RESENHA DE LIVROS. volume 4 número
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- Kevin Eduardo Santiago Bacelar
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1 sistema a que ela pertence. O A. não recusa esta tese, pois não recusa a aplicação da noção de verdade em filosofia. Ele apenas pondera que não devemos aplicá-la em história da filosofia (p. 623). Contrariamente ao filósofo, o historiador da filosofia trata de teses filosóficas e não de verdades filosóficas. É por essa razão que o historiador move-se internamente a um complexo de teses ou de conceitos próprios a um determinado sistema filosófico. Na verdade, com essas afirmações o A. está retomando discussões anteriores tidas com C. Panaccio e H. Pasqua sobre o relativismo em filosofia. Dizer, como parece ter pretendido o A., que o sentido de uma tese somente pode ser determinado internamente a um sistema, implica a impossibilidade da prática do historiador. Visando evitar este perigo, o A. opta por uma noção mais fraca de relativismo. O historiador da filosofia não deve negar a continuidade semântica entre o que foi afirmado pelo autor medieval X e o enunciado p apresentado como tendo sido afirmado por X. Essa continuidade é mesmo pressuposta por uma atividade cujo objetivo é compreender do que trata um determinado enunciado e que busca reconstruir a sua gênese. Como apêndice, Marc Geoffroy propõe uma nova tradução de duas versões árabes da Quaestio 1.11a de Alexandre de Afrodísia sobre a natureza do universal e de três seções (I, 5 ; V, 1-2) da Metafísica do Sifâ de Avicenne. Alfredo C. Storck CHARLES KAHN, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser. Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga (Depto. de Filosofia da PUC-Rio), Rio de Janeiro, Tradução de Maura Iglésias e outros. 227 páginas. 148 Haveria, no registro ordinário, pré-filosófico da língua grega, alguma peculiaridade no uso do verbo ser que se revelasse fundamental e imprescindível para a compreensão da ontologia dos filósofos clássicos? E, no caso em que houvesse, ela determinaria uma natureza intrinsecamente limitada e mesmo paroquial de tal ontologia, que, diante desse quadro, seria assim incapaz de validar suas pretensões fora de seu domínio original? Essa é a questão sobre a qual se debruçou, durante anos, Charles Kahn, tendo inclusive dedicado-lhe um livro inteiro, The Verb Be in Ancient Greek, O volume que o Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga da PUC-RJ nos apresenta, porém, consiste numa série de artigos, inteligentemente dispostos
2 RESENHA DE LIVROS em ordem cronológica, pelos quais se desenha um notável itinerário, em que podemos acompanhar o aprimoramento progressivo das formulações e resoluções propostas por Kahn. O desafio inicial de Charles Kahn foi defender a ontologia grega contra adversários severos de diferentes tipos: os que negavam qualquer validade universal à ontologia grega clássica dado o seu enraizamento numa língua particular (o relativismo lingüístico e a gramática profunda, p , ), e os que a acusavam e talvez ainda a acusem de deslizes falaciosos entre diferentes acepções do verbo ser, as quais ou nem sequer teriam sido percebidas em sua mútua diversidade, ou teriam sido subrepticiamente ignoradas em favor de preconceitos filosóficos duvidosos (certa tradição da filosofia analítica, p. 37, 160). Kahn inicialmente parece ter se preocupado com alguns problemas específicos de filologia histórica e com algumas objeções filosóficas mais peculiares. De um lado, tratava-se de argumentar, contra Stuart Mill e certa tradição ligada ao positivismo lógico, que a ontologia grega em geral não comete, no próprio ato de seu surgimento, uma falácia simplória na confusão entre os usos existencial e copulativo do verbo (p. 3-4, 37, 160, 205). De outro lado, do ponto de vista da filologia histórica, tratava-se de argumentar contra a tese de Meillet e Brugman, assumida pela ortodoxia tradicional (p. 44-5, 156-9), segundo a qual o valor existencial do verbo ser seria historicamente o seu sentido mais primitivo, ao passo que a noção abstrata de cópula teria surgido apenas tardiamente, com conseqüente abandono do sentido concreto original. Mas essas duas linhas de argumentação se encontram num terceiro centro de interesse: mostrar que a ausência de um termo especial para designar o conceito de existência de modo algum pode ser acusada como causa das pretensas falácias que se imputam aos antigos (p ). Finalmente, talvez a grande questão de Kahn possa ser vista como um desenvolvimento natural de uma preocupação presente já no primeiro artigo ( O Verbo Grego >Ser= e o Conceito de Ser, 1966), a saber, mostrar que não há uma correspondência um-a-um entre distinções gramaticais e distinções semânticas (p. 4-5): isto é, uma mesma construção gramatical poderia ou até mesmo deveria comportar uma diversidade de funções lógicas, assim como uma mesma função lógica poderia ser expressa em mais de um tipo de construção sintática. A língua grega de fato dispunha de um mesmo e único verbo B o einai B para o desempenho de diversas funções lógico-lingüísticas. Sob o pressuposto de que tais funções deveriam ser rigorosamente distinguidas e mesmo separadas (inclusive por uma notação absolutamente unívoca), poder-seia talvez imputar confusão aos filósofos gregos. No entanto, longe de ser vista como lamentável fonte de embaraço ou de falácias simplórias, essa situação da língua grega ordinária é concebida por Kahn como uma notável vantagem: dispondo de um único e mesmo verbo com ocorrências sobredeterminadas, a ontologia grega teria adquirido força justamente por articular de imediato questões que se tornam desarticuladas na posteridade. A questão da existência, assim como a teoria da proposição, nasceriam para os gregos já (e unicamente) sob a forma da questão sobre os volume 4 149
3 150 princípios do conhecimento verdadeiro. E uma das razões disso seria o fato de que, na língua grega ordinária, o verbo ser teria como significado primitivo um valor veritativo capaz de incluir, de um só golpe, um desdobramento copulativo e uma dimensão existencial. O valor mais básico e imediato do verbo ser se encontraria nas construções absolutas em que seu conteúdo lexical poderia ser traduzido como é verdade, é o caso ; no entanto, essas construções absolutas com sentido veritativo poderiam (ou deveriam) ser facilmente desdobradas em construções predicativas nas quais estaria incluída a postulação de que existe a coisa a respeito da qual se pretende afirmar algo verdadeiro. E isto porque o sujeito dessas construções absolutas, não obstante ser gramaticalmente simples, seria sempre um fato complexo, analisável numa proposição com a forma predicativa habitual (cf. p ). Já no primeiro artigo ( Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser, 1966) Kahn articula com admirável força essa tese central, que irá recebendo sucessivamente maior precisão e apuro. Kahn afirma que o objeto da ontologia grega, o ente, é concebido primeiramente como objeto do discurso e do conhecimento verdadeiro (p. 26): aquilo que é verdade, aquilo que é o caso. Mas, de acordo com o uso sobredeterminado do verbo a partir do sentido veritativo mais primitivo, to on, ao invés de designar apenas coisas simples, designaria também de maneira geral fatos com estrutura proposicional (p. 26), isto é, fatos complexos cuja existência, longe de ser analisada de maneira abstrata como simples ato de existir, seria imediatamente concebida como uma conexão de determinações, exprimível na fórmula predicativa S é P. Dentro desse quadro, a pergunta inicial da ontologia grega seria: como a realidade deve ser, para que o conhecimento e o discurso verdadeiro (ou falso) sejam possíveis? (p. 102). Viriam ainda completar esse painel duas características do verbo ser exploradas sobretudo (mas não exclusivamente) por Platão, a saber: o seu aspecto estático-durativo, em contraste com o verbo gignesthai ( tornar-se, vir a ser ) e certa nuança de seu aspecto veritativo, enriquecido pelo contraste com phainesthai ( parece ser o caso ). Parte fundamental da estratégia de Kahn, assim, consiste em mostrar que o conceito de existência, tal como formulado pela reflexão dos medievais e incorporado na tradição da filosofia ocidental, não se apresentou para os gregos como um tópico relevante para a investigação filosófica. Kahn dedica um artigo inteiro a essa questão ( Por que a existência não emerge como um conceito distinto na filosofia grega?, 1976). Apenas com o advento da sofística emergiria na Grécia antiga uma preocupação com a noção abstrata de existência (p ). Não sucede, porém, que os gregos tenham ignorado totalmente tal noção: pelo contrário, eles a conheceram (como testemunham as reflexões de Aristóteles sobre o bode-cervo em A. Po. II-7), mas, entretanto, não a problematizaram de maneira isolada como um tópico central para a filosofia. A questão imediata e central para os gregos nunca foi se isto existe, mas sim como isto existe sendo precisamente aquilo que é?. Pois o uso existencial do verbo, longe de isolar uma noção abstrata
4 RESENHA DE LIVROS de mero ato de existir, estaria sempre prenhe de cópula incompleta (p. 113, 141), no sentido de que ele sempre suporia um fato complexo que já comportaria implicitamente uma estrutura proposicional, na medida em que a descrição ou definição estrita desse fato só poderia ser feita mediante uma formulação predicativa S é P. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a noção de existência é absorvida nos diversos modos de predicação: existir é sempre ser algo determinado. E essa observação, que Kahn introduz inicialmente a respeito de Aristóteles (p. 103), seria válida a fortiori também para os filósofos antigos em geral (p. 96), ao menos quanto à sua intuição de fundo; pois, ainda que a formulação consciente e advertida de uma tábua de categorias (ou modos de predicação) se deva a Aristóteles, é inegável que muito antes dele a ontologia grega já teria concebido que existir é sempre ser sendo um F (cf. p. 206). A ontologia grega, assim, dispunha dos recursos próprios para estabelecer, como questão central desde sua origem, o mesmo problema que ocupa o centro das atenções no Tractatus de Wittgenstein: como o mundo deve ser estruturado de modo a serem possíveis a linguagem lógica e científica? (p. 102). E com o primado do sentido veritativo (segundo o qual to on seria o objeto aberto ao conhecimento e ao discurso proposicional) e a absorção da noção de existência dentro do sentido mais essencial de ser um F, não haveria lugar, na ontologia grega, para o ceticismo da dúvida hiperbólica de Descartes, nem para o argumento ontológico de Anselmo. Pois, ao não permitir a discriminação da existência como mais um predicado entre outros (p ), a ontologia grega, em sua própria origem, teria antecipado a observação crítica de Kant a respeito da impossibilidade de se conceber a existência como um predicado ordinário, bem como o ponto de vista de Frege, para quem o operador existencial ( x) dependeria parasitariamente da forma sentencial primária Fx e seria apenas um conceito de segunda ordem (p. 34). Mas é em outro artigo ( Alguns usos filosóficos do verbo ser em Platão, 1981), creio, que Kahn alcança a formulação mais madura de sua tese: alguns usos (filosóficos) do verbo ser em Platão (mas não só em Platão...) seriam sobredeterminados, no sentido de que várias leituras gramaticais de uma única ocorrência são não apenas possíveis, mas às vezes exigidas para a plena compreensão do texto (p. 108) 1. A tese de Kahn é a seguinte: alguns usos do verbo na construção absoluta, ao invés de poderem ser interpretados estritamente como (i) pura asserção de existência ou como (ii) cópula incompleta (como se estivesse implícito um signo de lacuna ), devem ser interpretados como um (iii) sentido veritativo, mas um sentido veritativo que internamente se desdobra ou se analisa em um volume 4 (1) Kahn chama de subdeterminado o uso do verbo em que várias leituras gramaticais seriam indiferentemente possíveis, ao passo que sobredeterminado seria o uso do verbo que exige várias leituras gramaticais simultâneas. 151
5 152 sentido copulativo (elíptico, incompleto) e em um sentido existencial. Isto quer dizer: uma mesma ocorrência do verbo deveria necessariamente ser entendida (sob pena de nos escapar inteiramente a inteligibilidade do texto) como ao mesmo tempo veritativa, copulativa e existencial. Como veritativa por que o verbo teria um conteúdo lexicalmente traduzível como é assim, é o caso. Mas também como copulativa, na medida em que aquilo sobre o que versa a pretensão de verdade seria uma complexão de fatos, ou uma atribuição elíptica, exprimível sob a forma proposicional padrão. Enfim, como uma ocorrência também existencial, visto que a pretensão de verdade envolveria a postulação de existência do sujeito do qual se afirmam os atributos. Essa sobredeterminação do verbo garantiria uma perfeita e natural tradutibilidade entre construções absolutas com valor veritativo e construções explicitamente copulativas, e em ambas o valor existencial estaria implícito (p. 122, nota 18, p. 133). Parece, no entanto, haver uma incoerência na trajetória de Kahn. De um lado, pois, os artigos em que se desenvolve com maior apuro a tese da sobredeterminação concordam inteiramente com a concepção defendida desde o primeiro artigo: o valor veritativo encontrar-se-ia na base de todos os usos e sentidos do verbo, de modo que o conceito de existência, que se presumia como mais primitivo do ponto de vista da filologia histórica, não teria senão um estatuto parasitário, dependente do sentido veritativo-copulativo. De outro lado, porém, Kahn propala, no segundo artigo ( Sobre a Teoria do verbo Ser, 1973), uma pequena revolução copernicana (p. 45, cf. p. 158): reinstalar a cópula no centro dos usos de einai, relegando aos sentidos existencial e veritativo o caráter parasitário de operadores sentenciais que incidem sobre sentenças primitivas articuladas segundo o padrão copulativo. E essa tese é retomada na Retrospectiva de 1986, em que Kahn volta a ressaltar (p ) que a cópula seria mais fundamental do que os usos veritativo e existencial. Parece, assim, haver uma pequena oscilação de Kahn quanto a essa problemática. Essa incoerência, no entanto, não é senão aparente: trata-se de perspectivas diversas, mas perfeitamente compatíveis entre si. O artigo de 1973 e a Retrospectiva de 1986 procuram discriminar qual seria o sentido mais básico do verbo ser de um ponto de vista mais estritamente lingüístico e, além do mais, eles denominam de uso veritativo estritamente a ocorrência do verbo em construções absolutas similares ao inglês Tell it as it is. Sob esse ponto de vista, pois, assume-se como elemento mais primitivo a função copulativa do verbo, sem a qual não poderiam ser compreendidos os usos existencial e veritativo, os quais, assim, assumiriam a figura de operadores sentenciais que incidem sobre a sentença copulativa já num segundo nível. No entanto, a perspectiva dos demais artigos é ligeiramente diversa. Observe-se que em Ser em Parmênides e Platão, o último da série (1988), Kahn fala em padrão predicativoveritativo (p. 199) como centro de organização dos significados filosóficos de einai. Assim, quando mencionam o valor veritativo do verbo, estes artigos não mais visam estritamente a construção absoluta que deveria ser traduzida lexicalmente como é o caso, é assim, pois se trata
6 RESENHA DE LIVROS antes da pretensão de verdade que está implícita em toda frase declarativa (p. 108). E Kahn ressalta: essa função do verbo... não é uma noção tão claramente definida quanto a construção veritativa (p. 108, grifos nossos). O que está em questão aqui é a necessidade de ler, dentro da própria construção copulativa, o operador sentencial veritativo. Kahn não pretende voltar atrás em sua revolução copernicana. É justamente a cópula que se apresenta, imediatamente, como uma função lógica na qual estariam implícitas a pretensão de verdade e a postulação de existência, que poderiam ser explicitadas por operadores sentenciais incidindo sobre a proposição inicial. E Kahn agora se pronuncia em termos de padrão predicativo-veritativo apenas porque a sobredeterminação lhe permite ver um valor copulativo-veritativo em qualquer ocorrência do verbo, mesmo naquelas cuja gramática de superfície exibe uma construção absoluta. A base para a articulação mais sutil dessa tese encontra-se justamente num dos textos em que Aristóteles analisa a função veritativa do verbo ser : pois em Metafísica V-7, ao afirmar que a proposição Sócrates é músico equivale a é verdade que >Sócrates é músico=, longe de introduzir alguma idiossincrasia no manejo do verbo ser, Aristóteles estaria efetuando tão apenas uma constatação trivial a respeito da sobredeterminação de toda e qualquer sentença declarativa na forma proposicional (p. 110). Mas certos detalhes da tese de Kahn ainda permanecem insatisfatórios. Kahn entende que o uso veritativo se desdobra, de modo natural e não falacioso (p. 122, nota 18), no uso existencial mais a cópula incompleta ou elíptica. A conseqüência disso seria uma convertibilidade natural B e igualmente não falaciosa B entre construções absolutas S é com valor veritativo (nas quais poderíamos ler a cópula incompleta) e construções explicitamente copulativas S é P, nas quais estaria implícita uma pretensão de verdade. Mas a maneira pela qual Kahn entende a gramática filosófica na convertibilidade dessas frases ainda deixa a desejar. Embora admita que o uso veritativo possa se desdobrar num esquema sentencial de forma é (p. 202), Kahn parece entender a sobredeterminação de frases do tipo S é como se (i) houvesse uma cópula elíptica, cujo predicado deveria ser explicitado, e como se (ii) a postulação de existência incidisse estritamente sobre o sujeito dessa cópula incompleta. Assim, a frase inicial S é deveria ser reescrita mais ou menos como é verdade que S é P, e que S existe. Isso, no entanto, é insatisfatório. Por um lado, é inegável que construções absolutas com sentido veritativo podem se desdobrar naturalmente em fórmulas predicativas com uma postulação de existência implícita. No entanto, não há nenhuma necessidade de entender que, na construção absoluta inicial, estaria ainda implícito o predicado a ser expresso na sentença copulativa. Tampouco há razão para restringir a postulação de existência apenas ao sujeito da proposição explicitamente articulada, que é o mesmo sujeito da construção absoluta inicial. Ainda que uma leitura tal como proposta por Kahn seja possível em vários contextos, cremos haver sobejamente outros contextos que pedem uma análise mais refinada. volume 4 153
7 Nos textos de Platão e Aristóteles, é comum encontrarmos frases com a forma da construção veritativa S é. No entanto, para desdobrarmos esse uso veritativo em uma cópula na qual esteja imanente uma pretensão de verdade e uma postulação de existência, não precisamos supor um predicado elíptico. Não precisamos ler a construção absoluta como uma cópula incompleta, como se S é fosse uma abreviação elíptica de S é P. Pelo contrário, devemos desarticular o sujeito da construção inicial, analisando-o nos seus elementos: o S deve ser redescrito como algo do tipo xy. De modo que a afirmação inicial S é, sendo equivalente a xy é, pode ser naturalmente desdobrada em uma sentença copulativa, x é y, sem nenhuma necessidade de se imaginar predicados elípticos. A conseqüência disso é que o valor existencial implícito na construção absoluta inicial tampouco se restringe ao sujeito S tomado em sua simplicidade, como se a frase S é devesse ser lida como um uso veritativo que ao mesmo tempo postulasse a existência de um sujeito para predicação ulterior B queremos dizer, como se o é fosse aquilo que Kahn chama de operador da frase existencial, isto é, o x tomado previamente ao Fx (p. 172). Pelo contrário, a postulação de existência, ao incidir sobre S, não incide estritamente sobre uma coisa apta a ulteriormente receber predicados, mas incide já sobre um fato complexo, cuja existência poderia ser analisada sob a forma proposicional. Assim, na medida em que o sujeito S equivale semanticamente a um complexo xy, a construção absoluta inicial S é pode ser naturalmente rescrita na fórmula copulativa padrão, x é y, sem a necessidade de supor um predicado implícito, e deve ser lida como uma pretensão de existência que internamente se desdobra numa estrutura predicativa: S é seria equivalente a existe um S que é xy, ou melhor dizendo, existe um S, porque x é y 2. É justamente este padrão de análise que se deve ter em conta diante de diversos textos aristotélicos. No livro Gamma da Metafísica, por exemplo, as formulações do princípio da não contradição variam indiferentemente entre uma construção absoluta e outra copulativa. De um lado, temos a construção absoluta [ d naton] t aÿt eçnai kaà mæ eçnai (1006a 1; cf. 1009a 11-12, 1011b 26): é impossível que o mesmo seja (verdadeiro) e ao mesmo tempo não seja (verdadeiro), ou é impossível que [ S é e S não é ]. Mas, ora, se compreendemos que t aÿt, fazendo as vezes do sujeito S da construção absoluta, deve ser concebido como um complexo analisável em dois elementos, podemos 154 (2) Uma análise semelhante a esta é proposta por Mohan Matthen em Greek Ontology and the Is of Truth Phronesis vol. 28, n1. 2, 1983, p Julgamos que o artigo de Matthen devidamente retifica certos itens insatisfatórios na proposta geral de Kahn.
8 RESENHA DE LIVROS reescrever o enunciado acima na fórmula predicativa padrão, que é inclusive a formulação consagrada do PNC: t aÿt ma ÿp rcein te kaà mæ ÿp rcein d naton t aÿt (1005b 19-20), ou seja: é impossível que o mesmo (predicado) seja atribuído e não seja atribuído ao mesmo tempo ao mesmo (sujeito). Nessa perspectiva, vemos que t aÿt na construção absoluta equivale a algum fato complexo xy (por exemplo, auto = Sócrates sentado), no qual não há ainda nenhuma articulação lógica implícita, e sobre o qual incide a asserção enfática do é, a qual ao mesmo tempo afirma que existe o fato xy e que o fato xy é o caso 3. Mas dizer que Sócrates sentado é (o caso) equivale a dizer que Sócrates está sentado, ou dizer que é verdade que Sócrates está sentado. Essa maneira de compreender a construção veritativa absoluta, longe de se restringir a um mero detalhe de filologia, revela-se decisiva para a compreensão de alguns pontos fundamentais da filosofia aristotélica. Aristóteles afirma que, para alguns entes, perguntar se existe equivale a perguntar por que. Essa equivalência à primeira vista paradoxal torna-se perfeitamente inteligível se supomos que aquilo sobre cuja existência se indaga consiste num fato complexo A (por exemplo, trovão ou eclipse), de modo que perguntar pela existência desse fato consiste em perguntar se estão juntos os elementos que compõem esse fato complexo, ou seja, se há alguma causa pela qual esses elementos se apresentam juntos de maneira a existir o fato complexo A 4. Assim, Aristóteles pode afirmar que, para certos itens, redunda no mesmo perguntar o que é e por que é 5, assim como redunda no mesmo procurar obter uma definição completa de sua qüididade e procurar especificar a causa pela qual A existe sendo precisamente o que é 6. Aparentemente, Aristóteles restringiria esse tipo de análise a fatos manifestamente complexos, que poderiam ser analisados por uma predicação inter-categorial B os exemplos recorrentes são trovão = estrondo nas nuvens (1041a 24-26), ou roupa = homem branco (1029b 27-8). Mas não é o caso. O livro Z da Metafísica se encerra com o propósito deliberado de aplicar este tipo de análise, ainda que sob severas restrições, também à ousia: para investigar o por que de uma substância, devemos desarticulá-la nos seus elementos constituintes (ver VII 7, 1041a 32-b 3). volume 4 3. O próprio Kahn observa essa gramática nos enunciados aristotélicos do PNC, em Sobre a Terminologia para Cópula e Existência (p. 70). No entanto, Kahn não leva sua análise às últimas conseqüências: ele concebe que a tradutibilidade entre a cópula e o uso veritativo na construção absoluta depende do acréscimo de um predicado que não estaria explícito nesta última. 4. Analíticos Posteriores II 2, 90a Analíticos Posteriores II 2, 90a 14-15; ver também II 8, 93a 3-4, e Metafísica VII 17, 1041a O capítulo II 8 dos Analíticos Posteriores dedica especial atenção a essa problemática. 155
9 É nesse ponto, justamente, que sentimos pelo fato de Kahn não ter explorado mais detalhadamente o verbo ser nos textos aristotélicos. Kahn sugere (p. 135) que a ousia, como nominalização do verbo einai, poderia exprimir a estrutura proposicional do pensamento, em que se coadunariam as funções de predicar (atribuir a algo alguma propriedade), asserir (pretender que essa atribuição seja verdadeira) e referir a algo (postular a existência de algo). Mas Kahn tem em mente textos de Platão, e não de Aristóteles. Não obstante, há certamente muito a trilhar no caminho indicado por Kahn B justamente para uma compreensão da ousia aristotélica como exemplo primeiro e privilegiado do ente. Lucas Angioni 156
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