UM TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARA OS AÇORES

Transcrição

1 Secção A Judicatura e o Ministério Público na Reforma da Justiça UM TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARA OS AÇORES Depois da ideia geral da virtude, não conheço outra ideia mais bela do que a dos direitos, ou melhor, estas duas noções confundem-se. A ideia dos direitos não é mais do que a ideia da virtude introduzida no mundo político. Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América Portugal é um Estado unitário regional, respeitando na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, como decorre do artigo 6º da Constituição da República Portuguesa (CRP). O regime político-administrativo dos Açores e da Madeira recolhe os seus fundamentos nas históricas aspirações autonomistas dos povos açoriano e madeirense e nas características geográficas, sociais e culturais definidoras duma identidade regional. Subjacente à escolha da Assembleia Constituinte está o reconhecimento de que o autogoverno, com órgãos de governo próprio é uma solução adequada para permitir uma melhor participação política dos cidadãos, o desenvolvimento económico e social regional e a

2 defesa dos interesses regionais, reforçando a coesão e a solidariedade entre todas as parcelas do território nacional e entre todos os portugueses. A Constituição de 1976 atribuiu aos Açores e à Madeira o carácter de Regiões Autónomas dotadas de Estatutos político-administrativos próprios (cf. o nº 2 do artigo 6º da versão originária da CRP), conferindo-lhes autonomia política, legislativa, administrativa, financeira e patrimonial, aprofundada em sucessivas revisões constitucionais. Desde a sua versão originária, a Constituição reservou aos Estatutos Político- Administrativos das Regiões Autónomas - enquanto leis de valor reforçado e natureza paramétrica a densificação da autonomia regional e dos poderes e competências dos órgãos de governo próprio. O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA), aprovado pela Lei nº 2/2009, de 12 de Janeiro, estabelece que a existência duma organização judiciária que tenha em conta as especificidades da Região constitui um direito regional. Já o artigo 133º do EPARAA, sob a epígrafe organização judiciária, determina que a organização judiciária regional considere, não apenas as especificidades, mas já as necessidades próprias da Região. Isto é, o legislador impõe um poder-dever quanto à organização judiciária nos Açores, no respeito de dois parâmetros estatutários: i) Adaptar-se, em função da especificidade regional e dos postulados do princípio da subsidiariedade: eficácia e adequação; ii) Concretizar soluções funcionais que dêem resposta às necessidades decorrentes da condição insular e periférica, traduzida na dispersão geográfica, na dupla insularidade e multi-periferia e na diferente dimensão e densidade populacional de cada uma das nove ilhas. Aquelas normas do EPARAA impõem uma ponderação das especificidades e necessidades regionais quanto à organização judiciária, assumindo um princípio de descentralização judiciária, cogente do legislador ordinário e absolutamente coerente com o dever constitucional que incumbe ao Estado de assegurar o direito fundamental de acesso aos tribunais que, por definição, compreende uma organização judiciária que se adapte às necessidades das populações, nas diferentes parcelas do território nacional. No fundo, uma organização judiciária que promova uma justiça de proximidade.

3 Em 2006, aquando do início dos trabalhos de revisão do EPARAA, na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o PSD, na Carta de Princípios que então apresentou, foi o único partido com assento parlamentar a defender o princípio da adaptação da organização judiciária à Região, prevendo a criação dum Tribunal da Relação. Na sequência do processo de reforma do EPARAA, a Assembleia Legislativa aprovou, por unanimidade, a proposta de Lei nº 3/2007 (também unanimemente subscrita) enviada à Assembleia da República para aprovação e que originaria a Lei nº 2/2009, de 12 de Janeiro. A proposta de Lei nº 3/ fixava, expressamente, no nº 2 do artigo 130º (actual artigo 133º) o sentido do reconhecimento para-constitucional duma organização judiciária nos Açores submetida aos parâmetros estatutários da especificidade e necessidade, ao dispor que cada ilha, com excepção do Corvo, deve corresponder, pelo menos, à área de circunscrição de um tribunal judicial de primeira instância, devendo existir no arquipélago um tribunal judicial de segunda instância (sublinhado nosso). O segmento final desta norma seria posteriormente rejeitado pela Assembleia da República. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores manifestou, deste modo, uma inequívoca preferência pela instalação na Região dum tribunal de segunda instância, densificando o princípio da descentralização da organização judiciária no plano regional, em linha com a opção constitucional e legislativa já tomada quanto ao Tribunal de Contas, cujo funcionamento descentralizado está previsto na Constituição, desde 1989 (nº 3 do artigo 214º) estabelecendo-se a existência de secções, em cada uma das Regiões Autónomas, com competência plena, cf. o nº 4. No domínio da justiça constitucional, os Deputados Mota Amaral e Joaquim Ponte no projecto de revisão constitucional nº 7/XI/2ª, apresentado na Assembleia da República, em Outubro de 2010, propuseram uma alteração na composição do Tribunal Constitucional, fazendo intervir no processo de designação dos Juízes Conselheiros cada uma das Regiões Autónomas, através da eleição dum Juiz, por cada uma das respectivas Assembleias Legislativas, por uma maioria qualificada de 2/3 dos Deputados. Do mesmo modo que sucedeu com a Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, a criação e instalação dum Tribunal da Relação, na Região Autónoma dos Açores, com competência plena, constituiria uma solução ajustada à boa administração da justiça, traduzindo a aplicação do princípio da descentralização da organização judiciária, a

4 adequação duma função de soberania à realidade regional, retomando a existência dum tribunal de segunda instância criado pelo Decreto de 16 de Maio de 1832 e extinto pelo Decreto de 24 de Outubro de 1910, no advento da República. A criação dum Tribunal da Relação nos Açores permitiria, ainda, aproximar a administração da justiça da nova realidade normativa decorrente da expansão do direito regional, em resultado do exercício das competências legislativas regionais, em concorrência legislativa com a República, em domínios tão diversos como, por exemplo, o arrendamento rural, as zonas protegidas, classificadas, de conversão e protecção terrestre e marinhas ou a transposição directa, para o ordenamento jurídico regional, de actos jurídicos da União Europeia. A organização judiciária, sob pena de fatal divórcio com os cidadãos, tem de considerar os aspectos simbólicos, culturais e históricos da presença dos tribunais nas nossas comunidades e do exercício do poder e autoridade do Estado que eles traduzem e representam. Nesta perspectiva, a criação dum tribunal de segunda instância nos Açores decorre, com naturalidade, da adopção do modelo político da autonomia regional, eliminando a dessincronia institucional existente entre a organização do poder político e a organização judiciária, sem que tal possa ser entendido como a defesa de tribunais regionais, o que seria manifestamente inconstitucional. CONCLUSÃO A criação dum Tribunal da Relação nos Açores é uma mediada de aproximação da administração da justiça aos cidadãos, cumpre o princípio constitucional da descentralização da organização judiciária no plano regional, adapta a organização judiciária às especificidades e necessidades da Região Autónoma dos Açores e elimina a dessincronia institucional existente entre a organização do poder político e a organização judiciária.

5 Pedro Bettencourt Gomes Advogado, com a Cédula Profissional nº 125-A Conselho Distrital dos Açores Largo de São Domingos, 14 1º LISBOA-PORTUGAL Tel congressoadvogados@cg.oa.pt