A COBRA VAI FUMAR: A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA POR MEIO DE AUDIOVISUAIS, SESSENTA ANOS DE CRIAÇÕES.



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Transcrição:

Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APERJ Praia de Botafogo, 480 2º andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 A COBRA VAI FUMAR: A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA POR MEIO DE AUDIOVISUAIS, SESSENTA ANOS DE CRIAÇÕES. Marcos Antonio Tavares da Costa INTRODUÇÃO Entre 1943 e 1945, o Brasil participou ativamente da Segunda Guerra Mundial por meio do envio de uma força expedicionária composta por 25000 homens, para os campos de batalha da Itália, enquadrada sob o V Exército Americano. A FEB (Força Expedicionária Brasileira) foi marcada por diversos contratempos de ordem política, no que diz respeito a sua formação e viabilidade prática; de ordem social, devido aos problemas com os homens que a formariam, muitos com deficiências de saúde e poucos voluntários; de ordem econômica, pelos enormes gastos que adviriam com a participação; e de ordem cultural, em fazer com que a população acreditasse na necessidade daquele envio. A pouca disponibilidade de meios de comunicações que retratassem em curto espaço de tempo os acontecimentos que envolviam a FEB, fez com que o rádio, os jornais, os boletins oficiais e as cartas fossem os elementos difusores das informações aos brasileiros. Após a campanha e a volta da FEB em setembro de 1945, o governo de Getúlio Vargas, por meio do Departamento de Imprensa e Propaganda, reuniu todo o material cinematográfico sobre essa participação do Brasil. Começava então, um caminho de criações com recursos de audiovisuais sobre esse assunto. O objetivo deste artigo é realizar uma análise dos audiovisuais feitos no Brasil que retratam a participação da FEB durante a Segunda Guerra Mundial. Apontando suas principais características e qual as suas importâncias para o entendimento da população sobre esse assunto, ao longo dos sessenta anos após o término do conflito. 1. O DIP E A FEB Durante todo o processo que envolveu a formação, treinamento e participação da FEB nos combates da Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas procurou tirar seu devido proveito político.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 Com a intenção de desfazer sua imagem de fascista criada ao longo de mais de 10 anos no poder e reforçada pelo autoritarismo do Estado Novo. Para promoção de sua imagem, bem como o controle dos meios de comunicação, seu governo utilizou amplamente o DIP ( Departamento de Imagem e Propaganda), criado em 1939, mas que foi precedido de outros órgãos de propaganda política. O DIP chegou a controlar 60% de todos os tipos de publicações do país, contratava diversos fotógrafos, jornalistas, cineastas ou outros profissionais da área para que executassem com o máximo de competência, tarefas como a de construir uma imagem nacional como uma terra bem-aventurada, exaltando as riquezas naturais e o culto ao poder. Logo após o final da guerra, já no governo Dutra, o fotógrafo e cineasta francês, Jean Manzon, que havia feitos alguns trabalhos contratado pelo órgão, recebeu a incumbência de produzir um amplo documentário sobre a segunda guerra, enfocando a participação febiana. Este como outros muitos documentários, produzidos ou não pelo DIP (ou os outros órgãos antecessores), tinham como endereço a exibição em cinemas e salas de projeção, em partes, no estilo de cinejornais ou na íntegra. Desta forma, a amplitude de sua divulgação era formidável, não só para quem via a película, mas também por essas pessoas que passavam oralmente para outras, sua impressões da guerra, que eram sempre compreendidas como a verdade. Manzon utilizou muitas cenas de outros documentários estrangeiros, tomando-os como se fossem acontecimentos ocorridos com o Brasil Quando não havia tais imagens, realizava montagens, às vezes grosseiras, para atingir seu objetivo de envolver o público para a gravidade da situação e para a justificativa da participação do Brasil. A imagem do país como terra rural, pacífica, com abundância de alimentos vindos do campo, em consonância a uma trilha sonora alegre, proporcionaram um aspecto simpático ao nosso país, contrastando com as imagens sisudas e marciais que representam a Alemanha, onde são evocados os sentimentos nazistas, segundo Manzon, de culto à beleza, à militarização, inclusive de crianças, e a produção industrial. Jean Manzon dessa forma coloca o Brasil e a Alemanha como os dois opostos na história, o rural e o industrial, o inocente e o voraz, o fraco e o forte, o bem e o mal. Erros históricos, o enaltecimento do povo e o superdimensionamento da participação da FEB estavam sempre presentes no documentário. O afundamentos dos navios mercantes do Brasil como motivação para a guerra sem mencionar o alinhamento brasileiro com os americanos, acertado pelo menos seis meses antes do primeiro navio ir à pique, em fevereiro de 1942, são por demais simplistas, mas tinham a finalidade de tornar a causa justa e promovida pela vontade soberana do país, e não pela

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 ingerência dos EUA, apesar da influência dos americanos no Brasil, politicamente, economicamente e culturalmente. A partir deste momento o Brasil é retratado como uma nação unida em torno do ideal de resgatar o orgulho ferido pelos ataques. O povo nas ruas pedindo a entrada na guerra nos aproxima dos outros países beligerantes, como o próprio EUA e a Inglaterra, em que suas populações entenderam aquele momento como o dever de cada indivíduo. A segurança e o futuro seriam herança do que fosse feito por aquela geração. Os acontecimentos mostraram que o mesmo povo que gritou pela guerra, composto principalmente de estudantes e políticos influentes, não foi o mesmo que embarcou para a Itália. O mesmo grau de comprometimento para reivindicar uma tomada de posição frente às ações de Hitler, não foi visto quando o país precisou de pessoas para o conflito. Em relatos colhidos aos veteranos da FEB, constata-se que apesar do Brasil possuir na sua Seção Especial, que tratava de atividades de apoio aos pracinhas, uma equipe de documentação cuja principal atividade era fotografar e filmar o desenrolar do conflito e as missões atribuídas aos brasileiros, isso não era feito a contento, pois com receio de estarem perto do front, onde obviamente o perigo de morte era muito maior, esta equipe realizava seu trabalho junto aos elementos que atuavam na retaguarda da FEB, como a artilharia, os cozinheiros, as enfermeiras, os generais. Pessoas que tiveram suas importâncias na guerra, mas não são representativas do que mais foi digno na participação dos veteranos, que seria justamente as atividades dos elementos que atuaram na frente, próximo ao inimigo. Com esse material trazido da Itália e dentro das orientações do DNI (Departamento Nacional de Informações), estatal que sucedeu o DIP, em maio de 1945. Manzon pouca fala dos problemas de seleção do pessoal, como poucos voluntários e muitos problemas médicos; do treinamento feito no Brasil e que teve pouco resultado, já que tudo, inclusive armamento, só seria recebido dos americanos quando os brasileiros estivessem no campo de batalha; das dificuldades que os pracinhas encontraram na Itália, com uma alimentação diferente, um uniforme (feito no Brasil) que era ruim e de pouca adaptabilidade com o rigoroso inverno italiano; e dos revezes que causaram muitos mortos e feridos. Seu documentário é amplo ao mostrar muitas demonstrações de ordem unida e desfiles, afirmar que a tropa estava sendo bem tratada e alimentada, de atividades ocorridas sempre na retaguarda, como almoços, visitas de autoridades e cultos religiosos. Pouco se vê de combates na frente, dos homens e suas dificuldades, dos problemas que surgiram, mas que foram resolvidos, dando um aspecto que tudo que ocorreu com FEB foi perfeito, que nossos homens eram os melhores, que a nossa participação foi decisiva para o fim da guerra, como afirmar o narrador.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 Exibido para um grande parcela da população, inclusive no segundo governo Vargas, ficou-se uma imagem negativa desta participação, com as pessoas não acreditando naquele faz de conta criado por Manzon. Afinal, onde estava o país que derrotou os nazistas? se nos encontrávamos no mesmo nível de desenvolvimento e de importância na cenário mundial, sendo que após a guerra as atenções americanas para a América Latina, marcada pela política da boa vizinhança do início dos anos 40, nada mais era do que uma lembrança. Se a FEB foi importante, por que foi dissolvida em plena Itália? E seus homens, muitos loucos e entregues à bebida, por que foram esquecidos? Os erros históricos permaneceram sendo exibidos e tornaram-se para muitos, verdades. Os pais que viram o documentário de Manzon contaram para seus filhos, que se não viram aquelas imagens, contaram assim mesmo para seus filhos. A FEB tornou-se aquilo de o DNI vinculou, fazendo com que até os próprios febianos acreditassem naquela criação. Para as Forças Armadas, que nunca estiveram unidas e solidárias aos que foram combater na Europa, não interessou uma versão mais realista, centrada no que foi mais importante na campanha. A preocupação dos que não foram à guerra era de não tocar no assunto, com medo se serem preteridos pelos ex-combatentes que vieram da Itália mais experientes e adestrados. 2. HOLLYWOOD NÃO É AQUI A indústria norte-americana do cinema participava da documentação dos acontecimentos que envolvessem as forças armadas de seu país, seja com pessoal que trabalhava ou trabalhou em estúdios de cinema, seja com o now-how para a produção dos documentários. Mas o mais importante do espírito de levar o cinema para a guerra era deixar a câmera próxima do perigo. Não havia o medo em estar no front, perto dos tiros, das granadas de artilharia, vendo as armas cuspirem o fogo quando disparadas, corpos caindo feridos ou mortos e ver o medo no rosto dos homens. O americano levava a sério esse trabalho para que os militares pudessem verificar suas ações, estudá-las e diminuir seus erros, o que os possibilitava maiores sucessos nas próximas batalhas. Documentários feitos pelo setor de defesa dos EUA, como D Day, que trata sobre a grande invasão aliada no litoral francês, no dia 06 de junho de 1944, e Batalha de San Pietro, sobre a conquista da localidade italiana de mesmo nome, foram alguns dos que se tornaram os paradigmas do que viria a ser entendido como a segunda guerra, pelo menos para os americanos. De visões como as que ficaram desses documentários, vieram filmes como O mais longo dos dias, sobre o Dia D ou A ponte do rio Kwei, onde os americanos e ingleses são vistos como heróis salvadores do mundo. E

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 nenhum dentre tantos filmes feitos após esses sessenta anos, nenhum! Menciona a participação brasileira. Aqui no Brasil documentários militares tinham sua exibição restrita apenas às escolas ou quartéis, pelo seu caráter documental e como meio de instrução, mas os filmes de guerra estiveram sempre presentes, mesmo antes da FEB existir. A comparação entre o que era visto e entendido como verdadeiro nos filmes sobre americanos, alemães, japoneses e ingleses com o que foi feito sobre FEB, que era o documentário de Manzon, era inevitável. Enquanto os aliados e os inimigos eram ação, combates, tiros e superação, os brasileiros estavam sendo alimentados na retaguarda, sendo cuidados por enfermeiras ou realizando desfiles militares. Para o cidadão comum que teve apenas esse contato sobre o que foi a guerra para o Brasil, a comparação fulmina qualquer entendimento sobre uma participação positiva. Os anos se passaram, mas tanto para o cinema americano quanto para o brasileiro, os paradigmas continuam. Filmes-documentários como Band of Brothers, feito baseado em história oral dos americanos que participaram do Dia D ou O resgate do Soldado Ryan são ainda sobre o heroísmo e a superação. No Brasil, Manzon ainda é a fonte para todos os documentários ou filmesdocumentários, a diferença agora é que seu material não é somente utilizado para a exaltação daquele momento, mas também para contundentes críticas. Em 1990, Sylvio Back utilizou os arquivos cinematográficos de diversas instituições, como a Cinemateca Brasileira (SP) e os cine jornais do Exército americano, e também o mesmo material que Manzon havia usado em seus documentários e fez Rádio Auriverde- a FEB na Itália. As imagens de soldados na retaguarda, dormindo, alimentando-se ou em momentos de descontração, aliadas a uma sonoplastia irônica usada em montagem, não só reforçou a idéia de a FEB ter tido uma desastrosa campanha, mas ofuscou, para muitos que assistiram, a imagem de uma participação que se não foi brilhante, foi digna para o contexto que se enquadrava. Ainda que muitas de suas afirmações serem verdadeiras, como por exemplo, o fato de que a inspeção de saúde no Brasil ter sido mal feita, levando aos médicos americanos arrancarem mais de 17000 dentes (na verdade foram quase 20000) dos 5000 homens que compuseram o primeiro escalão, Back omite tudo que foi positivo, tornando por demais parcial, perdendo a oportunidade de criar um estilo novo de tratar deste assunto. Em 2002, com A cobra fumou o diretor Vinícius Reis teve talvez a intenção de homenagear os veteranos, trabalhando somente com a memória, deixando de lado as antigas imagens de Manzon. Porém, o que é normal em muitos que querem desenvolver algum trabalho sobre a FEB, entrevistou pessoas que não viveram intensamente todo o processo de formação ou não estiveram no front. Ao

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 prestarem testemunhos, enfermeiras, artilheiros ou elementos do depósito de pessoal, Reis perdeu o foco, que era dar a chance às novas gerações, de conhecerem uma parte da história do Brasil por meio das poucas pessoas ainda vivas que estiveram na guerra. Para complicar, a narradora do filme era Bete Mendes, que foi perseguida política e guerrilheira nos anos de chumbo. Vale lembrar algo sobre o documentário sobre a FAB (Força Aérea Brasileira) e sua participação na guerra, feito por Erik de Castro, em 2000. Senta a púa foi mais charmoso e autêntico. Apesar de superdimensionar os feitos de seus aviadores, o trabalho mostrou todo o longo processo que envolveu o grupo de quarenta e nove pilotos, desde o recrutamento, passando o treinamento e a fim da guerra, tudo por meio de história oral, priorizando os seus protagonistas. A esquadrilha Senta a púa não fez parte da FEB, ainda que tenham atuado na conquista de Monte Castelo. Logo, para os homens da terra, ainda falta um trabalho que seja digno de retratar nossos veteranos. 3. A FEB PELOS MILITARES O Exército Brasileiro, desde o período dos governos militares, procura por meio de seu Centro de Comunicação produzir documentários sobre a FEB como forma de enaltecer os seus feitos, lembrar a última participação da força armada em um conflito e perpetuar heróis para servirem de exemplo para os militares mais jovens. No final dos anos 70, Reminiscências da guerra utilizando as memórias dos veteranos e as imagens de Manzon, conseguiu fazer um trabalho muito interessante, abordando não só a participação em si, mas também a cooperação militar entre o Brasil e os EUA. A maioria dos entrevistados eram generais de carreira, brasileiros e americanos, que estiveram nos altos posto de comando. Isso era tônica dos governos militares, onde era regra dar a palavra ao mais graduado em detrimento do mais humilde. O documentário é valioso por ter o testemunho do já falecido general Mark Clark, excomandante do V Exército Americano, onde a FEB esteve enquadrada. Clark é lembrado pelos veteranos pela sua dinâmica e capacidade de compreender a responsabilidade que a FEB carregava em não fracassar nos campos da Itália. O Exército por meio dos chamados vídeo-revistas divulga atualmente esse material em escolas militares, nos quartéis, em emissoras de televisão, em encontros de filmes militares, geralmente acontecidos na Europa, e em atividades de comemoração aos principais aniversários da FEB, que são 21 de fevereiro (tomada de Monte Castelo) e 08 de maio (dia da vitória). Desde o fim dos governos militares, a Força Terrestre tem procurado dar a oportunidade aos veteranos de menor patente e

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 também qualquer outro integrante, inclusive seus familiares. Tal atitude aproxima a instituição e a FEB daqueles que são parte do povo mais humilde e que carregam a maioria da população. O último trabalho foi produzido em 2005, para lembrar os sessenta anos do fim do conflito. Apesar da mudança de foco destes documentários, onde a fidalguia deu lugar ao homem comum, a exaltação aos feitos e a omissão dos erros cometidos durante todo o processo, bem como a permanência da idéia em não separar os testemunhos dos homens que estiveram nas atividades de apoio, baseados quase sempre a 20 quilômetros `a retaguarda do front, ou seja, daqueles que estiveram mais próximos da morte e do inimigo alemão, faz com que o trabalho seja sem dúvida democrático, mas deixa a imagem de que a FEB foi mais apoio a população e à alguns poucos soldados que estavam na frente, do que o que aconteceu, onde 15000 homens realmente lutaram tiro à tiro com um dos exércitos mais poderoso que já existiu. Manzon continua tendo suas imagens utilizadas nesses audiovisuais. Portanto, mesmo após sessenta anos, mesmo mudando-se o enfoque narrativo e que as informações sobre a FEB e sobre o conflito estejam a um click no mouse do computador, tudo disponível pela Internet. Para a maioria do povo, a FEB é aquilo que Manzon mostrou seis décadas atrás. CONCLUSÃO A visão do que foi a FEB para a maioria dos brasileiros continua distorcida. Poucos são os que entendem que mais do que uma participação vencedora na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados, sua importância está nas barreiras sociais, políticas e culturais que foram transpostas para que tudo não passasse de uma tentativa, como foi o caso da 1ª Guerra. Não é justa a comparação com os americanos ou os alemães, como é feita por muitos críticos e até historiadores renomados, levando a grande parcela do povo a desconhecer o que realmente foi feito ou, no caso do artigo em questão, compará-los com os heróis das telas de cinema, misturando com isso a realidade com a ficção. As imagens utilizadas por Manzon não foram as ideais para um documentário mais digno a FEB, mas são o que existe de mais importante para a nossa memória sobre o assunto. Nosso pensamento cultural, aliado ao temor das equipes de filmagem na guerra, fez com que os momentos de descontração, onde os homens tocavam em rodas de samba ou sorriam para as câmeras, fossem melhor explorados do que os combates que se desenrolavam às vezes mais de 15 quilômetros à frente. O caminho para a utilização dessas imagens não é a comparação com o que há em filmes comerciais, como já disse. A peculiaridade em nossa participação, o que fez a diferença dos brasileiros para os outros está justamente que eles levaram para a guerra, em meio a um ambiente europeu, com

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 fardamento, equipamento e armamento americanos, uma ingenuidade em continuar a serem eles mesmos, a cantar e criar suas músicas, a aproveitar os momentos únicos, como o de brincar com a neve ou jogar futebol, em sorrir para um desconhecido e para as lentes de um fotógrafo ou cineasta, enfim de não esquecerem de que eram os singulares brasileiros.