A ÁGUA SANITÁRIA: UM EXPERIMENTO RELACIONANDO O COTIDIANO AO ENSINO DE QUÍMICA Fernando B. Mainier 1, Pedro Ivo Canesso Guimarães 2, Fábio Merçon 3 Universidade Federal Fluminense 1 Departamento de Engenharia Química GESET - Grupo de Estudos Sobre Ensino Tecnológico Rua Passo da Pátria 156, S. Domingos Niterói, Rio de Janeiro, CEP 24210-240 mainier@nitnet.com.br Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2 Departamento de Química Orgânica, Instituto de Química. Rua São Francisco Xavier 524, Maracanã - Rio de Janeiro, CEP 20559-900 canesso@uerj.br Universidade do Estado do Rio de Janeiro 3 Departamento de Ciências da Natureza, Colégio de Aplicação Rua São Francisco Xavier 524, Maracanã - Rio de Janeiro, CEP 20559-900 mercon@cruiser.com.br Resumo. Este trabalho é parte de um conjunto de experimentos laboratoriais que objetiva estabelecer as relações do cotidiano com o ensino de Química, mostrando que o conhecimento de química não é abstrato e está intimamente relacionado ao seu redor. A água sanitária solução com cerca de 2% (em massa) de hipoclorito de sódio-, foi o tema escolhido tendo em vista sua utilização variada desde a desinfecção generalizada ao branqueamento de roupas. O experimento consta de quatro fases: a) avaliação das diversas marcas de água sanitária comercial; b) preparação em laboratório de água sanitária partindo da obtenção de cloro e borbulhamento em solução de hidróxido de sódio. Nesta fase são construídos dois experimentos geradores de cloro: o primeiro a partir de uma reação entre ácido clorídrico e bióxido de manganês (MnO 2 ) e o segundo através da eletrólise de solução de cloreto de sódio (NaCl). O cloro gasoso é borbulhado numa solução de hidróxido de sódio (NaOH) para produzir a água sanitária; c) preparação de análise quantitativa do teor de hipoclorito em águas sanitárias comerciais; d) avaliação das propriedades químicas das soluções de hipoclorito de sódio. Palavras-chave: água sanitária, cotidiano, experimento laboratorial, ensino de química. CBE - 50
1. INTRODUÇÃO Segundo Abrantes [1], desde a Antiguidade, do ponto de vista da investigação científica, o recurso à experimentação sempre foi um traço marcante das ciências naturais. Observa-se que os cientistas, na maioria das vezes, produzem e reproduzem fenômenos em condições artificiais, com variáveis fenomenológicas controladas e/ou selecionadas objetivando lançar luz sobre alguma questão significativa. Em contrapartida, Chalmers [2], chama a atenção para alguns aspectos gerais da experimentação que podem ter configurações onde os resultados experimentais sejam impróprios e não venham constituir bases seguras no desvelamento de uma questão. Entretanto, deve ficar claro que os resultados são frutos de como o mundo funciona, independentemente dos resultados obtidos baseados no ponto de vista pessoal de qualquer pesquisador. Isto significa que os resultados não devem ser manipulados para que venham constituir uma concepção errônea da questão. Ainda, Chalmers [2], explica que os resultados experimentais estão sempre em constantes desafios. Portanto devem ser constantemente analisados, revisados, repensados, considerados irrelevantes ou até mesmo rejeitados, pois a base experimental da ciência é constantemente atualizada e transformada e nada tem a ver com a observação e/ou com à percepção humana. Desta forma, os experimentos devem ser construídos visando a obter dados significativos sejam qualitativos ou quantitativos. Não é objetivo deste estudo avaliar criticamente se as controvérsias, na ciência, podem ser resolvidas por meio de experimentos feitos de maneira científica e objetiva, pois os resultados provenientes de quaisquer experimentos podem levar a resoluções satisfatórias ou não. Mas é objetivo avaliar, do ponto de vista crítico, se os modelos experimentais, destinados ao ensino de Química para os Cursos de Engenharia, propostos neste trabalho, poderão desenvolver nos estudantes o conhecimento necessário ao entendimento dos princípios, das leis, dos métodos e das técnicas referentes à Química e sua interação com o ambiente. Os experimentos educacionais podem ser classificados em duas vertentes diferentes, produzidos ou manuseados pela pesquisa empírica e os utilizados de forma planificada e orientada. Os primeiros podem ser desenvolvidos para servir de base referencial e ancorar as atividades de reconstrução lógica, mediante o uso de códigos simbólicos. Os segundos estão subordinados ao interesse da própria pesquisa visando a elucidar os questionamentos e os desejos de procurar respostas através de investigação particular. Para alcançar os objetivos do ensino de Química, deixando que o discente descubra o conhecimento com base em seus próprios meios movido pela curiosidade ou, então, aprendendo por um experimento orientado e planificado. A proposta deste trabalho, segundo as idéias básicas de Giordan & Vecchi [3], consiste no desenvolvimento de um processo de aprendizagem com base na construção de modelos didáticos, utilizando equipamentos específicos ou até mesmo usando certos objetos do cotidiano, visando a criar nos experimentos as condições necessárias e fundamentais para que o conhecimento da Química Aplicada seja, ao mesmo, tempo crítico e sistêmico. Acredita-se que a maneira de pensar na Química Aplicada, associando os conceitos fundamentais da Química aos parâmetros que compõem um sistema amplo do conhecimento esteja intimamente ligada ao sentir ou ao imaginar os fatos observados, naturais ou induzidos, que fluem do experimento. Desse modo, as modificações ou transformações que podem ocorrer durante os experimentos devem gerar sinais, indícios, como por exemplo, as mudanças de cores e o aparecimento de odores (características bem definidas de algumas reações químicas), que magicamente podem envolver os estudantes na experimentação crítica, na busca desse sentimento. As mudanças de cores observadas numa reação química durante uma experimentação podem ser caracterizadas como uma imagem visual. Entretanto, está muito longe de ser uma réplica perfeita da imagem retiniana e mais longe ainda de ser cópia fiel e transparente do objeto real que está sendo visto. No entanto, os estímulos que impressionam a retina se convertem em um mosaico de pontos, por sua vez transmitidos ao cérebro por um complexo de células nervosas óticas para, logo em seguida, integrar-se com as conexões neuronais dos demais sentidos e as experiências sensoriais precedentes, antes de integrar a imagem consciente que fará parte do mundo real, com cor, forma, dimensões, perspectiva espacial, som etc. As percepções não são, pois, os simples reflexos das coisas. Cada nova percepção e cada nova aprendizagem se dão em cadeia no contexto de esquemas de aprendizagem construídos em sucessão. No desenvolvimento deste processo de aprendizagem, objetiva-se uma progressiva interpretação dos acontecimentos neuronais, pois existe a necessidade do desenvolvimento de uma série de parâmetros, tais como: busca ativa e progressiva, seleção, exploração e integração de novas experiências. Todos esses fatores visam a construir a mente consciente, que relaciona o conhecimento à visão crítica, item fundamental no processo de interação e interrelações entre a Química e o Cotidiano. O experimento intitulado água sanitária (solução com cerca de 2%, em massa, de hipoclorito de sódio, NaClO), por exemplo, foi o tema escolhido do cotidiano para representar o conhecimento das propriedades do ensino de Química, tendo em vista sua utilização variada, desde o uso na desinfecção generalizada ao branqueamento de roupas. CBE - 51
2. PRINCÍPIOS BÁSICOS DOS EXPERIMENTOS Com base na literatura referenciada e na experiência dos autores são propostas as diversas fases que os experimentos devem obedecer aos seguintes princípios e procedimentos gerais: as demonstrações devem ser apoiadas em experimentos que tenham grande valor pedagógico, permitindo que os estudantes tenham contato direto com química aplicada; os trabalhos práticos devem realizar-se individualmente ou em pequenos grupos; ilustrar e provar os princípios teóricos estabelecidos; procurar despertar no aluno a necessidade do desenvolvimento e do esclarecimento de mecanismos físico-químicos envolvidos em cada processo; orientar os alunos no sentido da pesquisa e do questionamento, dando-lhes experiência básica no tipo de medições físico-químicas, que conduzem a resultados qualitativos e quantitativos visando às relações com a química aplicada; estimular a busca incessante da inovação tecnológica, através de projetos especiais, e, se necessário, romper os rumos dos experimentos tradicionais; procurar estabelecer como meta a simplicidade das construções laboratoriais. 3. DESCRIÇÃO DO EXPERIMENTO O experimento água sanitária consta das seguintes fases: 3.1 Avaliação das diversas marcas de água sanitária comercial Nesta fase são avaliadas as várias marcas de água sanitária encontradas nos supermercados levando em consideração os seguintes parâmetros: especificação do rótulo; fabricante; volume; teor de cloro; preço. 3.2 Preparação em laboratório de água sanitária O objetivo desta fase é a preparação em laboratório de água sanitária (hipoclorito de sódio - HClO) através do borbulhamento de cloro (Cl 2 ) em solução de hidróxido de sódio como mostra a reação a seguir: Cl 2 + 2 NaOH NaClO + NaCl + H 2 O 3.2.1 Obtenção de cloro a partir da reação entre bióxido de manganês e ácido clorídrico A produção de cloro é obtida colocando-se 20 g de bióxido de manganês (MnO 2 ) e 120 ml de ácido clorídrico concentrado (HCl) no erlenmeyer. Em seguida adapta-se o coletor de cloro em um becher contendo 500 ml de solução a 1 % (em massa) de hidróxido de sódio. Após um aquecimento do erlenmeyer o cloro gasoso é deslocado e borbulhado numa solução de hidróxido de sódio (NaOH) para produzir a água sanitária conforme mostra o esquema da figura 1. CBE - 52
HCl Cl 2 MnO 2 + 4 HCl MnCl 2 + Cl 2 + 2 H 2 O Cl 2 + 2 NaOH NaClO + NaCl + H 2 O MnO 2 NaOH Figura 1 Obtenção de cloro e água sanitária 3.2.2 Obtenção de cloro a partir da eletrólise de solução de cloreto de sódio A obtenção de cloro (Cl 2 ) é realizada através da célula eletrolítica apresentada na figura 2. São colocados na célula 2 L de solução de 300 g/l de cloreto de sódio e a seguir são conectados os eletrodos à fonte de corrente contínua. O cloro que se desprende no anodo de grafite é borbulhado num becher contendo solução a 1 % de hidróxido de sódio formando a água sanitária. H 2 Cl 2 Reações: NaCl Na + + Cl - Anódica: 2 Cl - -2 e Cl 2 NaCl Cl 2 Catódica: 2 H 2 O+ 2e H 2 +2 OH - Cl 2 + 2 NaOH NaClO + NaCl + H 2 O Figura 2 Célula eletrolítica 3.3 Determinação quantitativa do teor de cloro presente em águas sanitárias comerciais A determinação do cloro baseia-se na dissociação iônica do íon hipoclorito (ClO - ) em meio ácido formando cloro (Cl 2 ) segundo a reação: 2 ClO - + 4 H + Cl 2 + 2 H 2 O O cloro livre formado na reação é determinado iodometricamente pela adição de iodeto de potássio (KI) e ácido sulfúrico (H 2 SO 4 ) à amostra de água sanitária conforme a reação: ClO - + 2 I - + 2 H + Cl - + I 2 + H 2 O CBE - 53
A quantidade de iodo liberado é equivalente ao cloro livre e pode ser titulada através de uma solução padrão de tiosulfato de sódio 0,1N (S 2 O 3-2 ) segundo a reação: 2 S 2 O 3-2 + I 2 S 4 O 6-2 + 2 I A análise da água sanitária comercial consta das seguintes etapas: primeiramente, é feita a diluição de uma amostra da água sanitária comercial, da seguinte forma: 10 ml da água sanitária são transferidos para um balão volumétrico de 100 ml e o volume restante é completado com água destilada; pipetar uma alíquota de 10 ml da solução diluída a ser analisada e transferir para um erlenmeyer; adicionar ao erlenmeyer 10 ml de uma solução de ácido sulfúrico a 10 % (em massa), 10 ml de iodeto de potássio a 20 % (em massa) e 5 ml de água destilada; gotejar a solução de tiosulfato de sódio através de bureta (figura 3) até que a amostra se torne amarelo claro; juntar 5 ml de solução de amido e continuar a gotejar até desaparecer a coloração azul; anotar o volume gasto e repetir novamente a titulação; calcular o teor de cloro livre na água sanitária com base na seguinte equação, a seguir: % Cl 2 = V 1 N 1 meqcl V 2 aliq V dil x100 onde, V 1 = volume de Na 2 S 2 O 3 gasto na titulação N 1 = normalidade da solução de Na 2 S 2 O 3 meqcl 2 = miliequivalente-grama = 35,5 x 10-3 V aliq = volume da alíquota para a diluição utilizada na titulação V dil = volume final a diluição da solução após a diluição Na 2 S 2 O 3 Reações envolvidas na titulação: 2 ClO - + 4 H + Cl 2 + 2H 2 O ClO - + 2 I - + 2 H + Cl - + I 2 + H 2 O 2 S 2 O 3-2 + I 2 S 4 O 6-2 + 2 I amostra Figura 3 Determinação do teor de cloro na água sanitária CBE - 54
3.4 Avaliação das propriedades químicas das soluções de hipoclorito de sódio A seguir, são apresentadas algumas propriedades da água sanitária: 3.4.1 Poder oxidante da água sanitária 1. Colocar 5 ml de água sanitária em tubo de ensaio e em seguida adicionar 5 ml de sulfeto de sódio (Na 2 S) e algumas gotas de ácido sulfúrico. Verificar o aparecimento do enxofre (S) em função das reações: 2 ClO - + 4 H + Cl 2 +2H 2 O ClO - + S -2 + 2 H + Cl - + S + H 2 O 2. Colocar 5 ml de água sanitária em tubo de ensaio e em seguida uma tira de papel de tornassol. Verificar a mudança de cor e posteriormente o descoramento da coloração. 3. Colocar 5 ml de água sanitária em um balão de separação e em seguida 20 ml de solução de iodeto de potássio (KI) e 20 ml de tetracloreto de carbono (CCl 4 ). Verificar a cor violácea que aparece na fase de tetracloreto de carbono. 3.5 Preparação do relatório Nesta etapa final os alunos devem preparar um relatório que contenha os seguintes tópicos: os métodos e tecnologias aplicadas à produção industrial de água sanitária, a descrição dos experimentos, as reações envolvidas, os resultados, as observações, uma análise crítica do experimento e as conclusões finais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme exposto anteriormente, o experimento água sanitária foi idealizado para mostrar e evidenciar os seguintes pontos: a facilidade operacional de instituir métodos analíticos de controlar a qualidade de produtos colocados à disposição das populações nos sistemas de vendas; a possibilidade de entender os mecanismos de produção industrial baseados nas escalas de laboratório; a visão da escolha de uma rota tecnológica de obtenção de um produto, seja química ou eletroquímica; a importância das propriedades oxidantes das soluções de hipoclorito de sódio. Com base nas experiências dos autores e na prática de aula pode-se concluir que o experimento água sanitária, faz uma ponte de ligação entre o cotidiano e o ensino das propriedades e das reações químicas envolvidas. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] P. C. Coelho Abrantes, Imagens de natura, imagens de ciência, Campinas, SP: Papirus, 1998, 247p. [2] A. Chalmers, A fabricação da ciência. São Paulo; Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994, 185p. [3] André Giordan & Gérard Vecchi, Les origines du savoir des conceptions des apprenants aux concepts scientifiques. Paris; Delachaux et Niestlé, 1994, 212p. CBE - 55