CONSULTA N.º 30/2009 Conflito de Interesses QUESTÃO A Senhora Advogada Dra.... veio solicitar que o emita parecer sobre uma situação de eventual conflito de interesses. O enquadramento factual, tal como exposto pela Dra.... é, em síntese, o seguinte: a) A Senhora Advogada Consulente é mandatária do Dr. A, na qualidade de antigo Director de Conteúdos da..., no processo que corre termos na..secção da.. Vara Cível de, sob o n.º..., cujos Autores são B. e C, sendo o Dr. A, Réu, a título individual, com outros. b) O casal... constituiu, por si e em nome dos seus três filhos, a Senhora Advogada Consulente como sua mandatária judicial, com vista à instauração de diversas acções cíveis, nomeadamente, contra as empresas.x e Y, nas quais o Dr. A detém posições relevantes a nível dos respectivos Conselhos de Administração. c) Sublinha ainda a Senhora Advogada Consulente que o patrocínio do Dr.A tem sido executado a título individual e que as acções a intentar não o irão ser contra ele mas sim contra as empresas de que o é Administrador. 375
DA COMPETÊNCIA CONSULTIVA DO CONSELHO DISTRITAL DE LISBOA Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial. A competência consultiva dos Conselhos Distritais está assim, limitada pelo E.O.A. a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que revelam dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados. Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre a questão colocada. ENTENDIMENTO DO CONSELHO DISTRITAL DE LISBOA A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia. António Arnaut, Iniciação à Advocacia História Deontologia Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996. O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem. O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão. 376
O Título III do Estatuto trata da Deontologia Profissional, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II, a questão das relações entre o advogado e o cliente. É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado Conflito de Interesses. Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio. A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do art. 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do EOA, segundo o qual o Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros. Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função 1 : a) Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes. c) Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações. Decorre, assim, da norma em apreço que: 1 Cfr. Processo de Consulta do C.D.L. n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Dr. João Espanha. 377
1 O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária. 2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado. 3 O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes. 4 Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito. 5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente. 6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros. No caso concreto, a Senhora Advogada Consulente: - É mandatária, em acção pendente, do Dr. A. - Em representação de outros clientes, pretende instaurar diversas acções cíveis contra a X e Y, nas quais o Dr. A detém posições relevantes a nível dos respectivos Conselhos de Administração. Atenta a factualidade descrita pela Senhora Advogada Consulente existe conflito de interesses? É nosso entendimento que a assunção do novo mandato, nos termos descritos, pela Senhora Advogada Consulente não é, de per si, geradora de conflito de interesses. Actualmente, a Senhora Advogada Consulente patrocina o Dr. A e as acções cíveis a instaurar sê-lo-ão contra as empresas X e Y, pessoas, portanto, juridicamente distintas. 378
Assim, e do ponto de vista meramente formal, não identificamos uma situação geradora de conflito de interesses. Mas haverá ainda que ter em conta o seguinte. É que, de acordo com a factualidade trazida ao conhecimento do Conselho Distrital de Lisboa, o Dr. A detém posições relevantes a nível dos Conselhos de Administração das sociedades contra as quais a Senhora Advogada Consulente pretende instaurar, em representação dos seus novos clientes, as acções cíveis. E, como é sabido, estatui o Código Civil que as sociedades são representadas em juízo e fora dele pelos seus administradores. Assim, a existir algum impedimento para a assunção do novo mandato, tal situação deverá ser ponderada pela Senhora Advogada Consulente. Será essencial, a nosso ver, que a Senhora Advogada Consulente pondere a relevância que o Dr. A tem na representação das referidas sociedades. E, se efectivamente, o Dr. A detiver uma posição de relevo na representação da sociedade caberá à Senhora Advogada Consulente ponderar se deverá assumir o patrocínio em causa, tendo nomeadamente em atenção, a relação profissional e de confiança que, neste momento, e por força do mandato assumido, a liga ao Dr. A. Só a Senhora Advogada estará em posição de avaliar uma tripla vertente, (i) se no caso concreto a aceitação do novo mandato poderá consubstanciar uma quebra de confiança do seu cliente, (ii) se com aceitação do novo mandato a Senhora Advogada Consulente sentirá a sua independência afectada ou (iii) se pela aceitação do novo mandato a Senhora Advogada Consulente se sentirá constrangida no exercício do mandato que lhe foi conferido pelo Dr. A. Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá a Senhora Advogada Consulente recusar a aceitação do novo mandato. 379
E, recorde-se que a relação de confiança é estrutural e sinalagmática no relacionamento entre advogado e patrocinado, só assim possibilitando que o cliente se sinta bem representado e o Advogado possa exercer o seu mandato com independência e sem constrangimentos. E, diga-se mais, a relação entre o advogado e o patrocinado é uma relação eivada de deveres particulares, que recaem primacialmente sobre o Advogado. E, será, a nosso ver, do conjunto destes factores que a Senhora Advogada Consulente deverá ponderar se a aceitação do novo mandato nos termos referidos lhe permitirá, em consciência, exercer o patrocínio judiciário, em todas a acções, de forma totalmente isenta e independente, como é pressuposto indeclinável do exercício da Advocacia. CONCLUSÕES 1. A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do art. 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do EOA, segundo o qual o Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros. 2. O regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função: (a) defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes; (b) defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes; (c) defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações. 380
3. Entendemos que a factualidade descrita pela Senhora Advogada Consulente não consubstancia, de per si, uma situação geradora do conflito de interesses. 4. A existir algum impedimento quanto à assunção do novo mandato, essa ponderação caberá à Senhora Advogada Consulente, analisando uma tripla vertente, (i) se no caso concreto a aceitação do novo mandato poderá consubstanciar uma quebra de confiança do seu cliente, (ii) se com aceitação do novo mandato a Senhora Advogada Consulente sentirá a sua independência afectada ou (iii) se pela aceitação do novo mandato a Senhora Advogada Consulente se sentirá constrangida no exercício do mandato que lhe foi conferido pelo Dr. A. 5. Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá a Senhora Advogada Consulente recusar a aceitação do novo mandato. Lisboa, 14 de Maio de 2009 A Assessora Jurídica do C.D.L. Sandra Barroso Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados, Lisboa, 14 de Maio de 2009 O Vice-Presidente do C.D.L. Por delegação de poderes de 4 de Fevereiro de 2008 Jaime Medeiros 381