Câncer: mais 500 mil casos

Transcrição

1 Página 1 de 5 Quarta, 18 de Maio de 2011 ENTREVISTA Câncer: mais 500 mil casos O oncologista afirma que o Brasil não tem estrutura física e médica para tratar outro meio milhão de pessoas com câncer em 2011, apesar de o país se equiparar ao resto do mundo em termos terapêuticos Texto: Eliana Fonseca Fotos: Nélio Rodrigues Opiniões ou sugestões sobre a matéria? Mande para: web@revistaviverbrasil.com.br Coordenador do serviço de radioterapia do Mater Dei, o médico Ernane Bronzatti, diante do medo comum dos pacientes oncológicos ao tratamento, costuma brincar se eles já viram alguém com diabetes se curar ou se alguém que sofre de hipertensão parar de tomar seus remédios. Se essas doenças têm somente o controle, vários casos de câncer são curados. A evolução dos tratamentos e drogas contra a doença está atingindo nível de sofisticação em que a guerra por um remédio e tratamento específicos tem se traduzido em uma nova realidade em que sai o tabu de doença maldita e o câncer passa a ser visto como outra qualquer, curável. No entanto, é preciso que todos façam sua parte. A estimativa é que somente neste ano, quase 500 mil novos casos sejam diagnosticados no Brasil. Para Bronzatti, uma ação que poderia ser positiva e significativa seria uma campanha maciça de prevenção para toda a população, com a participação da classe médica e de órgãos públicos. Acredito que a desmitificação e a orientação, associadas a campanhas sociais e de prevenção, levam a um modelo que pode trazer resultados muito significativos, observa o médico. Enquanto a terapêutica existente no país se compara às melhores do mundo, a pesquisa promete salto para daqui a alguns anos. De acordo com o médico, o Brasil deve transformarse em berço de estudos sobre o câncer pelas peculiaridades de sua população, que tem a genética parecida com a dos povos norte-americanos e europeus. E esses estudos também darão salto no restante do mundo. Para Bronzatti cada povo deverá trabalhar de forma particularizada, com remédios e tratamentos que levam em conta o seu sistema genético, o que deve resultar em índice maior de cura.

2 Página 2 de 5 Atualmente, no país, a perspectiva é de que quase 500 mil novos casos de câncer sejam diagnosticados em O país está equipado para atender a essa demanda crescente? Não. Acredito que o Brasil está se adequando para receber esse público novo, que na verdade nem é novo. O que está ocorrendo é que nós passamos por um momento muito interessante em que as pessoas estão tendo acesso à saúde, e, consequentemente, também a um diagnóstico mais precoce. Esse acesso tem trazido esses novos casos. Com isso, gera-se um novo problema - esses casos diagnosticados têm de ser tratados. O Brasil está em uma fase de adequação para atender essa demanda, tanto do ponto de vista de estrutura física quanto de recursos humanos. A população que chega tem encontrado dificuldades, tanto no setor público quanto no privado. Quais seriam esses problemas? As dificuldades são tanto de ordem financeira quanto de pessoal especializado para atender. Os tratamentos oncológicas são compostos por três especialidades: a cirurgia oncológica, a oncologia clínica e a radioterapia. E, dependendo do tumor, a terapêutica pode exigir uma combinação destas três. E isso implica custo maior e um profissional mais especializado? A medicina é a única especialidade em que o acréscimo de tecnologia não chega com diminuição de custos. Vemos essa correlação em outros setores em que o avanço populariza determinados produtos e serviços e, consequentemente, há uma diminuição de custos. Na medicina, principalmente na oncologia, não. E o resultado é que há tecnologias e tratamentos que não podem ser utilizados por causa desses custos, o que causa frustração muito grande em nós, da classe médica. Mas, entendemos que a saúde pública precisa ser setorizada. A oncologia é uma vertente, mas há a pediatria, a cardiologia e outras áreas que compartilham dessa distribuição de recursos da saúde. E esse não é um problema só do Brasil. A economia norte-americana consome 1 trilhão de dólares a cada ano na saúde e nem por isso consegue obter os melhores índices nessa área. Quando se trabalha com três pilares como é o caso da oncologia e todos eles consumidores de recursos, há um acréscimo de custo, de aumento de drogas, há também o problema da gestão deficitária, da falta de recursos, enfim, uma série de fatores geradores desses problemas. E qual o reflexo desses problemas no paciente? O paciente quer o melhor. Ele não quer saber se o tratamento ou determinada droga não está disponível. Ele quer correr atrás do que é possível para curá-lo. Hoje, a internet gera muito conhecimento a esses pacientes, com diferentes abordagens, tratamentos. O único problema é que não há filtro na rede e essa série de conhecimentos pode gerar uma frustração muito grande porque determinados tratamentos ou drogas podem não servir para o seu caso. Qual é o maior desafio no tratamento de um câncer? É desmitificá-lo como doença terrível. O câncer tem se tornado uma doença crônica degenerativa. Sempre brinco com pacientes e pergunto: quantas pessoas você conhece que se curaram da diabetes, ou quantas já pararam de tomar remédios para pressão? O câncer tende a transformar-

3 Página 3 de 5 se em uma doença como outra qualquer. Logicamente, os tratamentos são diferentes, a medicina tem evoluído e as estatísticas têm mudado. Faço parte de uma geração médica que está assistindo a efeitos colaterais que não existiam antigamente porque os pacientes morriam antes. Os avanços das drogas e dos tratamentos resultam em maior sobrevida do paciente. Antigamente, um paciente com câncer tinha uma sobrevida de dois ou três anos. Hoje, são dez anos. Então, teremos de enfrentar dois desafios, além de os casos de câncer aumentarem, essas pessoas estão tendo aumento de sobrevida porque os tratamentos melhoraram ou porque procuraram a medicina precocemente. A tendência é de aumento do grupo de população formada por pacientes oncológicos. Quando se fala em câncer é comum as pessoas imaginarem que se trata de uma só doença, o que não é verdade. Como lidar com a heterogeneidade dos diagnósticos de câncer e fazer com que o tratamento seja específico? O tratamento específico é o modelo que gostaríamos de chegar. Tudo que tem avançado na medicina o projeto Genoma Humano e o que a indústria e os laboratórios têm pesquisado e desenvolvido é para criar um remédio altamente específico. Já existem drogas, com os chamados anticorpos monoclonais, que vão obter resposta daqueles pacientes que apresentarem um receptor para esse anticorpo. Às vezes, os pacientes têm a mesma doença, os mesmos linfomas. Mas, dentro dessa doença há subgrupos, e dentro desses um subgrupo que tem um gene expressivo e há casos de existir uma droga específica para esse gene. A verdade é que tratamos um pool de gente e as classificamos de uma mesma maneira, mas nos casos em que a medicina avançou um pouco mais, há drogas mais específicas. Esse é o caminho ideal para todos. Como está o Brasil em termos de tratamentos oncológicos? Em termos de terapêutica, não de pesquisa, o Brasil tem exatamente tudo que existe no resto do mundo. Não existe nenhum tratamento em oncologia do mundo que não seja encontrado em bons centros do país. Antigamente, os equipamentos eram um fator limitante, mas hoje estamos equiparados aos melhores centros. Na pesquisa, existem grandes instituições que estão se agrupando e se dedicando a estudos científicos, reconhecidos e com validade internacional. E o Brasil tem uma peculiaridade que nos próximos anos deve transformá-lo em grande berço de estudos, principalmente norte-americano e europeu. Esses países precisam de estudos populacionais grandes e o Brasil tem essa característica, com o adendo de ter genética muito parecida com a desses locais. Na China e na Ásia, por exemplo, há grandes populações, mas o perfil genético é muito diferente. E isso pode implicar tratamento específico para cada população? Hoje, todo mundo é tratado da mesma maneira, de forma global, não existe forma particularizada. Mas, acredito, que num futuro breve, os chineses, asiáticos, devem ter não só seu modelo de saúde, mas de remédio, de drogas, que serão mais eficazes para o seu sistema genético. E o Ocidente também deve desenvolver o seu. E quando a pesquisa deve se equiparar à terapêutica no Brasil?

4 Página 4 de 5 Acho que nos próximos cinco a dez anos, vamos ver essa evolução. Já temos grandes estudos ou pelo menos alguns grupos que fazem parte desses estudos. O Instituto Nacional do Câncer tem um braço que estuda patologias como os tumores avançados em cabeça e pescoço, que são comuns em pacientes tabagistas e que consomem álcool, nos que têm pouco recurso e vão pouco ao médico. Esses tumores são muito mais comuns em nosso país do que em outros países. Logicamente, é bom lembrar que as regras para se aprovar projetos ou pesquisas ainda seguem uma burocracia difícil e desestimuladora, mas estamos avançando. Quando se fala em câncer, há a imediata correlação com tratamentos como a quimioterapia e a radioterapia, mas o que há de novo para o tratamento oncológico? São as drogas feitas, principalmente, através dos chamados anticorpos monoclonais. Os pesquisadores fazem pesquisa de determinada droga, como se fosse uma vacina, e cria-se o anticorpo para aquela doença. Esse anticorpo tem de funcionar como uma chave específica. Uma célula cancerígena tem de ter uma fechadura para a qual se produza um remédio que tem a chave para aquela célula. Tudo para que ela não consiga se ligar à fechadura do vizinho, as células boas. Os quimioterápicos geralmente acertam as células boas e as ruins. Os medicamentos têm caminhado para que se consiga a eficácia sem desenvolver o efeito colateral indesejado. Essa droga será eficaz no sentido de matar o tumor. A busca científica é por um remédio que consiga atuar de maneira mais autodirigida. Esse talvez seja o grande caminho da oncologia. E essa maneira autodirigida também está chegando aos equipamentos? Existem hoje equipamentos que fazem parte do diagnóstico e dentre eles há um chamado Pet CT, para tomografia que capta os elétrons emitidos por produto radioativo injetado no corpo do paciente. Ela faz uma varredura no corpo do paciente e permite diagnóstico e identificação do tumor com mais precisão. O problema é que não é um equipamento para todos os tipos de câncer. É um exame que tem preço alto e deve ser utilizado com muito cuidado. E os avanços na radioterapia? Na radioterapia, apesar de os princípios da irradiação serem os mesmos desde a Segunda Guerra Mundial, o que se fez foi aumentar a precisão, a maneira como se emprega a irradiação ao paciente. O que a indústria trouxe de melhoria nesses equipamentos de radioterapia é a maneira de fazer um tratamento mais dirigido e preciso. O fator limitante não é o tratamento do órgão-alvo, mas, sim, os outros órgãos normais próximos. Escuto muitas pessoas falarem que estamos fazendo experiências com essa tecnologia. De forma alguma. O que temos feito é empregar a radioterapia de uma maneira mais segura e menos tóxica para o paciente. E, obviamente, quando a nossa segurança aumenta, podemos elevar a dose do tratamento e talvez chegar a um melhor índice de cura. Como fazer com que o brasileiro tenha consciência da importância da prevenção? Temos que conscientizar a população para os programas de prevenção. Prevenir é mais barato, menos doloroso para todos, é a maneira mais simples. A prevenção é fundamental e requer um trabalho da sociedade médica e dos órgãos públicos para que consigamos fazer essa campanha e

5 Página 5 de 5 divulgá-la de maneira eficaz. Acredito que a desmitificação e a orientação, associadas a campanhas sociais e de prevenção, levam a um modelo que pode trazer resultados muitos significativos. Logicamente, nem todas as campanhas de prevenção servirão para tudo. A prevenção é feita para aquele câncer em que a incidência é maior. Os tumores de cabeça e pescoço, esôfago e de colo de útero, podem ser prevenidos com mudanças de posturas que são pouco divulgadas. Para os que têm predisposição genética, a postura é outra, de se fazer mais exames, de acompanhamento. Logicamente, há alguns tipos de câncer em que não há prevenção, não existe. A medicina é muito falha, por isso vivemos num processo contínuo de trabalho, de pesquisa. Os progressos são lentos, mas se olharmos retrospectivamente, veremos que a última década foi da oncologia. Assim como a década anterior foi da neurocirurgia e a que a antecedeu foi a da cardiologia. O envelhecimento da população deve ampliar a incidência de câncer? A população envelheceu e em vez de morrer de doenças antes comuns, vai morrer de câncer ou de doença coronária, por exemplo. No caso da coronária, por exemplo, a prevenção tem feito enorme diferença. Atualmente há muita gente de 35 anos tomando remédio para colesterol. O perfil da população está mudando. Por isso é importante desmitificar a doença do câncer para que a pessoa possa ter esse acesso e resolver as coisas da melhor maneira possível.