As ocupações irregulares em áreas de Preservação Permanente: O Estatuto da Cidade e a tutela ambiental



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Transcrição:

As ocupações irregulares em áreas de Preservação Permanente: O Estatuto da Cidade e a tutela ambiental Isabel Christine De Gregori 1 Universidade Federal de Santa Maria isa@via-rs.net Palavras-chave: Estatuto da Cidade regularização urbanística - conflitos Introdução O presente estudo está em fase inicial e tem por escopo analisar a temática da regularização fundiária, considerando a forma como está contemplada no Estatuto da Cidade, a qual sugere a possibilidade de conflito com as normas que tutelam o meio ambiente. Para tanto, cabe avaliar como vem sendo enfrentada a questão dos assentamentos urbanos em áreas de preservação permanente pelos municípios, tendo em vista que ainda não há uma cultura sobre o significado destas áreas, e, na maioria das vezes o tema recebe tratamento discricionário nas mãos do poder público. Também se faz mister investigar em que medida o fortalecimento da estrutura administrativa e a inserção das práticas de gestão compartida entre os diferentes níveis de governo, que privilegiem efetivamente os pareceres técnicos sobre o Impacto Ambiental causado pelas ocupações irregulares e suas conseqüências sobre o meio ambiente nas áreas de preservação permanente, podem se constituir na via mais adequada à resolução do impasse. 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC Santa Cruz do Sul, RS.

A constituição Federal de 1988 e o desenvolvimento urbano A Constituição brasileira de 1988, tem em seu título primeiro, elencados os princípios fundamentais que pautam a organização do Estado e da sociedade brasileira, deduzindo como fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, cujos objetivos estão voltados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de um desenvolvimento nacional com vistas a redução da pobreza e das desigualdades sociais e regionais. Segundo BONAVIDES(1996) estes princípios se apresentam como efetivos valores que expressam a vontade da comunidade política local e se tornam fonte primária do ordenamento e, portanto, aos princípios constitucionais devem estar vinculados todos os atos do Estado, no exercício de suas funções legislativas, judiciárias protetivas e instituidoras de políticas públicas. Sob esta ótica, e para que os princípios insculpidos no texto constitucional sejam atingidos, o Estado Contemporâneo tem se caracterizado como um implementador de políticas públicas, entendidas como modalidades de intervenção do Estado na ordem econômica, social, e política nacional. Como a Carta Constitucional de 1988 alargou a abrangência dos direitos e garantias fundamentais instituindo a edificação de um Estado Democrático de Direito, o Estado passa a assumir a responsabilidade pela efetivação e proteção da função social dos direitos fundamentais, em particular, da propriedade urbana e da cidade, funcionando como um estatuto de organização da vida econômica e social ( LEAL,1998). A inovação do texto constitucional em contemplar de forma inédita um capítulo específico sobre política urbana (capítulo II, título VII), trouxe a lume a figura dos municípios bastante fortalecida, alcançando-lhes uma posição única entre os países em desenvolvimento. Este fortalecimento se expressa através das prerrogativas do município não somente quanto à formulação e controle das políticas públicas locais, mas conferindo poderes para que o ente municipal conduza a política de desenvolvimento urbano.

Entretanto, as dificuldades enfrentadas pelos governos municipais de controlar e orientar o desenvolvimento e a expansão das cidades indicava a necessidade da regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, por intermédio de legislação ordinária, de âmbito federal, a fim de estabelecer e fixar as diretrizes gerais para que os municípios pudessem implementar a sua política urbana. Desta forma, como resultado das lutas pela reforma urbana e da consciência sobre a importância de uma legislação federal disciplinadora dos principais institutos jurídicos e políticos, que permitisse às administrações municipais atender aos preceitos constitucionais, foi editada a regulação federal para a política urbana. O Estatuto da Cidade O projeto de lei 5788/90 conhecido como Estatuto da cidade, esteve em discussão desde o início da década de 90, foi o marco referencial para a instituição da Lei Federal 10.257/01, que regulamenta o capítulo da política urbana da Constituição Brasileira, estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo e do equilíbrio ambiental. No dizer de ROLNIK ( 2001), é a primeira vez na história do país que surge uma regulação federal para a política urbana, definindo uma concepção de intervenção no território, a partir de um elenco de princípios e uma série de instrumentos urbanísticos, jurídicos e tributários que auxiliam o poder público municipal, constituindo-se em uma espécie de ferramenta para a prática da política urbana local. A nova lei tem quatro dimensões fundamentais, quais sejam: consolida a noção de função social e ambiental da propriedade e da cidade como marco conceitual jurídico-político para o Direito Urbanístico; regulamenta e cria novos instrumentos urbanísticos para a construção de uma ordem urbana socialmente justa e inclusiva pelos municípios; aponta processos político-jurídicos para a

gestão democrática das cidades, e propõe instrumentos jurídicos para a regularização fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas. O Estatuto da Cidade reafirma os princípios básicos estabelecidos na Constituição Federal, preservando o caráter municipalista, a centralidade do Plano Diretor como instrumento básico da política urbana, delegando ao Plano Diretor a incumbência de ser o principal instrumento para os municípios promoverem uma política urbana que tenha por objetivo o respeito aos princípios da função social da cidade e da propriedade urbana. A grande relevância da lei federal reside na sua proposta de política urbana voltada a ordenar e controlar o uso do solo de forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas, a poluição e a degradação ambiental, através da criação de um sistema de princípios e diretrizes a serem observados e instrumentos a serem utilizados no planejamento das cidades. Este propósito está explícito no parágrafo único do artigo 1º, no qual refere que suas disposições constituem "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, a segurança, do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental". O teor do artigo 2º da Lei também reafirma esta intenção contemplando em seus incisos diretrizes que estão centradas na cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, o fornecimento de equipamentos urbanos e comunitários, a ordenação do uso do solo de forma a evitar abusos, proteção e recuperação do meio ambiente natural e artificial, do patrimônio histórico, cultural e artístico, a integração entre atividades urbanas e rurais, justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização, regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa. Dentro do extenso rol que aborda os aspectos a serem observados pelo poder público no estabelecimento da política urbana a análise dos dispositivos legais denota a ênfase na questão ambiental, devendo as atuações urbanísticas atentarem para a preservação do meio ambiente, protegendo-o contra uma ocupação desordenada, em prol de uma melhora da qualidade de vida.

A idéia de pensar na sustentabilidade do desenvolvimento urbano é resultante de uma trajetória, que vem expressa, dentre outros fatores, pela condição do país de signatário da Declaração do Rio sobre o Meio ambiente e Desenvolvimento de 1992 ( Agenda 21) e da Declaração e Programa de Ação de Viena sobre Direitos Humanos (1993), que conduz à observância do princípio do desenvolvimento sustentável 2 no estabelecimento das diretrizes e na promoção de suas políticas de desenvolvimento urbano. Em relação à cidade, o princípio do desenvolvimento sustentável tem sido incorporado, em diferentes níveis e formas, nos esforços de planejamento e gestão devendo estar voltado a eliminar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais que afeta a maioria da população. Decorre daí que a política de desenvolvimento urbano que não tiver como prioridade atender as necessidades essenciais, de efetivação dos direitos de modo à garantir uma qualidade de vida da população, estará em pleno conflito com as normas constitucionais norteadoras da política ambiental-urbana. Na lição de SAULE JÚNIOR (1999), a partir do reconhecimento deste componente como obrigatório, instaura-se uma vinculação do desenvolvimento urbano-ambiental como política pública que deve ter por premissa condicionante, o direto ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Deste modo, a questão da sustentabilidade vai se exteriorizar através de algumas iniciativas dos poderes públicos e empresariais no âmbito urbano, visando, além de uma pretensa combinação de desenvolvimento e conservação ambiental, também fonte propulsora de iniciativas participativas de planejamento e políticas públicas. Tal fato demonstra o quanto é relevante para a sociedade como um todo, as iniciativas dos agentes produtores do espaço urbano, cujas estratégias permitem identificar o grau de comprometimento dos agentes nos processos de degradação urbana, bem como a articulação de soluções para o equacionamento dos problemas entre ambiente natural e ambiente construído.

Dentro deste enfoque, o Estatuto da Cidade é explícito no que tange ao direito a cidades sustentáveis, considerando como tal o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer em consonância com o previsto na Agenda 21. IV Estatuto da Cidade e as Áreas de Preservação Permanente Face aos inúmeros impactos que o crescimento urbano causa ao meio ambiente, é impossível pretender-se dissociar o ordenamento racional do espaço urbano da tutela ambiental, sendo esta a única forma de garantir a qualidade de vida dos habitantes na cidade. Essa integração visa, sobretudo, atribuir uma concepção de caráter unitário ao ambiente, na qual a preservação, recuperação e a revitalização do meio ambiente há de constituir uma preocupação do Poder Público. Com a edição do Estatuto da Cidade, a princípio esta preocupação com a integração, ao menos em tese, estaria bem conduzida. Inobstante, no que tange a situação específica das regularizações urbanísticas, o Estatuto da Cidade dá margem a que os estados e municípios disciplinem matéria através de normas voltadas à realidade local, uma vez que o tema neste diploma legal, foi contemplado apenas de forma genérica. Desta forma, passa a se constituir um grande desafio a compatibilização das normas ambientais com o escopo da promoção da regularização fundiária, uma vez que o Estatuto da Cidade não disciplinou em que medida, nestes processos, deverá ser contemplada à atenção ao meio ambiente. Ocorre que, os maiores problemas enfrentados com a destruição dos recursos naturais dizem respeito à intervenção nas margens de curso d água, uma vez que a cidade passou a se aproximar dos rios, em razão do adensamento populacional e ao assentamento irregulares desta população. Estas áreas são consideradas de Áreas de Preservação Permanente, definidas como aquelas nas quais, por imposição da lei, a vegetação deve ser

mantida intacta, tendo em vista garantir a preservação dos recursos hídricos, da estabilidade geológica e da biodiversidade, bem como o bem-estar das populações humanas. Foi tamanha a preocupação da legislação em preservá-las que somente em hipóteses excepcionais poderá ocorrer a supressão da vegetação, em caso de utilidade pública ou interesse social legalmente previstos. Por esta razão, da maneira como o tema foi enfocado no Estatuto da Cidade, há um risco de que as soluções para os assentamentos tenham um cunho excessivamente político-eleitoreiro, conduzindo em alguns casos às regularizações urbanísticas em flagrante desrespeito ao meio ambiente. A discricionariedade do poder público pode estabelecer critérios que não atentem a consonância e a integração desejada, face à ausência de padrões para as práticas da regularização urbanística que as condicione a observância das normas de preservação ambiental. Ressalta-se que a falta de parâmetros seguros para nortear a opção do poder público, faz com que o conflito desta questão resida no limite entre a decisão de privilegiar o direito fundamental à habitação ou em preservação o meio ambiente determinando a retirada do assentamento da área de preservação. É bem provável que neste embate, o meio ambiente sofra os efeitos negativos das ocupações irregulares, uma vez que as perspectivas apontadas no Estatuto da Cidade ampliam as possibilidades de regularização das posses urbanas. Considerações finais É preciso perceber o Estatuto da Cidade como um instrumento que possui, precípuamente, a função de instrumentalizar o controle e o ordenamento urbanístico, no desenvolvimento e na gestão democrática das cidades brasileiras. Pode-se dizer que o Estatuto da Cidade representa o passo inicial de uma longa trajetória a ser percorrida caminhada na qual o planejamento urbano vai retomar um lugar fundamental no âmbito das políticas públicas.

Entretanto, em que pese o entusiasmo pelas perspectivas apresentadas, em vários momento o instrumento exige um acautelamento na sua interpretação. Por certo, a implementação desta lei nos municípios vai representar uma perspectiva positiva para solucionar problemas complexos como a expansão territorial ilimitada que tem comprometido seriamente áreas de preservação ambiental. Neste cenário, é fundamental que a sociedade civil participe através de associações representativas de vários segmentos econômicos a fim, não apenas de garantir a realização do debate, mas sobretudo imprimindo uma nova concepção de intervenção no território, ampliando a perspectiva de aproximação e conciliação entre as temáticas urbano ambientais. Referências bibliográficas AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da cidade. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Fase/IPPUR, 1997. ARAÚJO, Luiz Ernani Bonesso de. A questão fundiária na ordem social. Santa Cruz do Sul: FISC, 1985. BECKER, Dinizar F. A economia política dos direitos sociais e ambientais: uma primeira aproximação teórica dos fundamentos econômicos dos direitos sociais e ambientais. 2001, cópia digital. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: 1998. CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação dos bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas. Ijuí: UNIJUÍ,1999. COSTA, Marli Marlene Morais da. Cidadania e direitos humanos: inter-relação necessária. Redes, Santa Cruz do Sul, v.6, n.1, p. 101-114, jan./abr., 2001. FERNANDES, Edésio (org). Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos políticos e jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.. A função social da propriedade e da cidade: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado,1998. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995. MUKAI, Toshio. Direito e legislação urbanística no Brasil. São Paulo: Saraiva. 1998.

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