JUSTIÇA COMO EQÜIDADE EM JOHN RAWLS: UMA LEITURA ACERCA DO SEU STATUS DE TEORIA ALTERNATIVA



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Transcrição:

JUSTIÇA COMO EQÜIDADE EM JOHN RAWLS: UMA LEITURA ACERCA DO SEU STATUS DE TEORIA ALTERNATIVA William Coelho de Oliveira ϖ RESUMO. Tratar-se-á aqui, primeiramente, do conceito de posição original como artifício heurístico para alcançar os dois princípios de justiça propostos por John Rawls. Depois, será examinado o problema da prioridade, que me parece ser metodologicamente fundamental para sua teoria, isto visando ao raciocínio do autor, desde seu ponto de partida até os princípios de justiça propostos. Então, far-se-á uma caracterização da justiça eqüitativa como teoria alternativa entre o utilitarismo e o intuicionismo no âmbito da justiça política. PALAVRAS-CHAVE. Justiça. Eqüidade. Filosofia Política. ABSTRACT. This paper intend to explicit: 1) the concept of original position as artifice heuristic to be reached the two beginnings of justice proposed by Rawls; and 2) the problem of the priority, fundamental methodologically for its theory. It s viewing author s reasoning, from its starting point to its beginnings of justice. And a characterization of the equal justice while alternative theory between the utilitarism and the intuicionism in the ambit of the political justice. KEYWORDS. Justice. Equal. Political Philosophy. 1 INTRODUÇÃO A obra A Theory of Justice, de John Rawls, é já um clássico em se tratando de justiça política, desde sua publicação em 1971. Nela, o autor se incumbe de elaborar uma teoria da justiça, não apenas como crítica ao utilitarismo dominante desde Jeremy Bentham, mas também como alternativa mesmo de superação daquela corrente de pensamento político. Mas qual o ponto de partida do autor para tal empreitada? Além das críticas comuns ao utilitarismo, que problema foi considerado básico por John Rawls? Que elemento teóricometodológico funda a pretensão de teoria alternativa da justiça em face das posições utilitaristas e intuicionistas? Buscando responder a tais questões, tentarei explanar o conceito de posição original enquanto artifício heurístico para alcançar os dois princípios de

justiça propostos por Rawls, e, além disso, o que me pareceu ser o problema fundamental assumido na elaboração de sua Teoria da Justiça, isto é, o problema da prioridade. Isto, a meu ver, permitirá uma visualização do raciocínio presumidamente seguido pelo autor, desde o que considerei seu ponto de partida até culminar nos princípios de justiça. Permitirá também, finalmente, uma caracterização da justiça eqüitativa enquanto teoria alternativa entre o utilitarismo e o intuicionismo no âmbito da justiça política. Jonh Rawls apresenta Uma Teoria da Justiça com o intento claro de discutir justiça política. Isto significa discutir o conceito de justiça no âmbito da sociedade política, ou seja, enquanto estrutura de distribuição das riquezas, das oportunidades sociais e econômicas, das liberdades, dos direitos e dos deveres fundamentais. Sob a pretensão de elevar o nível de abstração do conceito tradicional de contrato social, ele substitui o pacto social por uma situação inicial, da qual se derivam os princípios de justiça. O autor coloca para si a tarefa de comparar os conceitos clássicos de justiça utilitarista e intuitivo e a justiça como eqüidade e, além disto, a tarefa de apresentar uma teoria alternativa viável contra o utilitarismo e o intuicionismo. Estes são, pois, os três aspectos objeto deste trabalho, a saber: a idéia de posição original em substituição ao pacto social; a comparação entre a justiça como eqüidade e as outras teorias oponentes; e, por fim, uma caracterização da justiça como eqüidade enquanto teoria alternativa. 2 JUSTIÇA E SOCIEDADE O que interessa na discussão acerca da justiça, segundo Rawls, é a maneira pela qual as principais instituições sociais, como a Constituição política e as organizações econômica e social, distribuem os direitos e deveres fundamentais na partilha dos benefícios da cooperação social. Pois, para ele, a sociedade é uma associação auto-suficiente de indivíduos que agem, na maioria das vezes, em conformidade com regras de conduta reconhecidas no papel de ϖ Prof. de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (DFI/UERN); Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); líder do GP Epistemologia e Ciências Humanas; coordenador do Grupo de Extensão Amantes de Sofia.

amálgama; as quais funcionam como base da cooperação social. Nesse sentido, a sociedade é uma reunião de cooperações com o intuito de se obter vantagens mútuas, porém, marcada por conflitos e por interesses individualizados. Esses interesses se identificam entre si a partir do momento em que a cooperação torna a vida melhor para todos - pelo menos melhor do que no estado de natureza, de Hobbes. Ou seja, há uma identidade de interesses no sentido de que todos cooperam em vista de uma vida melhor para todos. Mas, além de interesses comuns, a sociedade também é marcada por conflitos. E esses conflitos de interesses surgem quando as pessoas percebem que a maneira de distribuição do aumento de produtividade, resultante de sua colaboração, não está sendo justa. Uma vez que as pessoas se dão conta de como o produto social de sua colaboração está sendo distribuído, surge a necessidade de princípios que determinem a divisão das vantagens, assegurando uma partilha correta. Isto é, surge a necessidade de princípios de justiça social. Ora, os princípios de justiça social devem-se aplicar às desigualdades presentes já na estrutura de qualquer sociedade, desigualdades tidas como inevitáveis, devido ao favorecimento a uns mais que a outros. E o papel desses princípios é regular a escolha de uma Constituição política e os elementos principais do sistema econômico e social. Mas que princípios seriam esses? 3 PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA E POSIÇÃO ORIGINAL Na busca por princípios de justiça racionais, John Rawls parece fazerse a seguinte pergunta: Que princípios seriam adotados por pessoas livres e racionais reunidas pelos mesmos interesses, quando todas estivessem numa posição de igualdade? Para responder a essa pergunta, ele imagina uma situação a partir da qual os homens pudessem, conjuntamente, alcançar, escolher e estabelecer os princípios de justiça necessários para a justa distribuição dos bens sociais

primários, que são: riquezas, liberdades, direitos, deveres, e auto-estima. Essa situação, chamada de posição original, no seu modo de ver, é a garantia de que a distribuição dos bens primários seria eqüitativa. Para tanto, essa situação inicial é marcada por duas exigências que se constituem em condições de igualdade entre os homens, a saber: a) condições de racionalidade, expressas por uma noção própria de bem e por um senso de justiça. Isto porque, os homens já têm uma idéia de justiça enquanto princípios que eles acreditam estabelecer uma boa distribuição de benefícios e deveres na cooperação social; e, diz ele, o desejo geral de justiça limita a perseguição de outros fins, de outros bens. Além dessas exigências da racionalidade, Rawls recomenda, ainda que, os participantes da posição original tenham conhecimentos de Psicologia, Sociologia e Economia, para facilitar na caracterização da condição de igualdade. Mas é necessária ainda uma outra condição: b) o véu da ignorância, como total desconhecimento da posição específica de cada colaborador. Isto impossibilitaria saber o que beneficiaria mais a outro do que a si próprio, obrigando cada participante a escolher o melhor para si, porém não em detrimento dos outros, mas em vista do melhor para todos, uma vez que os prejuízos poderiam recair sobre si mesmo. Pois assim, a justiça como eqüidade se dá numa situação racional e de desinteresse mútuo, diz o autor. Somente sob essas condições, segundo Rawls, seria possível que os princípios de justiça expressassem o resultado de um acordo ou barganha eqüitativa, visto que os acordos a que se chegam, nessa situação, são eqüitativos. E dessa maneira, uma sociedade sob os princípios da justiça como eqüidade teria membros autônomos e as obrigações seriam, reconhecidamente, auto-impostas (159). Há, então, três justificativas básicas, para a situação inicial: 1) parece razoável e aceitável, de forma geral, que ninguém possa tirar vantagens da escolha dos princípios por sorte, ou por circunstâncias sociais ; 2) é impossível ajustar os princípios às circunstâncias peculiares de cada caso particular ; e 3) que as aspirações e a visão que as pessoas têm de seus bens, não devem afetar os princípios que seriam racionalmente propostos e aceitos.

Em suma, a posição original é imaginada como a situação em que certos homens livres e racionais são obrigados, por determinadas circunstâncias, a escolher e estabelecer os princípios de justiça da estrutura social que ora se inicia. Então, quanto ao modelo de governo, por exemplo, nenhum deles escolheria a tirania, pois que, dado o véu da ignorância, nada lhe garantiria ser ele o opressor, arriscando-se, portanto, a ser oprimido. Disto, deriva o primeiro princípio de justiça eqüitativa, uma vez que restaria, a cada um, garantir a sua liberdade e, conseqüentemente, a dos demais. E, além disso, na impossibilidade de se conhecer a condição especial de cada um, e visando a evitar prejuízos, surge então o segundo princípio, haja vista que, certamente, seria razoável se decidir pela distribuição igualitária de direitos e deveres dos cooperadores. Eis, pois, os dois princípios de justiça que John Rawls estabelece como princípios de justiça eqüitativa, extraídos do que ele chama de posição original. O que interessa é que o princípio da liberdade, que significa igual liberdade para todos os membros da sociedade, é o primeiro princípio de justiça eqüitativa. E este se aplica à estrutura básica da sociedade, ao seu fundamento político. O segundo princípio, ou princípio da diferença, a rigor, seria o princípio da igual distribuição dos bens primários. Contudo, admitindo a impossibilidade de tal distribuição igualitária, o autor admite que os bens não sejam distribuídos igualitariamente, desde que: a distribuição desigual beneficie a todos, ou pelo menos aos menos favorecidos; ou, se isto não for possível, então que seja garantida a igualdade de oportunidades para cargos e postos que possibilitem ascensão social e econômica. Nesse sentido, injustiça é a desigualdade que não beneficia a todos. Enquanto justiça é a eqüidade. 4 UMA TEORIA ALTERNATIVA Mas, em que sentido a justiça como eqüidade se pode dizer uma teoria alternativa, ante o utilitarismo e o intuicionismo? Qual é o problema teóricometodológico considerado fundamental por John Rawls, resolvido com sua teoria,

e não com as outras? Que critério lhe permite o status de teoria alternativa? Quais são as suas características? Segundo Rawls, as teorias morais tradicionais são na maioria intuicionistas ou se baseiam num único princípio (49). Em outras palavras, no que depende da intuição, há uma multiplicidade de princípios, além dos da liberdade e da diferença, como por exemplo, do amor, da fraternidade, da solidariedade, da verdade etc.; e nenhum pode requisitar privilégio ou prioridade sobre os outros. Por outro lado, para evitar o apelo sistemático à intuição, o utilitarismo clássico reduz tudo isso a um único princípio. Mill e Sidgwick, por exemplo, sustentam: que os nossos juízos morais são implicitamente utilitários no sentido de que quando se confrontam com um choque de preceitos, ou com noções de natureza vaga e imprecisa, não temos nenhuma alternativa a não ser adotar o utilitarismo, o qual se caracteriza no seguinte princípio: agir em prol da felicidade do maior número de pessoas. Eles acreditam que, às vezes, é preciso ter um único princípio para ordenar e sistematizar os juízos. O intuicionismo, ao contrário, não tem um padrão para decidir em face de um confronto de princípios. É que ele não tem como justificar a prioridade de um sobre os outros. Nesse sentido, trata-se de uma concepção parcial da justiça, por não saber justificar as prioridades. A justiça como eqüidade, por sua vez, apresenta dois princípios o da liberdade e o da diferença contra um do utilitarismo e vários do intuicionismo. O problema, então, observado por John Rawls, é o da prioridade de princípios. É possível eliminar a pluralidade de princípios? Ou seja, entre os dois princípios da justiça como eqüidade, qual deles seria suficiente e qual seria dispensável? Se uma resposta não lhe é possível, então é preciso atribuir-lhes pesos diferentes, de forma essencial, e não secundária, na teoria da justiça. Por isso, os conceitos de justiça deverão ser hierarquizados segundo suas respectivas aceitações pelas pessoas. Daí surgem as regras de prioridade desses princípios, ou ordenação serial: o que significa que o primeiro princípio é anterior ao segundo; e que oportunidade eqüitativa é anterior ao princípio da diferença. Ou seja: não seria permitido, a quem quer que fosse, abrir mão da sua liberdade em troca de uma maior porção de bens materiais. E, considerando que o princípio da diferença é, na verdade, uma exceção devido à impossibilidade de distribuir os bens

igualitariamente, então a distribuição desigual só é permitida se for guardada a prioridade das oportunidades iguais para todos. Portanto, uma vez que, na justiça como eqüidade, os princípios de justiça são escolhidos conforme a situação inicial, é razoável que: 1. Na posição original, as pessoas reconheçam a prioridade desses princípios; 2. A ordenação serial, ou regras de prioridades, evita que se precise ponderar princípios: por isso, o princípio de liberdade eqüitativa é anterior ao princípio da diferença; 3. Os juízos morais dão lugar a juízos de sabedoria: (p. 47) por exemplo, a pergunta sobre a preferência por uma organização social tem como resposta as expectativas dos menos favorecidos; 4. É preciso reduzir a dependência em relação aos juízos intuitivos, mas não eliminá-los completamente. Pois, numa doutrina contratualista os fatos morais são determinados pelos princípios que seriam escolhidos na posição original (p. 48). Estas são, sinteticamente, as características básicas da Teoria da Justiça de John Rawls. São quatro observações que marcam bem a importância da posição original. A primeira refere-se ao reconhecimento dos princípios de justiça graças à situação inicial. A segunda diz respeito à prioridade dos princípios estabelecida pela ordenação serial. A terceira demonstra a substituição de juízos morais por juízos de sabedoria, uma vez considerada a posição original. E por último, o reconhecimento da importância dos juízos intuitivos, reduzindo-os sem, contudo, eliminá-los. São, pois, estas características que tornam essa teoria distinta das demais, quer seja das intuicionistas, quer seja do utilitarismo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Eis o que, nesta leitura, parece possível considerar enquanto caracteres do status de teoria alternativa da justiça como eqüidade ante o utilitarismo e o intuicionismo. Tais características se expuseram, a meu ver, a partir do critério de ordenação serial. E este, por sua vez, brotou do problema da prioridade, o qual foi desconsiderado pelas teorias oponentes.

A rigor, Rawls bebeu em Kant a inspiração dos princípios de justiça, acrescentando-lhes, porém, a posição original, em substituição ao pacto social, como artifício heurístico para melhor fundamentar a ordem de prioridades de tais princípios. Considerando, então, a posição original e a ordem serial, foi possível caracterizar-se também pela substituição de juízos morais por juízos de sabedoria, assim como pela redução, e não eliminação dos juízos intuitivos. Com esses princípios garantindo a distribuição de bens já na escolha da Constituição política, é possível considerar que a idéia principal da justiça como eqüidade tem o contrato original não como um contrato para entrar numa sociedade particular, - como diz John Rawls -, mas, principalmente, que tal contrato não tem sentido, se seu objeto não forem os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade. Isto porque distribuir os bens igualitariamente, numa situação inicial, não significa que permanecerá tudo igual; cabendo às capacidades individuais o desenvolvimento de seus bens, o que servirá como ponto de referência para julgarmos melhorias. Quanto à origem dos princípios, contudo, parece pertinente perguntar se estes existem em-si, ou se são formulados pelo filósofo. Ou seja: se eles são descobertos, alcançados pelo homem, ou se são simplesmente elaborados pela razão. E, se são formulados, uma diferença de capacidade racional não influenciaria na escolha e estabelecimento de tais princípios, embora na posição original? Em outros termos: não seria possível, ainda, elaborar princípios melhores? REFERÊNCIAS GOROVITZ, Samuel. John Rawls - uma teoria da justiça. In: CRESPIGNY, Anthony de e MINOGUE, Kenneth R. (Org.). Filosofia Política. 2 ed. Brasília: Ed. UnB, 1982. (Col. Pensamento Político, 8). Trad. Yvone Jean: Contemporary political philosophers; Dodd, Mead & Cia. Inc., 1975.

HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. Trad. Ernildo Stein: Politische Gerechtigkeit; Suhrkamp Verlag Frankfurt, 1987. RAWLS, John. Uma Teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves: A Theory of Justice; Havard University Press, 1971.. Uma Teoria da justiça. Brasília: UnB, 1981. (Col. Pensamento Político, 50). Trad. Vamirech Chacon: A Theory of Justice; Havard University Press, 1971.