BuscaLegis.ccj.ufsc.br Violência doméstica e familiar contra a mulher e suas influências nas imunidades dos crimes contra o patrimônio Eduardo Luiz Santos Cabette * Em seu Título II o Código Penal Brasileiro trata dos "Crimes Contra o Patrimônio", apresentando os dispositivos respectivos divididos em oito capítulos. No derradeiro desses capítulos estabelece o Código Penal as "Disposições Gerais" dos crimes contra o patrimônio. Ali, respectivamente nos artigos 181 e 182, prevê as chamadas imunidades absolutas e relativas, especificamente referentes aos casos de crimes patrimoniais perpetrados entre cônjuges e pessoas ligadas por parentesco. No caso dos cônjuges na constância da sociedade conjugal e dos ascendentes e descendentes a imunidade é absoluta, já que em caso de cometimento de crimes patrimoniais entre eles o autor ficará isento de pena. De outra banda, nos casos de cônjuges em fase de separação judicial, irmãos e tios ou sobrinhos que coabitam, a imunidade é relativa, pois que somente determina a lei que a ação penal passe a depender de representação do lesado. Não obstante, essas imunidades não são aplicáveis de forma indiscriminada a todos os tipos penais patrimoniais ou em quaisquer circunstâncias. O artigo 183, I a III, CP, estabelece claros limites, vedando o alcance das imunidades: a)aos crimes patrimoniais praticados mediante violência ou grave ameaça (v.g. roubo, extorsão etc.); b)ao estranho que participa do crime; c)aos casos de crimes patrimoniais praticados, com ou sem violência ou grave ameaça, contra maiores de 60 (sessenta) anos.(1) Sabe-se que a Lei 11.340/06, conhecida como "Lei Maria da Penha", veio a regular os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal diploma teve o esmero de conceituar a violência doméstica e familiar, dividindo-a expressamente em cinco espécies: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral (artigo 7º, I a V, da Lei 11.340/06). Em face disso, já se aventa na doutrina a hipótese de que as imunidades entre cônjuges e parentes não teriam mais aplicabilidade quando se tratasse de violência patrimonial contra a
mulher, nos termos da Lei Maria da Penha (artigo 5º., I a III c/c artigo 7º., IV, da Lei 11.340/06). Este é o entendimento de Maria Berenice Dias ao asseverar: "A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que 'subtrair' objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f)".(2) Certamente esse pensamento pode ter como sustentação três pilares: a) O disposto no artigo 7º., IV, da Lei Maria da Penha seria esvaziado de tal forma pelas imunidades dos artigos 181 e 182, CP, que não passaria de letra morta, pois sempre que o parente ou cônjuge perpetrasse subtrações contra a mulher no contexto doméstico ou familiar, faria jus a alguma imunidade legal. Assim sendo, a única interpretação capaz de conferir efetividade à proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar de caráter patrimonial, seria aquela que admite a derrogação dos artigos 181 e 182, CP, pela Lei 11.340/06. b) Em estreita aproximação com o argumento anterior, restaria fundamentada a revogação parcial (derrogação) tácita dos artigos 181 e 182, CP, pela novel Lei Maria da Penha, de acordo com o disposto no artigo 2º., 1º., da Lei de Introdução ao Código Civil. Ora, na esteira do raciocínio desenvolvido a Lei 11.340/06 (lei posterior) seria "incompatível" com os dispositivos do Código Penal em destaque. Isso a partir da conclusão de que a subsistência dos artigos 181 e 182, CP, ensejaria o completo esvaziamento do conteúdo do artigo 7º., IV, da Lei Maria da Penha, conforme anteriormente demonstrado. c) Um derradeiro fundamento ainda poderia ser acenado como reforço aos anteriores. Trata-se da alteração promovida no seio das imunidades em estudo pelo Estatuto do Idoso, o qual, em seu artigo 95, vedou expressamente a aplicabilidade dos benefícios se a vítima for maior de 60 anos (vide artigo 183, III, CP). Se a lei protetiva dos idosos assim operou, conclui-se que a lei protetiva das mulheres teria a mesma inspiração e conseqüências.(3) Ocorre que, embora a argumentação acima expendida possa aparentar certa coerência lógica, é, na verdade, prenhe de equívocos. Iniciando pelo último argumento, tem-se que este é realmente o mais frágil, pois não se pode extrair a "mens legis" de um diploma legal através de outro. É bem verdade que a chamada "interpretação sistemática" é bastante profícua e proporciona uma completude e coerência do ordenamento jurídico. Também é inegável que a Lei 11.340/06 (art. 13) faz expressa referência às disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) e do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) como complementares à legislação protetiva da mulher. Não obstante, o fato do Estatuto do Idoso afastar as imunidades expressamente não
pode ser transplantado a fórceps para o bojo da Lei Maria da Penha. Ocorre que se o legislador realmente a isso visasse, bastaria haver procedido à previsão expressa, como fez no outro diploma. Por outro lado, a impressão de que as imunidades do Código Penal esvaziariam o conteúdo do artigo 7º., IV, da Lei 11.340/06 não passa de miragem. Na verdade, a violência patrimonial contra a mulher poderia ser objeto de repressão penal regular em muitos casos em que as imunidades não têm atuação. Senão vejamos: 1) Em todo caso de vítima idosa, ainda que se tratem de crimes perpetrados sem violência ou grave ameaça (artigo 183, III, CP); 2) Em todos os casos de crimes patrimoniais praticados por meio de violência real ou grave ameaça (v.g. roubo, extorsão etc.) (artigo 183, I, CP); 3) Mesmo nos casos de crimes praticados sem violência ou grave ameaça contra vítima não idosa, desde que se refiram às imunidades relativas do artigo 182, CP, considerando que a vítima manifeste seu interesse na persecução criminal do autor da infração. Desse modo, cai por terra também o argumento da suposta revogação tácita parcial (derrogação) nos termos do artigo 2º., 1º., da Lei de Introdução ao Código Civil. A Lei 11.340/06 jamais derrogou "expressamente" as disposições do Código Penal sob comento. Também é nítido que não tratou inteiramente da matéria ali regulada. Ademais, em face do amplo espaço deixado para a efetiva atuação do disposto no artigo 7º., IV, da Lei Maria da Penha, conforme antes demonstrado, resta claro que inexiste incompatibilidade com os artigos 181 e 182, CP, podendo referidos mandamentos legais conviverem harmonicamente sem qualquer prejuízo considerável. Em arremate, afigura-se oportuna a transcrição da lição de Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho acerca da revogação tácita por incompatibilidade de leis no tempo: "Os comentadores acentuam que, inquestionavelmente, se trata de uma incompatibilidade formal, absoluta, de uma impossibilidade de aplicar, contemporaneamente, a uma determinada relação jurídica, a lei antiga e a nova. Pondera Fiore que, quando a lei nova é, diretamente, contrária ao próprio espírito da antiga, deve entender-se que a ab - rogação se estende a todas as disposições dessa, sem qualquer distinção. No caso contrário, cumpre examinar, cuidadosamente, quais as disposições da lei antiga, que se mostram absolutamente incompatíveis com a nova; o que, apenas, se deve admitir quando a força obrigatória só é possível, reduzindo a nada as disposições relativas da lei antiga: 'posteriores leges ad priores pertinenti nisi contrariae sint'. Quando seja duvidosa a incompatibilidade, será o caso de interpretar as duas leis,de modo que se faça desaparecer a antinomia, não sendo admissível uma ab - rogação por presunção".(4) Migrando para outro questionamento passível de surgimento com o advento da Lei Maria da Penha, deve-se indagar se o disposto no artigo 181, I, CP, é abrangente de casos de uniões homoafetivas.
É sabido que os cônjuges podem ser beneficiados pela imunidade ali expressamente prevista. O que se indaga agora é se, com o surgimento da Lei 11.340/06, a qual, em seus artigos 2º. e 5º., Parágrafo Único, empresta evidente proteção às uniões homoafetivas femininas, estariam as uniões homoafetivas em geral abarcadas pela imunidade legal do artigo 181, I, CP, por analogia "in bonam partem". Não é novidade o reconhecimento por parcela da doutrina da equiparação em relação à união estável heterossexual, por força dos dispositivos constitucionais a ampliarem sobremaneira o conceito de "entidade familiar" (artigo 226, 3º., CF). Aliás, tal equiparação tende a ser legislada, já que o projeto de reforma do Código Penal (1999) inclui na imunidade de forma expressa os casos de companheirismo e união estável.(5) Retomando a questão específica das uniões homoafetivas, entende Maria Berenice Dias que a Lei 11.340/06 as reconheceu expressamente como "família", ao determinar a incidência de seus dispositivos protetivos à mulher, "independentemente da orientação sexual (arts. 2º. e 5º., Parágrafo Único)".(6) É inegável que razão assiste à autora, pois para fins de violência "doméstica e familiar" contra a mulher há clara equiparação das uniões homoafetivas femininas a outras entidades familiares. Mas, persiste a dúvida quanto aos efeitos desse reconhecimento da Lei Maria da Penha em relação ao restante do ordenamento jurídico. Estaria a Lei 11.340/06 chancelando para todos os fins a união homoafetiva como entidade familiar? Se a resposta for positiva com referência a esta ou talvez a alguma lei vindoura que o faça de forma mais explícita, parece-nos que aqueles unidos por laços homoafetivos que convivam em união estável devem ser beneficiados pela imunidade do artigo 181, I, CP, por analogia favorável.(7) Entretanto, seja por falta de respaldo constitucional, diversamente do que ocorre no caso das uniões estáveis heterossexuais, seja porque a Lei Maria da Penha não é explícita quanto a seus efeitos além do âmbito da violência doméstica ou familiar contra a mulher, parece que o espectro de sua influência deve ser restringido às circunstâncias especiais a que se refere. Portanto, a nosso ver, a partir da Lei Maria da Penha, por força de seus artigos 2º. e 5º., Parágrafo Único, a união estável homoafetiva feminina pode ser equiparada a entidade familiar, de maneira que é abrangida pela imunidade prevista no artigo 181, I, CP. No entanto, a união estável homoafetiva masculina não é abrangida pela Lei 11.340/06, de forma que não há sustentação para reconhecer sua equiparação a entidade familiar em qualquer diploma legal vigente e, assim sendo, não pode ser abarcada pela imunidade acima citada. Essa interpretação pode ensejar a objeção de que violaria o Princípio Constitucional da Igualdade, objeção esta, aliás, já oposta por parte da doutrina à Lei 11.340/06 como um todo(8) de forma absolutamente equivocada, pois que na verdade "a Lei Maria da Penha é
constitucional porque serve à igualdade de fato e como fator de cumprimento dos termos da Carta Magna".(9) Não somente à mulher como também às crianças, adolescentes e idosos é justificável a reserva de um tratamento protetivo e especial, de modo a ensejar uma igualdade efetiva por meio da conhecida fórmula de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Quem sabe um dia, por meio de ações afirmativas como as preconizadas na Lei 11.340/06, as mulheres brasileiras superem realmente os anos e anos de submissão, violência, preconceito e exclusão a que foram historicamente submetidas e, só então, se poderá pensar em suprimir tratamentos diferenciados e protetivos hoje ainda necessários. Nesse dia certamente as mulheres ficarão satisfeitas e orgulhosas de poderem abrir mão de proteções especiais de que não mais serão carecedoras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: RT, 2007. ESPÍNOLA, Eduardo, ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Volume 1º. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Especial. São Paulo: RT, 2005. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 2º. Volume. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 2ª. ed. Niterói: Impetus, 2006. TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2003. PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2003. MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007. SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio, FONSECA, Tiago Abud da. A aplicação da Lei 9099 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim IBCCrim. n. 168, nov., 2006, p. 4-5. SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violência doméstica. Disponível em www.ibccrim.org.br, acesso em 18.05.2007.
-------------------------------------------------------------------------------- Notas: 1 - Dispositivo acrescentado pela Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso). 2 - A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: RT, 2007, p. 88-89. 3 - Op. Cit., p. 52. 4 - A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Volume 1º. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 63-64. 5 - PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Especial. São Paulo: RT, 2005, p. 628. Ver ainda, no mesmo sentido, reconhecendo a imunidade para as uniões estáveis: JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 2º. Volume. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 515. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 2ª. ed. Niterói: Impetus, 2006, p. 400-401. TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 510. Em contrário, afastando a imunidade nos casos de união estável: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 418. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 603. PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 782. MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 354. 6 - Op. Cit., p. 44. 7 - Note-se que essas equiparações para a imunidade do artigo 181, I, CP, são foco de controvérsia doutrinária, conforme demonstrado na nota anterior (n. 5). Ocorre que nos filiamos à possibilidade de equiparação para a união estável heterossexual, de modo que, coerentemente, assumimos o mesmo critério para as uniões homoafetivas que venham a ser chanceladas pela legislação brasileira. 8 - Neste sentido: SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio, FONSECA, Tiago Abud da. A aplicação da Lei 9099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim IBCCrim. n. 168, nov., 2006, p. 4-5. SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violência doméstica. Disponível em www.ibccrim.org.br, acesso em 18.05.2007. 9 - DIAS, Maria Berenice. Op. Cit., p. 56. * Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor na graduação e pós graduação da Unisal nas matérias de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial.
Disponível em: < http://www.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&id=37004 > Acesso em.: 11 jun. 2007.