Uma avaliação crítica das Hipótese de Trabalho
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- Diogo Lameira
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1 4 Uma avaliação crítica das Hipótese de Trabalho Este capítulo será dedicado à retomada das Hipóteses de Trabalho 01 a 03, conforme descritas no Projeto de Pesquisa que norteou esta dissertação, para realização de uma avaliação crítica das mesmas à luz dos Capítulos 2 e 3. As Hipóteses de números 01 e 02 serão tratadas conjuntamente porque estão muito intimamente relacionadas e a Hipótese 03 será tratada em separado. Todas serão analisadas no sentido de verificar-se a sua sustentabilidade e eventuais inadequações, a partir dos resultados da pesquisa registrados nos capítulos anteriores.
2 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho Hipóteses de números 01 e 02 Hipótese no. 01: O estilo panfletário do filósofo Paul Feyerabend, principalmente na sua obra Contra o Método editada em 1975, levou a uma tendência para uma interpretação parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a mesma como descrevendo ou sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa dita científica. Hipótese no. 02: Uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de Feyerabend nos indicia que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico com total ausência de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade de método científico pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal método único, defendendo a maior plausibilidade e desejabilidade tanto da pluralidade metodológica quanto de seus fundamentos. Estas hipóteses referem-se basicamente ao conteúdo do Capítulo 3, onde fazemos referência ao fato que o anarquismo pluralista de Feyerabend não constitui um vazio de regras e critérios, mas, ao invés disso, propõe uma pluralidade de regras e critérios rejeitando o monismo metodológico bem como ideais universais tais como Verdade, Razão, Objetividade, Honestidade, Simplicidade e assim por diante, associados ao monismo citado. Em conseqüência disso, o anarquismo pluralista também rejeita a distinção entre os contextos de descoberta e justificação, história interna e externa à ciência, questionando também os critérios monistas de progresso científico pautados nessas distinções, em especial o aumento de conteúdo empírico, uma vez que na epistemologia feyerabendiana teorias que se sucedem, nos momentos de revolução e progresso científico, são incomensuráveis, ou seja, incomparáveis quanto ao seu conteúdo. Essa incomparabilidade é devida ao fato de tais teorias referirem-se a
3 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 58 entidades de tipos distintos, possuindo significados incomparáveis entre si. Além disso, o anarquismo pluralista rejeita hegemonias por considerar que estas levam à inibição da variedade inerente ao potencial humano, impedindo a sua realização, ferindo um preceito básico do humanismo liberal de John Start Mill, referência inequívoca e constantemente declarada por Feyerabend. Vejamos algumas citações referentes a esta questão, que apontam para um profundo comprometimento da epistemologia anarquista com o humanismo proposto por Mill, o que vai de encontro às alegações de que essa epistemologia limitou-se à tentativa de derrubar os cânones existentes sem propor nada em seu lugar. Recusar-se a ouvir uma opinião por ter certeza que ela é falsa é assumir a sua certeza de forma absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma assunção de infalibilidade [...] Se toda a humanidade a menos de um tivesse uma mesma opinião, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar este único homem do que ele, caso tivesse esse poder, de silenciar toda a humanidade.[...] A crueldade peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é a de que ela subtrai da raça humana, da posteridade e da geração atual daqueles que discordam da opinião suprimida mais do que daqueles que a defendem. (Mill, 1980 p.76-77, minha tradução, grifos no original) Assim, de nossa pesquisa depreendemos que o anarquismo pluralista não constitui apenas a rejeição de métodos e critérios. Embora não seja seu objetivo substituir o monismo metodológico por outra metodologia única, essa epistemologia considera ser mais benéfico ao desenvolvimento do conhecimento e do potencial humanos a pluralidade teórica e metodológica, a interação entre o conhecimento científico com outras formas de conhecimento e com o ambiente sócio-cultural, as mudanças de significado entre teorias, considerar-se a relação das teorias com a linguagem utilizada para expressá-las e, finalmente, a maneira como esse conjunto teoria e linguagem se refletem na forma de ver o mundo e o ser humano, ou seja, numa cosmologia. As reações ao anarquismo foram tão contundentes quanto à sua apresentação na publicação mais bem conhecida de Feyerabend, Contra o Método (doravante CM), a qual foi planejada para ser escrita com Imre Lakatos com o título A Favor e Contra o Método, conforme página introdutória assinada pelo próprio Feyerabend. Entretanto, Lakatos faleceu inesperadamente antes dos planos poderem ser concretizados. Em sua
4 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 59 autobiografia, Feyerabend comenta, referindo-se à maneira pela qual montou o CM, dado que seu diálogo com Lakatos não seria mais possível: CM não é um livro, é uma colagem. Contém descrições, análises, descrições que publiquei, quase com as mesmas palavras dez, quinze até vinte anos antes. (Feyerabend, 1994: p. 147) Entretanto, a reação ao livro em nada se pareceu às reações às suas publicações anteriores. Feyerabend estava consciente de que haveria uma forte reação, porém, não imaginou que seria tão negativa. Nas palavras de Preston: Muito antes de sua publicação, Feyerabend antecipou que CM a quem ele se referia como a bomba que produz mau cheiro, iria enfurecer as pessoas. Ele estava bem consciente de suas inadequações, e da natureza inflamável de alguns dos comentários espalhafatosos que o livro continha.numa carta de março de 1970, ele confessou a Lakatos que há muitas contradições em toda a coisa para que ele [Feyerabend} obtenha o apoio de pessoas sérias. (Preston, 1997: p. 170, minha tradução) Assim, além do estilo panfeltário feyerabendiano, também contribuíram para uma grande rejeição ao anarquismo epistemológico os seguintes fatores: diversos problemas na estrutura formal tanto nos argumentos contrários ao monismo metodológico quanto nos de defesa ao anarquismo pluralista; discordâncias de outros epistemólogos quanto às interpretações de episódios da história da ciência e da atitude de cientistas a que Feyerabend faz alusão para fundamentar e dar respaldo histórico à sua epistemologia; e, finalmente, a sua defesa de atitudes politicamente incorretas tais como, a perseguição na China dos envolvidos com a cultura Ocidental (científica) ou a defesa de uso da violência como parte integrante do anarquismo (Feyerabend, 1975: p. 187), só para citar alguns. Embora Feyerabend tenha tentado se justificar dizendo que contra uma força muito intensa, como a cultura científica, somente outra força contrária de igual ou maior intensidade poderia atuar, tal justificativa não amenizou as reações a essas declarações. Os exemplos referentes a Galileu são os que mais geraram reações pois Feyerabend repetidamente sugere que este grande cientista adotou um comportamento contra-indutivo e, pior que isso, teria também adotado estratégias de convencimento retóricas, propaganda e persuasão. Mais do que o desagrado causado
5 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 60 por Feyerabend afirmar que Galileu utilizou-se e agiu de maneira irracional para chegar aos seus resultados e apresentar suas descobertas, foi o fato de ter classificado essas atitudes de oportunismo, insinuando que essa atitude pouco honesta teria feito parte do sagrado contexto científico. Em outros momentos de constrangimento, Feyerabend compara, por exemplo, o treinamento para a prática profissional científica com o treinamento para a prática profissional da prostituição (Feyerabend, 1975: p. 217), chocando novamente os seus leitores. Por conta de todos esses fatores, e não apenas do estilo de escrita, Feyerabend viu-se na situação de escrever inúmeras réplicas a seus críticos. Contudo, o epistemólogo concede que ele tinha prazer ao chocar as pessoas. Na sua autobiografia, novamente ao referir-se como montou o CM, ele afirma: [...] quando comecei a compor minha colagem. Organizei-a numa ordem adequada, acrescentei transcrições, substituí passagens moderadas por mais violentas e chamei o resultado de anarquismo. Eu adorava chocar as pessoas e, ademais, Imre queria que o conflito fosse claro, não apenas outra tonalidade de cinza. (Feyerabend, 1994: p. 150) Contudo, CM não foi apenas uma brincadeira nem tampouco o exercício de um estilo mais ousado e chocante de re-escrever artigos e textos apresentados em seminários anteriores. Hoje estou convencido de que não há só retórica neste anarquismo. O mundo, inclusive o mundo da ciência, é uma entidade complexa e dispersa, que não pode ser capturada por teorias e regras simples. (Feyerabend, 1994: p. 150) Feyerabend reafirma suas idéias quase vinte anos após a primeira edição de CM. A bomba de mau cheiro também possui uma mensagem bem definida, que o epistemólogo resumiu em palavras simples, mas, significativas, na passagem acima. Para fins de avaliação das Hipóteses 1 e 2, consideramos que a Hipótese de no. 2 foi plenamente confirmada enquanto a de no. 1 poderia ser reformulada, acrescentando-se ao estilo panfletário as questões relativas à estrutura formal dos argumentos bem como à defesa de posições politicamente incorretas por Feyerabend em CM. A interação desses fatores, ao invés de constituir apenas o estilo
6 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 61 de escrita, nos parecem, hoje, após a pesquisa, serem os responsáveis pela rejeição e até certo ponto má compreensão do anarquismo epistemológico. Por esse motivo, entendemos que estudos como este trazem uma nova visão do anarquismo pluralista, especialmente no que concerne aos Capítulos 2 e 3, que apresentam uma espécie de continuidade do pensamento feyerabendiano, sempre em defesa da pluralidade e de uma ética humanista. Finalizamos a análise das duas primeiras hipóteses citando Joseph Agassi, contemporâneo e amigo de Feyerabend, e que chegou a criticar duramente CM. Ao referir-se ao já falecido colega epistemólogo, Agassi o considera: [...] um dos filósofos mais bem conhecidos, mais admirados e menos compreendidos da segunda metade do século XX. (Agassi, in Preston, 1997: contra-capa, tradução e grifos meus)
7 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho Hipótese de número 03 Hipótese no. 03: O desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da sociedade cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas de conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais. A recomendação feyerabendiana para uma atitude crítica está presente em toda sua obra e pode-se dizer que constitui um desdobramento tanto do falibilismo quanto da orientação humanista do autor. Para argumentar em favor dessa idéia, lembramos que, mesmo na sua fase racionalista crítica, Feyerabend já defendia uma atitude crítica ao monismo teórico, típico de uma visão falibilista do conhecimento humano. Ao reforçar a fundamentação humanista e a rejeição à hegemonia, a crítica voltou-se também contra a ciência porque Feyerabend identificou a forte presença de ideais e atitudes hegemônicas nessa atividade humana. No Capítulo II tratamos mais especificamente desta questão, sob o ponto de vista metodológico, educacional e social. No tocante à desqualificação de outras formas de conhecimento, o aspecto educacional desempenha um papel marcante. Segundo Feyerabend, o preconceito contra alternativas não científicas de visão de mundo se instala pela impossibilidade de se optar por uma educação regular não científica. Esta impossibilidade resulta da associação da ciência ao estado, somada à atitude monista da ciência em relação à racionalidade e ao método, atitude esta que a destaca e valoriza em relação a outras formas de conhecimento. Assim no que diz respeito a formas não científicas de conhecimento, a principal mensagem de Feyerabend é a criação de uma disposição para uma maneira alternativa
8 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 63 de conceber o conhecimento em geral. Esta alternativa traria uma conscientização que integraria as diferentes formas de ver o mundo, ao invés de fazer do conhecimento um mecanismo excludente em relação a essas alternativas. Nessa perspectiva, conhecimento é antes de tudo interpretação. A partir de uma inspiração humanista, esse conhecimento compõe-se de e favorece a integração, troca, inter-relacionamento e reconhecimento das diferenças interpretativas, e não a sua pasteurização numa busca pela objetividade, ou ainda um empreendimento dirigido a uma universalidade. Conhecimento assim concebido é, acima de tudo, pluralidade, mudança contínua e contexto. A história da ciência, afinal, não consiste apenas de fatos e conclusões tiradas a partir de fatos. Ela também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, enganos, e assim por diante. Numa análise mais profunda nós até podemos achar que a ciência não contém fatos puros mas que os fatos que compõem nosso conhecimento são previamente vistos de determinadas formas sendo, portanto, essencialmente ideacionais. (Feyerabend, 1975: p. 19, tradução e grifos meus) Como se vê, o relativismo em Feyerabend não é visto como um problema indesejável que ameaça a ordem no conhecimento, pois a relatividade é inerente tanto à natureza quanto ao processo da busca pelo conhecimento. Inúmeras vezes Feyerabend afirma que é ingênuo e simplório tentar reduzir esse processo através de explicações que objetivam ser simples, práticas, universalmente justificadas e aplicáveis. Para que tal concepção de educação seja efetivada, Feyerabend defende uma proposta educativa que muito se assemelha à proposta progressista e socialconstrutivista. Para verificar se tal proposta educativa, com as características preconizadas pelo anarquismo de fato resultaria nos objetivos tão caros a Feyerabend: a discussão livre de uma pluralidade de posições, o respeito mútuo às diferenças, o favorecimento ao progresso do conhecimento sob o ponto de vista dos valores humanistas, e assim por diante, poderia-se pesquisar trabalhos sobre experiências nesses ambientes educacionais. Pelo material pesquisado, entendemos que Feyerabend defende a idéia de que uma educação nesses moldes favoreceria esses resultados, desejáveis num contexto epistemológico anarquista, porém, não há como afirmar que de fato eles seriam atingidos. Assim, embora teoricamente uma educação
9 Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 64 anarquista venha a gerar na prática uma atitude pluralista, seriam necessárias mais informações sobre eventuais resultados observados para tirar-se uma conclusão definitiva. Dados os aspectos do pensamento feyerabendiano compilados por meio de leituras ao longo da pesquisa e apresentados nessa breve explanação, consideramos que a Hipótese de no. 03 tenha sido plenamente confirmada nesta pesquisa.
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