, Kunst der Interpretation: arte da interpretação como transformação, e não como contemplação. Desse modo, são os problemas práticos, ligados à compreensão da linguagem, sobretudo a de natureza religiosa, que embasarão a consagrada denominação da hermenêutica como arte da interpretação. Neste contexto, a hermenêutica somente se torna imprescindível quando não mais compreende. Enquanto arte, ela se exerce por meio da interpretação. Toda interpretação, por sua vez, resulta do problema da falta de compreensão, da obscuridade de algo, tendo em vista a existência de um sentido, que não se revela de forma imediata. Quando se interpõe um véu (dificuldade) à compreensão de alguma coisa, faz-se necessário a interpretação. Recorre-se a ela, consequentemente, sempre que a clareza está ausente. O contrário, por seu turno, também é válido: [...] in claris non fit interpretatio (na clareza, não há 2 A interpretação se torna necessária onde o sentido de um texto não se deixa compreender imediatamente. Na medida em que não se contenta com as manifestações da vida, segundo o que tem em mente o sujeito, o psicólogo interpreta, retrocedendo e questionando o que ocorreu no inconsciente. E o historiador interpreta os dados da tradição para chegar ao verdadeiro sentido que, a um só tempo, se manifesta e se oculta neles. (2011, p. 441). 3 O termo técnico designa, aqui, um sentido prático. Ele é utilizado com o intuito de caracterizar essencialmente a tradição hermenêutica anterior a Schleiermacher, o qual eleva a hermenêutica de um patamar exclusivamente prático ao um patamar teórico-científico. 3 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

interpretação) (FERRARIS, 2000, p.10). Com isso, o trabalho prático da interpretação, via técnicas desenvolvidas para esta finalidade (ad hoc), objetiva sempre o alcance da compreensão. O processo de tornar algo compreensível está na raiz grega remota das atuais palavras hermenêutica e hermenêutico, principalmente porque este processo implica e se dá via linguagem. Daí os gregos conferirem a Hermes o descobrimento da linguagem e da escrita, pois são elas os instrumentos a partir dos quais é possível se alcançar o significado das coisas e, por conseguinte, transmiti-lo aos outros. Ademais, é considerável que a figura de Hermes esteja associada a uma função de transmutação, a saber: transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender (PALMER, 1986, p. 24). Tal processo de tornar compreensível está implícito, segundo Richard Palmer, nas três orientações significativas oriundas do uso antigo das palavras gregas hermeneuein e hermeneia. Sob uma forma verbal, elas significam dizer, explicar e traduzir. Os três significados podem ser traduzidos como interpretar ou interpretação. Neles, todavia, sempre [...] há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível (PALMER, 1986, p.25). Desse modo, desde a referência mitológica grega, a hermenêutica envolve a linguagem no processo de tornar explícito o implícito, de descobrir uma mensagem e torná-la compreensível. Dos diversos domínios em que se intenta a compreensão, mediante o exercício interpretativo, a hermenêutica tradicional desdobrou-se notadamente no âmbito dos textos que tem valor canônico para uma comunidade histórica, isto é, os escritos religiosos, jurídicos e literários. O texto canônico é o elemento de unidade da teologia, do direito e da literatura. A partir deste viés, a hermenêutica pode ser definida, segundo Andrea Oppo, como [...] o processo através do qual se realiza a compreensão de um texto canônico. (2017, p. 03). Sob a forma de um cânon, ela fornece as regras necessárias para uma correta interpretação do sentido desses textos normativos, evitando, da melhor forma possível, uma interpretação arbitrária. A tentativa de se interpretar textos de caráter religioso, jurídico e literário, marca uma longa trajetória da hermenêutica a partir da qual sua identidade é definida. Pautada por intenção de natureza prevalentemente normativa e técnica, a hermenêutica tradicional 4 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

exibe, até o final do século XIX, [...] a forma de uma doutrina que prometia apresentar as regras de uma interpretação competente (GRONDIN, 1999, p. 22). Além disso, ela se configura como uma disciplina auxiliar nos âmbitos da teologia, direito e literatura, desfrutando, como resultado, de uma existência externa amplamente invisível. Por fim, a hermenêutica se caracteriza, do ponto de vista de seu objeto, por ser específica, no sentido de restringir-se aos âmbitos supramencionados. Contudo, a hermenêutica encontrase intimamente vinculada ao problema mais abrangente da compreensão, que se dá, de modo geral, no âmbito das ciências humanas e no âmbito histórico. 3. O problema científico Caberá a Friedrich Schleiermacher o mérito de transcender especificidade, com sua pretensão de construir uma hermenêutica geral (allgemeine Hermeneutik), cujos princípios possam servir de base a todos os tipos de interpretação de textos, como afirma Celso Braida (2003, p. 14): Não obstante ser já uma arte bem antiga, a hermenêutica ainda não tinha recebido um tratamento sistemático que a constituísse em ciência. Pois o que ele encontra na tradição hermenêutica é um amontoado de regras voltadas para objetos particulares, oriundas mais da prática do que de princípios, dispostas mais em função de objetos específicos (religioso, jurídico, filológico, etc.) do que pelo conceito de compreensão. Em sua obra Hermenêutica, Schleirmacher (2003, p.67) pergunta: Não têm os textos sagrados, em virtude de sua natureza particular, também uma hermenêutica particular? Com certeza. Mas o particular é compreendido apenas através do universal. Do contrário, ele é sempre apenas agregado. Disso surge, consequentemente, a [...] necessidade de uma hermenêutica geral. (SCHLEIERMACHER, 2003, p.67). Ademais, Schleiermacher não mais pergunta como se interpreta este ou aquele tipo de texto, passando a perguntar pelo o que significa em geral interpretar e compreender e como isto ocorre (BRAIDA, 2003, p. 15). Ao deslocar o foco dos textos para a compreensão em si mesma, ele a concebe, num sentido amplo, como um processo através do qual desenvolve-se um esforço em direção a um saber com valor universal. Com Schleirmacher, a hermenêutica não mais se efetua sobre passagens textuais isoladas, consideradas obscuras. Ela se configura, agora, como um processo direcionado 5 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

para a compreensão do texto em sua totalidade (FERRARIS, 2000, p. 126). Desta forma, uma mudança de status ocorre. O propósito da hermenêutica, até aquele momento, era a atividade pedagógica da subtilitas explicandi, isto é, a capacidade de explicar o texto para um público leigo. Schleiermacher recorre, agora, a subtilitas intelligendi, ou seja, a capacidade do intérprete de compreender, sobretudo para si mesmo, o conjunto do texto, relacionando-o geneticamente com a motivação psicológica que animou o autor a ser interpretado. Por considerar relevante os aspectos psíquicos e vitais do autor, no ato da interpretação, Schleiermacher é responsável por situar, pela primeira vez na história da hermenêutica, o problema do conceito da compreensão em um contexto filosófico, atribuindo a este um sentido psicológico. Com Schleirmacher, o conceito de hermenêutica se alarga. Ao deslocar o esforço hermenêutico, da explicação de passagens obscuras isoladas para a compreensão global de um texto, ele retira a hermenêutica de sua condição de técnica subsidiária, conduzindo-a em direção a uma universalidade. A hermenêutica, ao considerar o compreender como uma atividade de penetração do discurso na psicologia do autor, volta-se, agora, para a compreensão de todo tipo de discurso, seja ele antigo ou moderno, escrito ou oral. O voltarse da compreensão para a totalidade das categorias do discurso, constitui a primeira base para a universalização da hermenêutica. Surge, então, a hermenêutica como ciência genérica da interpretação que, enquanto teoria, procura fornecer orientações técnicas para a compreensão em geral. Este caráter de generalidade hermenêutica manifesta-se nas próprias palavras de Schleiermacher (2003, p. 64): [ ] antes que a hermenêutica alcance a forma que lhe cabe como doutrina e que, partindo do simples fato da compreensão, as suas regras sejam desenvolvidas em um conjunto coeso, a partir da natureza da linguagem e das condições fundamentais da relação entre o falante e o ouvinte. Outra base de universalidade da hermenêutica é a dimensão do mal-entendido. Para Schleirmacher (2003, p.26), o ponto de partida da interpretação é a incompreensão, a estranheza, a obscuridade do texto e do interlocutor. Isso se evidencia em suas próprias palavras: [ ] a interpretação, desde que subsumo esta expressão toda compreensão de discurso estranho. Tal ponto primordial, de natureza linguística, evidencia que o apelo a 6 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

hermenêutica faz-se necessário quando se apresenta algum obstáculo comunicativo, linguístico, seja ele oral ou escrito. Para Schleiermacher, sempre há esta estranheza inicial, que separa o intérprete e o interpretado. Partindo desta estranheza, desta incompreensão primordial, a interpretação deve estabelecer a compreensão. Nesta perspectiva, a incompreensão não deve ser evitada. Antes, ela deve ser considerada e superada. Além disso, a compreensão, ao se apresentar como resultado da interpretação, que supera uma incompreensão constitutiva, jamais chegará a um esclarecimento final, total, absoluto. Assim, interpretar significa a tentativa de se aproximar de uma totalidade de sentido que nunca será plenamente alcançada. A hermenêutica geral de Schleiermacher se bifurca em duas partes: a gramatical e a psicológica. A gramatical representa o aspecto objetivo de todo ato interpretativo. Conforme Schleiermacher (2003, p. 70), a interpretação gramatical é [...] a arte de encontrar o sentido determinado, pela linguagem e com o auxílio da linguagem, de um determinado discurso. Ela considera, ainda, a linguagem a partir da totalidade de seu uso linguístico, expressando uma estrutura circular formal, isto é, o círculo hermenêutico. Nele ocorre a necessidade de se atribuir o sentido do particular, dentro de sua integração como o todo e, simultaneamente, a necessidade de se encontrar o sentido do todo, a partir da composição dos elementos particulares. A parte psicológica, por seu turno, concebe a linguagem como a expressão de uma interioridade, representando o elemento subjetivo da interpretação. Schleiermacher (2003, p. 93) se refere a ela nos seguintes termos: Compreensão como exposição do pensamento. Composição pelo homem. Portanto, também a partir do homem. Desse modo, a compreensão de um texto exige que se aplique a arte da interpretação, isto é, o colocar-se na posição do autor, tanto do lado objetivo quanto do subjetivo. Ora, o lado objetivo é obtido através do conhecimento da língua tal como o autor a possuiu, e, subjetivamente, trata-se de se obter o conhecimento de sua vida interior e exterior. (ROHDEN, 2003, p.121). Desse modo, o intérprete deve colocar-se no lugar do autor para compreender o autor melhor do que ele compreendeu a si mesmo, pois o autor nunca consegue expressar, através da linguagem, o sentido total que pretende expor. Wilhelm Dilthey retoma a questão da compreensão tematizando-a no conjunto da problemática das ciências humanas (Geisteswissenschaften). Estas, por sua vez, se diferem 7 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

das ciências da natureza (Naturwissenschaften), como mostra Dilthey (2011, p. 29), a partir de um viés metodológico, em sua obra Introdução às ciências do espírito (1883), ao afirmar: Nós explicamos a natureza, enquanto compreendemos a vida psíquica. Tal distinção se fundamenta, além do aspecto metodológico, também sobre o objeto do conhecimento de cada área do saber. Com isso, as ciências da natureza estudam, por meio da observação, fenômenos externos ao ser humano. Tal observação, no que lhe concerne, encontra-se separada das propriedades específicas do fenômeno. Ademais, para o estudo dos fenômenos, as ciências da natureza se utilizam de explicações causais, que não os alteram substancialmente. Já as ciências humanas, investigam, via compreensão, fenômenos dos quais o ser humano faz parte, oriundos de sua própria vivência (Erlebnis). Neste contexto, o ato do conhecimento não é distinto do objeto conhecido. Assim sendo, a compreensão envolve e transforma o objeto investigado. Considerando a peculiaridade de que, no âmbito das ciências humanas, não há uma distinção entre sujeito e objeto, Dilthey encontra na hermenêutica, após incursão malograda na psicologia, a possibilidade de uma fundamentação. Neste feito, a noção de vivência se torna essencial, pois, conforme Dilthey (2010, p. 209): [...] a única realidade que podemos perceber imediatamente, e menos ainda de que toda a realidade só seria dada em nossa vivência. Qualquer um tem condições de saber, de forma imediata e por meio da própria vivência, que está inserido numa trajetória vital. Tal trajetória produz, nele, duas manifestações de mundo: uma, interior; e outra, exterior. As manifestações exteriores são, até certo ponto, objetivas, reflexos do espírito da cultura e da sociedade. Por conseguinte, viver significa propriamente realizar uma mediação entre o mundo interior e o espírito objetivado do mundo exterior. O modo adequado, para isso, é a interpretação: Viver é interpretar o próprio mundo interior e suas objetivações codificadas, ou seja, dar sentido às expressões do espírito (FERRARIS, 2000, p. 154). Enquanto fundamento das ciências humanas, a hermenêutica almeja, na perspectiva de Dilthey, apresentar métodos para o alcance de uma interpretação objetivamente válida das expressões da vida interior. Esta centralidade da interpretação da vida interior é claramente exposta, por Dilthey (1984, p. 150), em sua definição da compreensão: Chamamos compreensão (Verstehen) ao processo pelo qual, com a ajuda de signos percebidos do exterior através dos sentidos, conhecemos uma interioridade. Para isso, a 8 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

vivência que o ser humano realiza, do modo concreto e histórico, dever ser o ponto de partida e o ponto de chegada das ciências humanas. Nesse sentido, as ciências humanas constituem, conforme Dilthey (2010, p. 19), um reino próprio de experiências que possui o seu material e a sua origem autônoma na vivência interna, e que, por conseguinte, é naturalmente o objeto de uma ciência empírica particular. Para ele, as ciências humanas não devem compreender a vida a partir de categorias exteriores a ela, mas a partir de categorias intrínsecas a própria vida. Compreendida mediante experiência dela mesma, a vida se manifesta como sentido e realidade histórica. Por isso, a compreensão se caracteriza, nesta ótica, como um comportamento cognitivo voltado à apreensão das formas e das estruturas de sentido histórico. Dilthey (1984, p. 165), em sua hermenêutica, estende o objeto da compreensão, do texto em geral, para a realidade histórica. Para ele, além de possuir uma utilidade prática, [...] a hermenêutica desempenha um segundo papel que é o papel essencial: estabelecer, teoricamente, [...] a validade universal da interpretação, base de toda a certeza histórica. Com isso, ele vincula e incorpora, à problemática da interpretação, o conhecimento e a compreensão daquilo que é histórico. O texto que deve ser interpretado, agora, é a realidade sócio-histórica, definida como [...] o grande documento do ser humano e a experiência fundamental da vida (MARDONES, 2006, p. 467). Assim sendo, a hermenêutica torna-se uma esfera cuja amplitude se assemelha à vida mesma e à história universal. Cabe acrescentar, ainda, que a própria compreensão, para além de ser somente um procedimento típico das ciências humanas, constitui-se como um traço fundamental da existência histórica do ser humano. A compreensão do mundo da história ocorre, por sua vez, de forma circular. Aqui, Dilthey apela para a noção já existente de círculo hermenêutico, onde a compreensão do particular se dá a partir do todo, e, a compreensão do todo, ocorre a partir do particular. Ao abordar a temática da circularidade da compreensão, Dilthey transfere ao mundo histórico um conhecido princípio de interpretação: a ideia de que é preciso compreender um texto a partir dele mesmo. Nesse sentido, compreender um texto a partir dele mesmo significa compreendê-lo objetivamente. Dado que ele se constitui como uma manifestação individual de um contexto mais amplo, o intérprete deve se deslocar até esse contexto e, nele, 9 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

compreender o texto via relação parte e todo. Todavia, cabe mencionar que toda compreensão e interpretação, tanto no sentido teológico, jurídico e literário, como no sentido histórico ou das ciências humanas, reportam-se fundamentalmente a pressupostos, cuja pesquisa e esclarecimento é de incumbência da filosofia. 4. O problema filosófico Foi com Martin Heidegger, contudo, que o conceito de compreensão adquiriu um sentido mais original, antecedendo a dualidade de explicar e compreender, própria de uma preocupação epistemológica que determinou o foco principal do debate historicista, desde a segunda metade do século XIX. Situando-se para além das questões epistemológicas, Heidegger concentra sua atenção na condição do ser que interpreta, realizando, assim, um giro ontológico no seio da hermenêutica. Neste sentido, ele faz da compreensão um existencial na constituição ontológica da existência humana: Interpretando o compreender como um existencial fundamental, mostra-se que esse fenômeno é concebido como modo fundamental de ser da presença. No sentido, porém, de um modo possível de conhecimento entre outros, que se distingue, por exemplo, do esclarecer, o compreender deve ser interpretado juntamente com aquele, como um derivado existencial do compreender primordial, que também constitui o ser do pre da presença. (HEIDEGGER, 2012, p. 202). Ao inserir a compreensão entre as estruturas constitutivas do Dasein, Heidegger imprime a ela um papel central em sua analítica da existência humana. Esta centralidade é destacada por Gadamer (2011, p. 16), ao afirmar que a compreensão, em Heidegger, [...] não é um dentre outros modos de comportamento do sujeito, mas o modo de ser da própria pré-sença (Dasein). De acordo com a analítica existencial heideggeriana, o Dasein encontra-se sempre situado em algum lugar no mundo. Esta condição de situado, o torna um ser-no-mundo, num sentido sobretudo histórico. Mais do que isso, o Dasein é um ser que existe, no mundo, com-os-outros. Tal condição o lança para a compreensão (Verstehen). Compreensão que, sob a ótica de um saber prático, é [...] a condição de possibilidade da experiência do mundo. É a capacidade de ser alguém, de fazer algo e de lidar com os entes em geral (SILVA, 2000, p. 09). Esta posição hermenêutica de Heidegger não procura 10 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

indicar preceitos para aplicar na obra interpretativa concreta; o seu mérito repousa, antes, no fato de [...] ter examinado mais a fundo as estruturas e as características essenciais do fenômeno do compreender, problematizando, não este ou aquele aspecto, mas a sua possibilidade mesma (BIANCO, 1974, p. 75). É condição de possibilidade de toda compreensão, a existência de uma précompreensão. Tal pré-estrutura ou estrutura prévia da compreensão enraíza-se no contexto do mundo, especialmente no mundo da vida. Desse modo, [...] a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite da validade de cada tentativa de interpretação (GRONDIN, 1999, p. 159). Além disso, a compreensão está determinada, permanentemente, pelo movimento antecipatório da pré-compreensão. Movimento, este, que caracteriza uma estrutura circular da compreensão, isto é, que caracteriza o processo do círculo hermenêutico. Não no sentido de uma circularidade viciosa, mas no sentido de uma circularidade virtuosa. Com sua hermenêutica existencial, Heidegger realiza um giro teleológico na relação conceitual entre compreensão e interpretação. Segundo Jean Grondin (1999, p.164), a interpretação, na hermenêutica tradicional, funcionava como meio para a compreensão: Quem não entendesse a passagem de um texto, tinha de recorrer a uma interpretação, cujo Telos natural era o de produzir compreensão. Assim, primeiramente ocorria a interpretação, para depois, e a partir dela, ocorrer a compreensão. Com Heidegger, [...] o primado será agora a compreensão, e a interpretação vai consistir exclusivamente na configuração ou elaboração da compreensão (GRONDIN, 1999, p. 164). Esta ideia é assim explicitada, por Heidegger (2012, p. 215), em Ser e Tempo: Toda interpretação funda-se no compreender. O sentido é o 0que se articula como tal na interpretação e que, no compreender, já se prelineou como possibilidade de articulação. Na perspectiva heideggeriana, a primazia da compreensão e da interpretação não repousa mais nos textos, nem na realidade histórica, mas sim, no mundo da vida, na própria existência humana. É [...] do (e para o) Lebenswelt, que esta hermenêutica, de cunho filosófico, se alimenta (ROHDEN, 2008, p. 51). É a realidade do mundo da vida, agora, que precisa ser interpretada. Não na esteira de se chegar à sua essência, mas na direção de apenas se interpretar o seu sentido. Tal postura caracteriza a hermenêutica como um modo 11 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

próprio de se fazer filosofia. Assim, filosofar significa interpretar, interpretar a realidade da vida, em seus mais diversos níveis e aspectos, mas não com o propósito de fazer o seu inventário, e sim, antes, atribuir um sentido (JUNGES; ADAMS, 2013, p. 43). Tem-se, neste caso, uma filosofia hermenêutica. Hans-Georg Gadamer recolhe as indicações de Schleiermacher, Dilthey e Heidegger, elaborando-as numa teoria filosófica da compreensão. Sua postura filosófica se evidencia, em Verdade e Método. Nela, Gadamer deixa claro que não pretende estabelecer uma preceptiva ou uma metodologia da compreensão e, sim, dar conta do que realmente acontece quando se compreende e se interpreta: Minha verdadeira intenção, porém, foi e continua sendo uma intenção filosófica: O que está em questão não é o que fazemos, o que deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer (GADAMER, 2011, p. 14). Diante disso, a consciência científica deve reconhecer os seus próprios limites e aceitar que é justamente fora de seus domínios que se encontram as formas primeiras de experiências da verdade ou do sentido. A esta experiência originária da verdade, que transcende a dimensão do método, Gadamer refere-se com o termo compreensão. Nesse sentido, ele afirma que sua investigação coloca uma questão filosófica. Ao perguntar, kantianamente, [...] como é possível a compreensão?, Gadamer (2011, p.16) indaga pelas condições de possibilidade do compreender e do interpretar, elevando, assim, a hermenêutica à condição de teoria filosófica. Cabe mencionar que tal questão não é posta tão somente às denominadas ciências humanas; nem é posta à ciência em geral e suas formas de experiência. O que ela realmente interpela, de acordo com Gadamer (2011, p.16), é [ ] o todo da experiência humana do mundo e da práxis da vida. Neste ponto, Gadamer se vincula de modo explícito à Heidegger e à sua definição de hermenêutica. Ela designa, conforme Gadamer (2011, p.16), [ ] a mobilidade fundamental da pré-sença, a qual perfaz sua finitude e historicidade, abrangendo assim o todo de sua experiência de mundo. Ao ampliar o objeto da compreensão para a totalidade da experiência de mundo, Gadamer anuncia e determina o caráter universal da hermenêutica. Tal universalidade, Gadamer (2011, p.16) assim a explicita: O fato de o movimento da compreensão ser abrangente e universal não é arbitrariedade nem extrapolação construtiva de um aspecto unilateral; reside na natureza da própria coisa. 12 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

A primeira condição de possibilidade da concepção gadameriana de compreensão é a historicidade (Geschichtlichkeit). Gadamer (2011, p. 354), contrapondo-se a Heidegger, a evidencia do seguinte modo: Heidegger só se interessa pela problemática da hermenêutica histórica e da crítica histórica com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a estrutura prévia da compreensão. Nós, ao contrário, uma vez tendo liberado a ciência das inibições ontológicas do conceito de objetividade, buscamos compreender como a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. Elevada, por Gadamer, à categoria de princípio hermenêutico, a historicidade evidencia que toda compreensão se mostra essencialmente determinada por pré-juízos, por pertencer e participar de uma tradição. Este reconhecimento do sentido da tradição, no processo compreensivo, representa um levante contra a posição de rompimento com a tradição, sustentada pelo Iluminismo e pelo Romantismo. Nessa situação, Gadamer afirma, por meio da noção de história-efeitual (Wirkungsgeschichte), que a tradição produz repercussões sobre a razão humana, uma vez que ela se constitui como uma realidade mediada continuamente. Disso resulta que toda razão está inevitavelmente vinculada à história, não tendo plenos poderes sobre si mesmo. Ademais, o intérprete, pelo fato de participar de uma tradição, sempre porta consigo uma compreensão prévia da realidade que pretende compreender e interpretar. Tal compreensão prévia é posta em jogo no processo do círculo hermenêutico. Outra condição de possibilidade da compreensão é a linguisticidade (Sprachlichkeit). Para Gadamer (2011, p. 512), [...] não é só o objeto preferencial da compreensão, a tradição, que possui a natureza da linguagem. A própria compreensão possui uma relação fundamental com o caráter da linguagem. Tal caráter linguístico constitui a natureza de tudo aquilo que pode ser compreendido. A linguisticidade é, então, o cerne da hermenêutica gadameriana. A experiência humana de mundo, que exige compreensão, é essencialmente linguística, diz Gadamer. O próprio mundo se manifesta, como tal, por meio da linguagem. Pautado pelo caráter linguístico do mundo e, principalmente, da experiência humana, Gadamer mostra que [...] nossa pertença a uma tradição, nossa interpretação de acontecimentos, objetos de arte, passa pela linguagem. (MARDONES, 2006, p. 468). Pela linguagem passa, também, a experiência do significado. 13 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

Para a hermenêutica filosófica, a experiência do significado é linguística, tomando forma na linguagem da fala (speech), isto é, na linguagem vivida. Neste sentido, a compreensão hermenêutica é, segundo James Risser (1997, p.14), [...] um evento comunicativo que se estrutura por meio da dinâmica do diálogo. Concebido sob a perspectiva ontológica, o diálogo hermenêutico se constitui no espaço onde a linguagem ganha existência, se vivifica, e a compreensão acontece, em seu modo mais autêntico. Além de ser condicionada pela história e pela linguagem, a compreensão hermenêutica apresenta-se como sendo, simultaneamente, teórica e prática, pois aquilo que Gadamer denomina compreensão inclui, em si e ao mesmo tempo, o compreender, o interpretar e o aplicar. Num sentido prático, [...] compreender é sempre também aplicar. (GADAMER, 2011, p. 408). Portanto, a aplicação constitui o momento concreto de toda compreensão. Neste ponto, Gadamer remonta a Aristóteles, referindo-se ao conceito de phrónesis, exposto na Ética a Nicômaco. Adaptando este conceito ao âmbito da hermenêutica, Gadamer o atualiza como um paradigma para o ato de compreensão. Assim sendo, a atividade compreensiva, para acontecer, requer um saber do tipo ético (phrónesis), dado que uma compreensão adequada de algo, sempre ocorre em uma situação concreta de um modo novo e distinto. A phrónesis, por não ser algo dado de antemão, é este saber que se reelabora diante de cada nova situação. Desse modo, a compreensão hermenêutica, além de incluir sempre uma aplicação (Anwendung) à situação presente, constitui-se, também, como uma possibilidade ética a ser explorada. Pois, nas palavras de Dennis Schmidt (2012, p. 4), [...] a compreensão não é, em primeira instância, uma questão cognitiva, mas se verifica na mudança que ela produz em quem compreende. No final, [ ] o caráter dessa mudança precisa ser entendido eticamente. Em suma, seja numa direção ética ou em outra direção acima mencionada, tudo o que foi exposto, aqui, resforça ainda mais a tarefa desafiadora que é apresentar, de modo adequado, a tradição hermenêutica a partir do problema da compreensão. 5. Considerações finais Pretendeu-se, neste trabalho, evidenciar, de forma geral e muito sucinta, três concepções de compreensão, consideradas essenciais no âmbito hermenêutico. Para 14 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

satisfazer esta pretensão, optou-se por uma descrição dos principais aspectos constituintes da estrutura compreensiva. Disso resulta que a noção de compreensão se define, historicamente, pela natureza de suas preocupações hermenêuticas. Tais preocupações apresentam-se sob a forma de problemas predominantes. Tem-se, então, um problema de natureza técnica, na hermenêutica tradicional; um problema de natureza científica, na hermenêutica moderna de Schleirmacher e Dilthey; e um problema de natureza filosófica, na hermenêutica contemporânea de Heidegger e Gadamer. Tais problemas, além de se apresentarem sob o caráter da complementaridade, evidenciam traços de uma identidade hermenêutica. Transcendendo os limites desta investigação, faz-se notar, todavia, que o problema da compreensão é, hoje, objeto de permanente investigação, principalmente na ótica filosófica, com destaque para a hermenêutica de Gadamer e sua repercussão no domínio da ética. Referências BIANCO, F. Esperienza ermeneutica e storiografia filosofica. Padova: Archivio di Filosofia, 1974. BRAIDA, C. R. Prefácio. In: SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Trad. Celso Reni Braida. 4. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. Trad. de Carlos Lopes de Matos. São Paulo: E.P.U., 1973. DILTHEY, W. Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.. As origens da hermenêutica. In: MAGALHÃES, Rui (org.). Textos de hermenêutica. Porto: RÉS -EDITORA, 1984. FERRARIS, M. Historia de la hermenéutica. Trad. de Jorge Pérez de Tudela. Madrid: Ediciones Akal, 2000. GADAMER, H-G. Verdade e método I. Trad. Flávio Paulo Meurer; revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011. GRONDIN, J. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. de Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. HERNÁNDEZ-PACHECO, J. Los límites de la razón: estudios de filosofía alemana contemporânea. Madrid: Editorial Tecnos, 1995. Disponível em: < http://personal.us.es/jpacheco/textos-pdf/los-limites-de-la-razon.pdf >. Acesso em: 12 ago. 2018. 15 Kínesis, Vol. XI, n 27 (Ed. Especial), abril 2019, p.1-16

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