Título : ESPASTICIDADE ASPECTOS CLÍNICOS E TRATAMENTO. Este tema foi apresentado em 4 publicações.

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Texto publicado no site da ABPC https://www.paralisiacerebral.org.br/ em 07/05/2018, 15/05/2018, 23/05/2018 e 01/06/2018 na secção O assunto é... que periodicamente traz um assunto importante na Paralisia Cerebral apresentado por um profissional especialista no tema. Título : ESPASTICIDADE ASPECTOS CLÍNICOS E TRATAMENTO Este tema foi apresentado em 4 publicações. I - O QUE É E QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DA ESPASTICIDADE? Uma das manifestações mais frequentes da Paralisia Cerebral é a espasticidade, ou seja, o aumento da resistência fisiológica do músculo ao estiramento passivo, causando um aumento da tensão, ou tônus, desse músculo, que passa a ser hipertônico. Essa hipertonia não é voluntária, o paciente não consegue controla-la. Ao contrário, quando ele tenta fazer um movimento voluntario, a espasticidade dificulta esse movimento, atuando no sentido contrário. Por exemplo, se a criança tentar fazer a extensão ( esticar ) do cotovelo, a hipertonia dos músculos que o fletem ( dobram ) aumenta, tornando mais difícil, às vezes impossível, estendêlo. Essa manifestação é devida à lesão do sistema nervoso e para ela não há tratamento de cura. Podemos concluir que é um sintoma que limita bastante a evolução do paciente, tanto por dificultar o uso normal do músculo como por impedir que ele cresça normalmente, já que um dos fatores importantes para o crescimento muscular é o seu uso. Quando a espasticidade atua em um músculo em crescimento, esse músculo vai se tornar, gradativamente, mais curto, pois os ossos estão crescendo normalmente, mas os músculos estão crescendo menos. Os músculos se fixam aos ossos; se o osso cresce mas o músculo não o acompanha, com o tempo, o movimento completo da articulação passa a ser impossível, limitado pelo tamanho menor do músculo: isso é o que chamamos de encurtamento ou contratura muscular, e caracteriza uma deformidade. Um exemplo típico é o que acontece, com frequência, na articulação do tornozelo da criança com paralisia cerebral. O arco de movimento normal dessa articulação é de 50 graus de flexão plantar ( para baixo ) e 20 graus de flexão dorsal ( para cima ). Na paralisia cerebral, o músculo que realiza a flexão plantar (músculo tríceps sural) é geralmente espástico e, por isso, a criança tende a deixar o pé em equino ( na ponta ); quando tenta fazer a flexão dorsal ( puxar o pé para cima ), a espasticidade atua no sentido contrário e ganha esse cabo de guerra. Numa fase inicial, se outra pessoa tentar realizar a flexão dorsal do tornozelo dessa criança, através de um movimento passivo lento, conseguirá fazê-lo, pois a espasticidade cede quando a velocidade do movimento é baixa. Por essa característica de ser velocidade-dependente, dizemos que a espasticidade é uma hipertonia elástica. Quando o movimento lento é completo, sabemos que o músculo não está encurtado, mas apenas espástico. Se não atuarmos contra essa espasticidade nesta fase, ela vai continuar ganhando a briga do músculo contrário, que faz a flexão dorsal, e manterá o pé continuamente em equino, enquanto nosso pacientezinho cresce. Numa fase seguinte, se tentarmos fazer a flexão dorsal passiva, mesmo que de forma lenta, o movimento irá só até um determinado ponto antes de se completar, por exemplo, até 0 graus de flexão plantar. O que falta para completar o arco de movimento os 20 graus de flexão dorsal é o quanto esse músculo cresceu a menos do que deveria. Outra característica da espasticidade que dificulta a função motora da criança é o fato de ser, na paralisia cerebral, generalizada na área afetada. Isso quer dizer que um paciente com PC bilateral ( diparético ou tetraparético ) terá espasticidade tanto nos membros superiores ( braços ) como inferiores ( pernas ) e no tronco; já um paciente com PC unilateral ( hemiparético ) terá espasticidade em todo o lado do corpo acometido, direito ou esquerdo. Além disso, a espasticidade não atua da mesma forma em todos os músculos comprometidos: ela tende a ser mais evidente nos músculos flexores, adutores e rotadores internos (são os músculos que mantêm os membros dobrados e próximos do tronco), e mesmo nestes músculos, ela pode ser mais intensa em uns do que em outros. Assim, na PC bilateral dita diparética, existe um maior comprometimento dos membros inferiores em relação aos superiores; estes também têm espasticidade, mas num grau bem menor que nos membros inferiores, às vezes só perceptível

para o médico que examina o paciente. Para facilitar essa diferenciação, usamos uma nota de 0 a 4 para indicar o grau de espasticidade de cada músculo (escala de Ashworth modificada), onde 0 é nenhuma espasticidade, 1 é espasticidade leve, 1+ é espasticidade leve mas bem perceptível, 2 é moderada, 3 é grave e 4 é impossível realizar qualquer movimento passivo e só se consegue diferenciar de deformidade quando o paciente está anestesiado ou dormindo. Por essas características podemos compreender porque, quando os músculos espásticos encurtam, as deformidades que causam são típicas entre a maioria das crianças com paralisia cerebral, como os membros inferiores em tesoura ( cruzados por ação dos músculos adutores das coxas) e com os pés em equino ( na ponta, por ação dos músculos tríceps surais). Outro aspecto interessante em relação à espasticidade é que ela é variável de criança para criança, e numa mesma criança varia de acordo com vários fatores: quando o clima está frio, ela tende a aumentar; quando o paciente está dormindo, ela diminui muito; se o paciente estiver com febre, ou qualquer outro problema agudo de saúde, a espasticidade também amenta, assim como quando a criança está feliz e excitada. Algumas vezes, a espasticidade de um paciente aumenta em relação ao habitual sem conseguirmos identificar a causa. Conhecer essas particularidades sobre a espasticidade torna mais fácil compreender porque o médico indica certo tratamento para um paciente mas não para outro, porque prefere iniciar o tratamento com as medidas mais simples, e observar como o pequeno responde a elas, e porque algumas crianças vão precisar realizar cirurgias e outras não. Mas como saber qual paciente precisa ser tratado? Quando se deve iniciar o tratamento da espasticidade? Quais as medidas de tratamento mais usadas e quais os benefícios e riscos de cada uma delas? II - COMO SE AVALIA SE UM PACIENTE PRECISA DE TRATAMENTO PARA A ESPASTICIDADE? A espasticidade é um dos sintomas de lesão do sistema nervoso central, que aparece quando certas áreas do sistema nervoso, que vamos chamar genericamente de área motora, estão comprometidas. Por isso, não está presente em todos os pacientes com lesão neurológica. Porém, por ser uma área que é afetada com grande frequência, sabemos que a maioria das crianças com paralisia cerebral (cerca de 75% dos casos) tem espasticidade em maior ou menor grau. Os pacientes com paralisia cerebral que não são espásticos têm outras alterações do controle do movimento por terem lesões em outras áreas do sistema nervoso, que não serão discutidas aqui. Como já foi dito, não existe tratamento de cura para a espasticidade: ela faz parte do quadro clínico de todo paciente que tem uma sequela de agressão à essa área motora do sistema nervoso central, independentemente da causa dessa agressão, da idade em que ocorreu e do tempo de evolução. Um bebê que sofreu anóxia neonatal (falta de oxigênio no sistema nervoso durante o período do parto) e evoluiu com sequela motora, terá espasticidade ao longo da vida, da mesma forma que um adolescente que sofreu um traumatismo de crânio durante um acidente de trânsito e teve lesão da mesma área. A principal diferença entre esses dois exemplos, é que o primeiro terá toda a fase de crescimento influenciada pela hipertonia muscular, e o segundo terá essa influência apenas no final da fase de crescimento. Como também já foi discutido, faz parte das características próprias da espasticidade a sua predominância em determinados grupos musculares e a sua intensidade variável de paciente para paciente, e também no mesmo paciente, conforme a situação. De forma esquemática, podemos resumir as características da espasticidade em alguns itens: 1. Não há tratamento de cura = todas as medidas de tratamento visam diminuir a intensidade da hipertonia, mas nenhuma delas fará a espasticidade desaparecer. 2. Intensidade variável = a espasticidade pode ser desde muito leve, e por isso causar pouco impacto no desempenho motor do paciente, até muito grave, e dificultar até as atividades mais

simples como permanecer sentado e trocar a roupa. 3. Predomínio em certos músculos = provoca um desequilíbrio das forças que atuam na articulação envolvida, levando-a a permanecer numa posição que é chamada viciosa por ser inadequada, alterada. Pensar nessas características, mas lembrar também que nem sempre a espasticidade é prejudicial, e que cada criança é única e deve ser avaliada individualmente, pelos vários profissionais da equipe multidisciplinar de reabilitação, se possível tanto em repouso como realizando atividade, nos auxiliará a tomar a decisão quanto a indicar algum tratamento para a espasticidade, ou não. situações: De forma geral, há necessidade de intervir sobre a espasticidade nas seguintes 1. Se é intensa e prejudica os cuidados, o posicionamento e/ou a função 2. Se provoca dor/ desconforto 3. Se o risco de levar a deformidades é grande Cabe ao médico, como coordenador da equipe, tomar a decisão final, em acordo tanto com a equipe como com o pacientezinho, se ele tiver idade para opinar, e seus pais e/ou responsáveis. É também o médico que vai optar pela forma de intervir, baseado na avaliação individualizada e no conhecimento de cada método de intervenção, sua forma de atuação, vantagens e desvantagens, que serão discutidos futuramente. Responder às seguintes perguntas depois da avaliação de cada criança é um exercício contínuo que deve ser feito pelo profissional na busca de tomar a melhor decisão possível: - A espasticidade é muito intensa, com nota maior que 2 na escala de Ashworth? Exige que o paciente faça um grande esforço para vencê-la, mesmo em movimentos pequenos? Dificulta as atividades mais simples, como fazer a higiene e trocar a roupa, aumentando o desgaste do paciente e de quem cuida dele? É forte a ponto de impedir uma posição confortável, e portanto causando dor e desconforto? - Qual é a idade do paciente? Ele ainda é um bebê, e portanto terá espasticidade por toda a infância, com risco aumentado de evoluir com encurtamentos musculares e deformidades? Será preciso tomar medidas para controle da espasticidade por um período bem grande de tempo? - E como é o paciente em relação ao seu potencial funcional, ou seja, sua possibilidade de realizar atividades mais e mais complexas a medida que cresce? Se é uma criança que tem um quadro grave e pouca possibilidade, por exemplo, de vir a andar, então é muito importante promover, desde muito cedo, uma boa posição sentada, e dar prioridade às medidas que auxiliam a alcançar esse objetivo, como permitir que tenha uma base ampla quando sentada, evitando que os membros inferiores fiquem cruzados, o que pode se conseguir através de medidas para diminuir a espasticidade dos músculos que aduzem ( fecham ) as coxas. Por outro lado, se o paciente consegue se locomover andando, então além de evitar a postura em tesoura dos membros inferiores, preciso garantir uma boa base de apoio quando em pé, ou seja, evitar a postura em equino ( pés na ponta ). Todas as alternativas de tratamento têm suas vantagens e desvantagens. Nos próximos textos, vamos conhece-las melhor. III MEDIDAS DE TRATAMENTO PARTE 1. fisioterapia, uso de órteses e medicações; quando estão indicadas cirurgias ortopédicas e/ ou neurocirurgias O tratamento de uma criança com paralisia cerebral, de forma ideal, deve ser multiprofissional, abrangente, e sempre levar em conta a opinião do próprio paciente e/ou de seus cuidadores. O tratamento da espasticidade deve estar inserido neste contexto. Como já comentamos, a espasticidade não pode ser curada, portanto as medidas para controla-la devem ser tomadas após a avaliação individual do paciente e discussão com todos

os profissionais envolvidos; o objetivo do tratamento deve ser claro e conhecido por todos, evitando-se, assim, expectativas irreais quanto ao resultado. As primeiras medidas a ser tomadas, são, na verdade, cuidados obrigatórios para todo paciente espástico, sem os quais as outras possibilidades de intervenção não poderão alcançar o resultado pretendido: Tratamento clínico de possíveis fatores desencadeantes: já dissemos que alterações clínicas e emocionais podem piorar o quadro espástico. Assim, é necessário diagnosticar quadros associados como infecções, constipação intestinal, lesões de pele, etc., e, na presença de algum deles, trata-lo da forma apropriada. Apenas após total resolução desse quadro agudo será possível avaliar a real intensidade da espasticidade e a necessidade de intervenções terapêuticas específicas. Fisioterapia: sabemos que a espasticidade responde bem aos movimentos passivos lentos; estes devem fazer parte da rotina cotidiana do paciente, seja com o auxílio de um profissional, seja através do cuidador bem orientado, tanto nas fases iniciais de tratamento como após a alta do centro de reabilitação. Os alongamentos, associados a exercícios para melhorar a força dos músculos contrários àqueles que queremos relaxar, são a melhor forma de manter a espasticidade dentro de um limite aceitável, diminuindo o risco de possíveis complicações a médio e longo prazo, como a instalação de deformidades. Devem ser realizados todos os dias, tanto em crianças que não necessitam de outras formas de tratamento como naquelas que fazem uso de medicações relaxantes, ou que realizaram outros procedimentos cirurgias, bloqueios. Posicionamento: o uso de órteses equipamentos que mantêm as articulações e seguimentos corporais numa determinada posição são grandes auxiliares para manter o músculo relativamente alongado nos momentos em que ele está em repouso. É o caso das órteses suropodálicas conhecidas como goteiras que são moldadas em material plástico, de acordo com as medidas individuais de cada paciente, e que deixam o tornozelo em ângulo reto em relação ao pé, alongando o músculo tríceps sural de forma a permitir que, quando na postura em pé, o indivíduo tenha contato de toda a planta do pé com a superfície de apoio. Da mesma forma, podemos usar talas para manter os joelhos em extensão total e diminuir o risco de encurtamento dos músculos flexores. Podemos indicar, também, órteses para posicionamento dos membros superiores. Assim, desde que não haja limitação ao movimento passivo de determinada articulação, pode-se posicionar qualquer uma delas através do uso de órteses. Medicamentos de uso tópico: recentemente, vem se falando bastante a respeito do uso de uma medicação tópica, em forma de spray, que deve ser aplicada sobre o músculo espástico antes da realização dos alongamentos passivos. No Brasil, existe 1 apresentação comercial produzida pelo laboratório Hebron (Ziclague). A substância ativa dessa medicação é o óleo essencial de uma planta Alpinia zerumbet utilizada geralmente em aromaterapia por seus efeitos ansiolíticos. Existem estudos realizados em ratos mostrando seus vários efeitos antioxidante, anti-hipertensivo, vaso-dilatador, ansiolítico, possivelmente antipsicótico, miorrelaxante para o músculo liso e cardíaco. A partir daí, alguns estudos foram feitos com o objetivo de determinar seu efeito anti-espástico, que é real, porém não se sabe seu efeito a longo prazo. Dessa forma, é uma alternativa terapêutica nos pacientes com paralisia cerebral, mas, como qualquer outra medicação, deve ser indicada e aplicada por profissional adequadamente treinado, e não substitui os outros meios de tratamento. Se o nosso paciente está livre de complicações, bem posicionado e realizando alongamentos diários, e apesar disso, apresenta um grau de hipertonia acentuado, que limita alguma atividade, interfere nos cuidados, causa dor ou aumenta o risco de deformidade, então devemos passar para uma outra etapa de tratamento. Até aqui, todas as medidas descritas são não invasivas, ou seja, sem risco de causar algum efeito indesejado. A partir deste ponto, as possíveis intervenções a ser acrescentadas para controlar a espasticidade passam a ser invasivas, ou seja, dependem da introdução de substâncias estranhas ao organismo os medicamentos de uso oral ou injetável -, ou da realização de mudanças em sua anatomia as cirurgias ortopédicas ou neurológicas e, portanto, corremos o risco de ter outros efeitos, além dos pretendidos. Essa é a principal razão pela qual os prós e contras de cada método devem

ser ponderados, as possibilidades discutidas com todos os profissionais envolvidos, e a decisão final deve ser tomada pelo médico, que se torna a pessoa responsável pelo tratamento. Medicamentos de uso oral: algumas substâncias que atuam no sistema nervoso central têm, entre outros efeitos, o de promover relaxamento muscular. Geralmente, para alcançar esse efeito, as doses precisam ser altas, com limitação de acordo com a idade e o peso do paciente. O relaxamento que causam costuma ser generalizado, já que é a resposta a uma ação no centro que controla a função motora. E por ser generalizado algumas vezes pode deixar a criança molinha, com maior dificuldade, por exemplo, em manter o controle da cabeça; isto caracteriza um efeito indesejado. Outro efeito adverso é a ação sedativa dessas substâncias, ou seja, aumentam a sonolência e diminuem o estado de alerta do paciente, podendo interferir no aproveitamento das terapias ou da escola. Dessa forma, optamos por usar esse tipo de tratamento em situações específicas, por períodos curtos e, sempre que possível, em associação a outros métodos, para que se use a menor dose terapêutica possível. Cirurgias ortopédicas: as cirurgias têm a característica de promover resultados definitivos, portanto, é necessário que o ortopedista tenha muita certeza da indicação do procedimento para realiza-lo. Devemos lembrar que as cirurgias ortopédicas agem na espasticidade apenas de forma indireta, pois seu alvo são os músculos. Se um determinado músculo promove uma postura viciosa por estar espástico, ao ser alongado cirurgicamente permitirá uma postura mais fisiológica, deixando que o músculo de ação contrária atue de forma mais eficiente e promova um melhor equilíbrio de forças. Mas, ao ser alongado, o músculo tende a ficar mais fraco, o que não é desejável mesmo num músculo espástico. Outro aspecto a ser lembrado é que não há cirurgia para encurtar músculos que foram alongados além do necessário; este é, talvez, o principal efeito adverso de cirurgias ortopédicas o alongamento excessivo de 1 músculo pode levar ao que chamamos de inversão da deformidade. A idade da criança é outra questão fundamental na indicação de alongamentos musculares cirúrgicos: o músculo, mesmo após o alongamento, continua crescendo, e sob ação do sistema nervoso central; se há lesão da área motora causando espasticidade, esta continuará atuando durante o crescimento. Se a cirurgia for feita numa idade muito precoce, o risco da postura viciosa voltar durante o crescimento muscular é bem alto, havendo necessidade de novas cirurgias. Este efeito indesejado recebeu o nome de síndrome do aniversário, pois faz com que o pequeno paciente passe vários aniversários com gesso, ou hospitalizado, ou em recuperação. A consequência é stress para a criança e a família, perda da motivação, dificuldades na realização das atividades do dia a dia como ir a escola, entre outros. Para evitar esse efeito indesejado, sempre que possível e após avaliação e planejamento cuidadosos, o ortopedista deve programar a cirurgia de vários níveis num só evento. Neurocirurgias: estes procedimentos interferem diretamente na causa da espasticidade, ou seja, no sistema nervoso central, mas de forma paliativa, uma vez que cirurgias mais amplas trariam consequências não só sobre o tônus muscular, mas também sobre os movimentos ativos e a sensibilidade, causando danos maiores que os possíveis benefícios. As técnicas mais usadas, atualmente, são: I - rizotomia posterior superseletiva -> o neurocirurgião secciona algumas fibras de algumas raízes nervosas, definidas através de métodos específicos de avaliação, com o objetivo de diminuir os estímulos que chegam aos músculos. Como é um procedimento definitivo, deve ser feito após avaliações repetidas do paciente e quando tratamentos menos agressivos não surtirem resultados. O maior risco, em termos de efeitos indesejados, é em relação a alterações da sensibilidade, especialmente no controle da bexiga e do intestino. II implantação de bomba de infusão contínua de medicamentos -> essa alternativa possibilita que medicamentos relaxantes sejam liberados diretamente no liquido cefaloraquideano, embebendo o SNC. Dessa forma, doses muito menores que as necessárias para promover relaxamento por via oral são suficientes, diminuindo muito o risco de efeitos colaterais dessas drogas. Porém, é um procedimento invasivo, em que um depósito para a medicação é implantado no tecido subcutâneo do abdômen, e, através de um cateter, esta é liberada no liquor de acordo com uma programação feita pelo neurocirurgião. Trata-se de uma técnica com

resultados muito positivos, mas, infelizmente, tanto o equipamento como a medicação têm alto valor e não são acessíveis para a maioria dos pacientes. IV MEDIDAS DE TRATAMENTO PARTE 2: uso da toxina botulínica para espasticidade em crianças A toxina botulínica tem sido utilizada de forma terapêutica há quase 40 anos, a partir do conhecimento de seu efeito paralisante. É o produto de uma bactéria anaeróbia, o Clostridium botulinum, que se prolifera em meios sem oxigênio, como é o caso de alimentos enlatados de forma inadequada; a intoxicação, conhecida como botulismo, causa grave fraqueza muscular, generalizada, que, em casos extremos pode levar a morte por parada respiratória devido a paralisia dos músculos respiratórios. A busca de um antídoto eficaz levou a estudos que culminaram com a descoberta do mecanismo de ação da toxina sobre o sistema neuromuscular: ela desencadeia uma série de reações químicas que impedem a ação de neurotransmissores na junção entre o nervo e o músculo, e dessa forma, inibe a contração da célula muscular mediante o estímulo nervoso. Quando esse efeito ocorre em todo o organismo, como na intoxicação, provoca paralisia generalizada e grave. Porém, se forem usadas doses infinitesimais em locais específicos, o efeito será localizado, promovendo relaxamento muscular controlado e que pode ser utilizado de forma positiva em situações onde a contração muscular excessiva é prejudicial. Isso é o que acontece na espasticidade. O uso terapêutico da toxina botulínica se estende a uma variedade de condições em que se deseja promover relaxamento muscular. Inicialmente, nos anos 80, foi usada em Oftalmologia, depois em Neurologia, em pacientes adultos. Nos anos 90, seu uso em crianças foi liberado nos Estados Unidos, e vários países, incluindo o Brasil, passaram a indica-la como alternativa de tratamento na espasticidade de crianças com paralisia cerebral. Algumas considerações devem ser feitas em relação às características da toxina botulínica, que foram se tornando conhecidas a partir de pesquisa científica realizada pelos laboratórios que a comercializam: 1. Seu efeito foi considerado, inicialmente, irreversível nas células musculares em que era injetada, mas posteriormente se demonstrou que essas células, após um determinado período, voltavam a contrair quando estimuladas. Essa característica nos dá a tranquilidade de saber que, se por alguma razão, a fraqueza muscular causada foi excessiva, ou se o músculo injetado não era o alvo a ser relaxado, dentro de algum tempo haverá desaparecimento desse efeito indesejável. 2. Por se tratar de uma substância orgânica, pode causar efeitos sobre o sistema imunológico do indivíduo, que, com o tempo, passa a reconhece-la como um inimigo e atua no sentido de inativa-la, desenvolvendo anticorpos específicos contra ela, numa reação similar ao que acontece com as vacinas. Para evitar essa reação, devemos respeitar intervalos entre as aplicações, levando o sistema imunológico a esquecer que já teve contato com a substância e considera-la, sempre, um elemento novo, contra o qual não tem ainda as armas anticorpos apropriadas. Esse cuidado evita que, após aplicações repetidas, o músculo deixe de responder com o relaxamento esperado. 3. Quando usada nas doses recomendadas, com a técnica adequada, o efeito da toxina é local e não há risco de atuar em músculos distantes nem de desencadear reações semelhantes ao botulismo. Para evitar problemas assim, em crianças, devem ser rigorosamente respeitadas as doses, tanto de acordo com o peso da criança, como em relação ao músculo a ser injetado. Em crianças com maior comprometimento global, deve-se dobrar esse cuidado, e usar as menores doses consideradas eficazes. Hoje em dia, dispomos de várias apresentações comerciais da toxina botulínica e, ao contrário de outras medicações, as formulações e formas de apresentação não são similares, ou seja, a

dose recomendada para a toxina X NÃO deve ser considerada eficaz ou segura para a toxina Y. As apresentações também variam na forma de armazenamento e de reconstituição para o uso. Por essa razão, o profissional que indica e aplica a medicação deve ter amplo conhecimento de todas essas particularidades, e treinamento adequado para a realização do procedimento. A indicação do uso da toxina botulínica em crianças depende da avaliação individual do paciente e de serem levados em conta todos os critérios que discutimos nos textos anteriores. Além disso, vale a pena lembrar que: O meio de administração da toxina é a injeção intramuscular no músculo que se deseja relaxar. Portanto, esse músculo deve ser acessível à injeção, e a sua localização deve ser claramente definida pelo aplicador; Mais de 1 músculo pode necessitar ser injetado num mesmo procedimento. Apesar do volume a ser injetado ser pequeno e da formulação toxina botulínica e soro fisiológico - não provocar ardor local, as crianças em geral não aceitam bem a aplicação, e podem dificultar a técnica. Assim, sendo possível, é sugerido, mas não é indispensável, o uso de anestésico local ou sedação leve; Como existe a limitação de dose total por procedimento, o paciente que mais se beneficia é aquele que tem espasticidade focal. Em situações onde a espasticidade é mais generalizada, pode-se associar a aplicação de outras substâncias, como o fenol, em outros grupos musculares para promover um relaxamento mais amplo. Essa decisão cabe ao médico e depende da anuência da família e de sua expertise técnica; A segurança do procedimento, o fato de seu efeito ser reversível e de praticamente não ter efeitos adversos permite que a toxina botulínica seja usada em crianças bem pequenas, em que outros métodos de tratamento não são recomendados, e que seja reaplicada tantas vezes quanto necessário ao longo dos anos de crescimento; Como em qualquer outra medida terapêutica para a espasticidade, as aplicações devem ser acompanhadas dos cuidados habituais de alongamento muscular e posicionamento adequado para que seu benefício seja maximizado. O inicio da ação relaxante é observado após algumas horas a alguns dias da aplicação, e dura em média 3 a 4 meses. O músculo deve ser mobilizado logo após a aplicação para que a toxina se difunda por ele. O intervalo mínimo entre aplicações é de 3 meses, mas pode-se reaplicar em períodos bem maiores, a depender da necessidade. Não existe limite para o número de aplicações em um determinado músculo. Apesar do efeito ser totalmente reversível, algumas vezes, em especial nos casos mais leves, não há necessidade de reaplicar pelo bom resultado obtido com a associação do bloqueio e da fisioterapia. Em conclusão, nesta série de textos sobre a espasticidade em crianças com paralisia cerebral, espero ter deixado a mensagem final de que não existe fórmula secreta que solucione todos os problemas de nossos pequenos pacientes. Depende do olhar cuidadoso e especializado de cada profissional da equipe de reabilitação, da atenção para cada característica individual de cada criança e de cada família, e, em especial, da dedicação e comprometimento de todos nós, que nos sentimos mobilizados a encontrar a melhor resposta para cada desafio que se apresenta.

Dra Maria Angela de Campos Gianni Médica fisiatra especialista pela SBMFR, atualmente médica assistente do Grupo Infantil do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro - IMREA HC FMUSP.