A construção da normatividade a partir da relação política intersubjetiva e pública
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- Baltazar Bicalho Amarante
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1 A construção da normatividade a partir da relação política intersubjetiva e pública Vinícius Silva Bonfim 1 Resumo Embora seja declaradamente Kant o autor responsável por influenciar o construtivismo de John Rawls em A Theory of Justice (1971), será a filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel ( ) objeto de análise e investigação para com a obra Political Liberalism (1993) da teoria de Rawls. O reexame dos conceitos de Hegel e Rawls, tais como Espírito (Geist), Reconciliação (Versöhnung) e Eticidade (Sitllichkeit) e Construtivismo Político (Political Constructivism), Consenso Sobreposto (Overlapping Consensus) e Razão Pública (Public Reason) possibilitará demonstrar pontos de convergência e interlocução teórica entre os autores, sobretudo, no que diz respeito ao permanente processo de renovação dos consensos advindos do exercício político e da necessária relação intersubjetiva para a formação da normatividade. Portanto, se ressalta a perspectiva intersubjetiva de construção dos processos políticos de formação de consensos que se sobrepõem no decorrer de debates promovidos no interior da cultura política pública e das instituições democráticas a partir da tese de Rawls para correlacionar aos processos do espírito e da relação intersubjetiva de Hegel para se alcançar a hipótese do trabalho. Palavras-chave: Intersubjetividade; razão pública; cultura política pública e reconhecimento. Introdução John Rawls ( ), em sua obra História da Filosofia Moral, ao apresentar Hegel ( ) como um defensor do chamado project of reconciliation, não só mostra interesse pela descrição da história da filosofia moral e política, mas como também pelo tema da reconciliação como elemento reformulador da teoria política e que, por intepretação aqui realizada, se aproxima da justiça como imparcialidade. Ao se afastar do construtivismo kantiano Rawls acaba se aproximando da perspectiva do projeto de reconciliação de Hegel por entender a necessidade da dinâmica intersubjetiva em um processo político de alcance permanente de consensos que se sobrepõem no decorrer de debates promovidos em uma democracia constitucional de instituições legítimas e representativas. Esse será o tema explorado no artigo e que visa, sobretudo, instigar cada vez mais as possibilidades correlacionais entre ambos os autores e demosntrar, que a partir do libersalismo político de rawls, há uma forte matriz da teoria do reconhecimento, mas que antes de tudo, trabalha 1 Doutor em Teoria do Direito pela Puc/Minas. Professor de Teoria Geral do Direito Público na Pós-Graduação Latu Sensu em Direito Ambiental e Minerário da Puc/Minas. Professor de Ciência Política/Teoria do Estado e Direito Constitucional I, II e III na Faculdade Arquidiocesana de Curvelo. bonfim@hotmail.com.br
2 com a dinâmica semelhantes à de Hegel, da mutabilidade e contraposição dos momentos, quer dizer, uma sociedade que se move, modifica, mas, sobretudo, se autorregula a partir da liberdade e autoconsciência das subjetividades. Desenvolvimento Hegel, autor significativo para as ciências humanas e sociais, está dentro do que se chama de filosofia moderna. A filosofia moderna se caracteriza por uma mudança de eixo gravitacional que antes, especialmente, de Descartes, rodava ao entorno de um projeto ideológico e, sobretudo, metafísico. Mas após o período do Idealismo Alemão o conhecimento é pensado através de um movimento dialético e negativo que tem o reconhecimento do outro ser vivente, seja tanto para se autoarfirmar enquanto pessoa, quanto para constituir a vida ética do Estado, do direito e da política, como fundamentais para a construção da eticidade. Veja Hegel nesse sentido: É justamente essa posição da filosofia para a efetividade, a qual se referem os mal-entendidos, e assim volto ao que observei anteriormente, de que a filosofia, porque ela é o indagar do racional, é precisamente por isso o aprender do presente e do efetivo, não o estabelecer de um além, sabe Deus onde deveria estar, - ou do qual bem se sabe dizer de fato onde está, a saber, no erro de um raciocinar vazio, unilateral. (HEGEL, 2010, p. 41). Falar de liberdade em Hegel é também assumir a autonomia individual como principal característica do cidadão moderno. Hegel fecha o ciclo de estudos que ficou conhecido como idealismo transcendental, contemporaneamente também chamado de Idealismo Alemão. Este movimento durou cerca de setenta anos e teve como precursor Emmanuel Kant. Cabe ressaltar que importantes expoentes como Schelling e Fichte tabém contribuíram também significativamente para o processo de construção do espírito. Apesar das claras influências que Hegel sofre de Kant, este elabora sua teoria ao entorno de um sujeito que isoladamente faz suas especulações filosóficas, portanto, destituído de qualquer relação intersubjetiva que possibilite o processo de refutação de ideias, um indivíduo vinculado a uma metodologia solipsista que estimula o pensamento mentalista, portanto, a priori. (HABERMAS, 2004, p. 190).
3 Kant contribuiu muito para pensar a validade do direito e, sobretudo, foi forte influência para Rawls desenvolver seu primeiro construtivismo. A difícil tarefa que aqui se pretende é exatamente demonstrar como a influência sofrida por Rawls não se limita ao transcendentalismo kantiano, mas reformular uma leitura que, a partir do momento que a pretensão do autor é desenvolver uma perspectiva normativa intersubjetiva e deliberativa, possa tornar Hegel autor central para toda a discussão da política contemporânea. A dialética do reconhecimento em Hegel é peça chave para a reconstrução de uma ética aristotélica que valoriza a análise psicológica do a posteriori. Para Hegel o indivíduo é, em sua essência, um ser histórico em contínuo processo de formação que obtem o conhecimento pelo uso intersubjetivo da razão prática, ultrapassando qualquer compreensão prévia de alcance do espírito (a priori). Hegel rompe com o pensamento kantiano ao exigir a necessária relação intersubjetiva como projeto de construção da realidade, simultaneamente, da racionalidade (efetividade). A célebre frase de Hegel O que é racional é efetivo, o que é efetivo é racional (HEGEL, 2010, p. 41) demonstra que o objetivo do autor, enquanto pesquisador da ciência filosófica do direito é efetivar a ideia do direito, portanto, torna-lo real, torna-lo efetivo (HEGEL, 2010, p 47). A tarefa da filosofia é conceituar o que é, pois o que é, é razão. No que concerne ao indivíduo, cada um é de toda maneira um filho de seu tempo; assim a filosofia é também seu tempo apreendido em pensamentos. (HEGEL, 2010, p. 43). A ideia do direito somente pode ser entendida, portanto, como filha do seu tempo, uma vez que a filosofia do direito, pensada para e pelos indivíduos, cria conceitos e torna-os efetivos. De acordo com a teoria de Hegel, o ponto da dinâmica da vida é a busca por reconhecimento. O indivíduo reconhece a alteridade (qualidade do outro ser) por ter a ipseidade (sua própria individualidade) respeitada. Ele, sujeito, único, irrepetível, igual a si mesmo e diferente de todos os demais, faz parte de um projeto da realidade que somente será racional se compartilhada a partir de uma concepção de pessoa que, justificadamente, contribui com o processo de refutação e afirmação das pretensões de validade e verdade, seja do direito, da política, mas, sobretudo, da realidade. É essa concepção que começa a ser desenvolvida em Realphilosophy e System der Sittlichkeit. Hegel desenvolve esta dinâmica e mostra que nas relações culturais e sociais, permanentemente, envolve os indivíduos em uma relação bipolar. O si mesmo e o outro. O si
4 mesmo só se constitui, só se desenvolve neste processo de contraposição, assimilação, aceitação, por negação, reconhecimento e luta por reconhecimento com os outros. Essa é a dinâmica que Hegel utiliza inicialmente partindo da filosofia da reconciliação para desenvolver o seu sistema. A realização deste processo, ou sua efetivação, é torná-lo real. O conceito de algo é simplesmente quando se têm uma possibilidade do que ele é, e este é produto da ideia, aqui ideia lê-se como sinônimo de razão. O que os seres são fundamentalmente para Hegel, enquanto seres, mortais, é racionalidade, ideia em um projeto de efetivação, lê-se atualidade. Essa racionalidade começa a se atualizar criando conceitos, representações que são condições de possibilidades, isso porque o próprio indivíduo humano na perspectiva de Hegel é este processo permanente de efetivação de possibilidade, quer dizer, sua coerência teórica demonstra que o projeto do direito, do Estado, da política se faz na mesma dinâmica da formação do sujeito, em um processo de aceitação e negação permanente que a eticidade exige. Se sua teoria gira ao entorno da ideia, a realidade passa a ser tratada como inteligível, a realidade não é dada de repente, mas atualizada progressivamente, dialeticamente por negações e aceitações, e a sua atualização mais elevada será o espírito. Assim como a liberdade que nega o que ameaça negá-la, o mesmo ocorre com o espírito, uma vez que ele só subsiste em liberdade e está por si mesmo em sua constituição dialética e dinâmica. O espírito desenvolve no sujeito a autoconsciência a partir da vivência de mundo, no mundo, com os outros, com conflitos e soluções. O espírito é atividade e consciência de si por um processo de efetivação da realidade. Consequentemente, espírito é essencialmente uma holística concepção sócio-intersubjetiva (WILLIAMS, 1992, p. 191). 2 Ou ainda no mesmo sentido: O espírito não é uma coisa (res), mas sim uma atividade que se esforça para alcançar seu fim, vale dizer, a subjetividade absoluta (WALSH, 2012, p. 215). 3 A possibilidade da autoconsciência do indivíduo humano, que conhece a si mesmo e afirma sua identidade, portanto, reconhece as alteridades como diferentes subjetividades que se constituem em um processo dialético de contraposição e de negação, possibilita o projeto da liberdade em Hegel ser constituído. De acordo com o autor: Mas é nisso que residem a legitimação e mesmo a obrigação para todo o pensamento de também seu elã, e, contudo, não é em busca da pedra do 2 Consequently, Geist is this essentially a holistic social-intersubjective conception. 3 El espírito es actividad, es decir, no es uma cosa (res). Es uma actividad que se esfuerza para lograr su fin, vale a decir, la subjetividad absoluta.
5 saber [filosofal], pois a busca é poupada pelo filosofar de nosso tempo, e cada um, com a mesma verdade que se põe em pé e marcha, está certo de ter essa pedra em seu poder. (HEGEL, 2010, p. 35). É na vida ética que a liberdade é plenamente objetivada, na dimensão do que Hegel chama de eticidade. A eticidade situa as relações sociais e intersubjetivas no interior das quais os indivíduos se reconhecem mutuamente. Por ser a eticidade constituída inteiramente por relações sociais de reconhecimento intersubjetivo é que a liberdade individual pode efetuar-se como liberdade concreta e não mais abstrata (HONNETH, 2007). O direito, a partir dessa dimensão dialética, será a negação de momentos, mas, sobretudo, um reflexo das liberdades individuais que atestam e afirmam a necessidade de um Estado com bases essencialmente éticas. Neste movimento de liberdade, a atualização do Estado de direito ocorre em um processo de efetivação de possibilidades que são criadas a partir das individualidades das vontades, portanto, é nele que a racionalidade está efetivamente presente. O Estado é a efetividade da liberdade concreta. O Estado, enquanto efetividade da vontade substancial é o racional em si e para si. (HEGEL, 2010). Mas ressalta o autor: Ao contrário, o mundo ético, o Estado, ela, a razão, tal como ela se efetiva no elemento da autoconsciência, não deve fruir da felicidade de que a razão se afirme e permaneça nele, que, de fato, conquistou força e poder nesse elemento. (Hegel 2010, p. 35). A formação das identidades dos sujeitos deve estar vinculada de modo necessário às experiências de reconhecimento intersubjetivo, experiências que fazem com que o indivíduo seja um processo permanente de atualização de possibilidade, quer dizer, para Hegel o indivíduo não é, mas está a caminho de ser, e essa distância existente entre ser e não ser somente se solve com a transformação. Esse movimento humano acaba por representar também o movimento do direito de constatações de momentos, como determinações éticas que devem fazer parte do mundo das obrigações. Esse movimento é a característica de um diálogo não concludente da dialética de Hegel, são superações que conservam o momento superado para manter o movimento. Esse movimento cíclico, permanente e humano é central para pensar a interligação existente entre Hegel e Rawls, especialmente após a obra Liberalismo Político, pois, sob o pressuposto de se garantir as liberdades individuais e abrir-se para a deliberação pública os espaços decisórios, é que o conceito de Overlapping Consensus (consenso sobreposto) é constituído. Dentro da filosofia política, John Rawls ocupa lugar singular nas discussões sobre democracia, tanto por produzir novas explanações que dizem respeito à moral e ao direito, quanto
6 por incentivar novos escritores e críticos a pensarem sobre questões por ele levantadas. Com a publicação de A Theory of Justice (TJ) de 1971, o autor ganhou notoriedade mundial ao resgatar a discussão fundamental sobre liberdades individuais e igualdades de oportunidades. Rawls é profundamente influenciando pelo pensamento de Kant, o que ele afirma abertamente na obra TJ: A teoria que resulta é de natureza fortemente kantiana (RAWLS, 1971, p. VIII, tradução nossa). 4 Mas a pesquisa aqui se interessa não especificamente por esse vínculo com Kant, mas sim pelas abdicações teóricas realizadas por Rawls para se aproximar de um pensamento hegeliano, o que não é assumido diretamente pelo autor e que constitui como objetivo geral desenvolvimento pela pesquisa. Rawls reuniu em Political Liberalism ( LP) um conjunto de conferências que versam sobre filosofia política com o intuito de resolver problemas de aplicação na obra TJ e responder aos seus críticos. TJ tinha deixado um legado difícil para Rawls resolver, que é o de concretizar a ideia de estabilidade das instituições livres de um regime democrático, bem como o de realizar o projeto de uma sociedade bem-ordenada da justiça como imparcialidade. Na década de 80, a revisão de alguns conceitos expostos em TJ e também a criação de outros na obra LP, fizeram com que Rawls passasse a tratar a questão da justiça como imparcialidade, desde o princípio, como uma concepção política de justiça que se constitui intersubjetivamente, através do modelo de democracia deliberativa e de aplicação da razão pública. Rawls em TJ utilizou a concepção de pessoa fundada em Kant, em que encontrou fundamentado o conceito de liberdade, dignidade e de autonomia. 5 Já no LP o autor se afasta de alguns fundamentos teóricos kantianos, sem esquecê-los, para melhor elaborar uma teoria que proporcionasse ao sujeito moderno o exercício de sua autonomia através do exercício político igual e, agora, de maneira intersubjetiva, o que era irrealizável a partir tão somente da matriz kantiana. É esse o vínculo buscado na pesquisa, a saída de um projeto com base exclusivamente kantiana para a aproximação de uma filosofia política que possui raízes hegelianas. Rawls reduziu os traços metafísicos de TJ e transformou sua teoria da justiça como imparcialidade em uma concepção política de justiça capaz de se sustentar por si só. Portanto, o conceito de pessoa ao qual Rawls se refere é agora político, normativo e que se reconhece intersubjetivamente. 4 The theory that results is highly Kantian in nature. 5 Ressalta-se aqui que Hegel, apesar de alguns momentos ter ido contra Kant, inegavelmente também assume essa figura de pessoa elaborada por Kant.
7 É com o LP que o autor faz uso de uma razão intersubjetiva para a construção de um projeto político. A legitimidade da política é alcançada através da participação dos cidadãos na escolha dos princípios de justiça que serão aplicados na estrutura de base da sociedade. O justo é instituído politicamente mediante consensos sobrepostos, que, no exercício da razão pública, remontam a uma concepção política de justiça. E, para dar sua visão sobre a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça, Rawls desenha a ideia do construtivismo político. O construtivismo político é esse movimento de deliberação dos juízos ponderados procedimentalmente que representam uma ordem de valores políticos da sociedade que determinam a aplicação de seus princípios políticos de justiça. O construtivismo político dispõe sobre a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça. Para o autor, uma vez alcançado o equilíbrio reflexivo, os princípios de justiça política (conteúdo) podem apresentar-se como o resultado de certo procedimento de construção (estrutura). A legitimidade da política é alcançada através da participação dos cidadãos na escolha dos princípios de justiça que serão aplicados na estrutura de base da sociedade. O justo é instituído politicamente mediante consensos sobrepostos, que, no exercício da razão pública, remontam a uma concepção política de justiça. E, para dar sua visão sobre a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça, Rawls desenha a ideia do construtivismo político. O escopo do autor é elaborar uma concepção construtivista de justiça política, não é criar ou defender uma doutrina moral abrangente (RAWLS, 2005, p. 90). A concepção política de constituição dos princípios de justiça somente tem sentido se pensada em uma sociedade de cooperação permanente entre pessoas livres e iguais que fazem uso do consenso sobreposto e da razão pública, portanto, de um fundamentada em um projeto de reconciliação. Para mostrar que a sociedade democrática bem-ordenada, marcada pelo pluralismo razoável, pode unificar-se e tornar-se estável, Rawls recorre ao consenso sobreposto (overlapping consensus) de doutrinas abrangentes razoáveis. As doutrinas abrangentes, tendo diferentes concepções de bem, apresentam fundamentos racionais e razoáveis que, no encontro de uns com os outros, acabam por permitir que se chegue a um acordo do que seria aceitável em uma democracia constitucional. O consenso sobreposto possibilita que o consenso tenha seu conceito produzido no tempo pelos cidadãos no exercício de suas virtudes políticas. O liberalismo político está em busca de
8 uma concepção política de justiça que possa conquistar o apoio de um consenso sobreposto de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis em uma sociedade que seja regulada por tal concepção (RAWLS, 2005, p. 10, tradução nossa). 6 Os consensos sobrepostos são constituídos a partir dos debates públicos que determinam, a partir da apresentação de razões, quais seriam os ajustes e acordos aceitáveis pelas doutrinas abrangentes razoáveis e através de qual fundamento seria possível para a composição da razão pública. Como o próprio nome sugere, os consensos sobrepostos são constituídos sucessivamente aos demais consensos já existentes na estrutura de base da sociedade. Eles dependem da redução dos conflitos entre os valores na cultura de fundo da sociedade civil, tanto no que diz respeito às questões de igualdade política e de oportunidade, quanto de liberdade e respeito mútuo. Rawls discorre a respeito: Uma concepção política é, no melhor dos casos, somente uma estrutura de deliberação e de reflexão que serve de guia e pode nos ajudar a alcançar um acordo político, pelo menos sobre elementos constitucionais essenciais e sobre questões de justiça básica. (RAWLS, 2005 p. 156, tradução nossa). 7 O autor parte do pressuposto de que a sociedade está em uma empreitada cooperativa e precisa dessa vontade, disposição, educação para a redução dos conflitos na sociedade. O político em Rawls faz a mediação entre a moral (doutrinas abrangentes razoáveis) e o direito (instituições públicas). O exercício cívico, dentro da proposta do liberalismo político, faz parte dos direitos políticos dos cidadãos que compartilham o mesmo status de cidadania e, basicamente, atuam na estrutura de base da sociedade. A possibilidade do espaço público em uma sociedade bem-ordenada, livre e justa, onde as pessoas racionais e razoáveis, em condições de profundos conflitos entre as doutrinas abrangentes professadas dentro dos limites do pluralismo razoável, possam permanecer juntas e se autorrespeitar, somente pode ocorrer a partir da transformação de um consenso constitucional em um consenso sobreposto, que surge como forma de expressão da razão pública compartilhada. Para Rawls a filosofia é importante por possibilitar a reconciliação da racionalidade moderna, podendo articular os princípios de liberdade e igualdade, também por possibilitar uma 6 Political liberalism looks for a political conception of justice that we hope can gain the support of an overlapping consensus of reasonable religious, philosophical, and moral doctrines lays the basic in a society regulated by it. 7 A political conception is at best but a guiding framework of deliberation and reflection which helps us reach political agreement on at least the constitutional essentials and the basic questions of justice.
9 exigência normativa do ideal de justiça como imparcialidade com valores e convicções históricas de uma sociedade democrática. Essa filosofia política de Rawls coaduna com a filosofia do direito de Hegel. A concepção política de justiça é uma concepção cujo conteúdo é determinado por ideais, princípios e critérios que são tidos como normas que articulam valores políticos. Esta concepção normativa que oferece as bases para o exercício político dos cidadãos, agentes políticos que agem com base nos critérios de reciprocidade e razoabilidade, advém de fatos constatativos de dever. Portanto, a normatividade ocorre pela pessoa política que, na esfera do exercício do dever de civilidade, agindo com base na reciprocidade, acolhe uma concepção política que guia a estrutura básica da sociedade. Essa é uma questão central para a democracia deliberativa, principalmente, para o que se propõe a estudar neste artigo, a saber, a relação entre os conceitos hegelianos e rawlsenianos diante do projeto de construção de instituições públicas legítimas e de um Estado Constitucional. Vê-se que tanto o estado fundado na razão de Hegel, quanto o Estado Constitucional de Rawls possuem as mesmas matrizes. Rawls ao afirmar a necessidade do dever de civilidade em uma democracia deliberativa acaba por ir ao encontro do pensamento de Hegel da dinâmica de reconhecimento mútuo e que, a partir dessa condição de efetividade do Estado, do Direito e da Política, ambos os autores caminham em mesma direção ao reconhecimento mútuo e intersubjetivo de pessoas (cidadãos) livres e iguais. Assim, percebe-se que no momento que Rawls faz menção à estrutura de base da sociedade, às instituições democráticas e que regulamentam a organização social e do estado, aproximam-se muito da ideia de eticidade de Hegel, do espaço intersubjetivo de construção da razão e de efetividade dos direitos. CONCLUSÃO Pelo o que acima foi exposto, uma proposta investigativa que relaciona a teoria do reconhecimento de Hegel com a teoria da justiça como imparcialidade de Rawls, apesar das distâncias temporais e, sobretudo, das declarações de Rawls de se aproximar de Kant, viu-se que a dinâmica instaurada pelo autor na obra Political Liberasm (1993) é diferente da matriz
10 anteriormente adotada em Theory of Justice (1971). Se em um primeiro momento o autor declara abertamente sua influência ao transcendentalismo kantiano, em um segundo momento, a tese da justiça como imparcialidade se assemelha cada vez mais com a teoria do reconhecimento de Hegel. A análise crítica que diz respeito às semelhanças entre as teorias acima citadas possibilita realizar uma aproximação de conceitos de ambos os autores e mostrar, através da funcionalidade teórica, que apesar de Rawls não trazer de maneira declarada a influência hegeliana, muito pelo contrário, grande parte de seus críticos assumem a vertente hegueliana, não seria possível pensar a ideia de razão pública que não seja a partir de forte vinculo com o projeto moderno intersubjetivo de constituição da realidade. Três conceitos são centrais para a formação da teoria liberal política de Rawls, quais sejam, construtivismo político, consenso sobreposto e razão pública. Eles possibilitam a aproximação acima relatada, pois estes conceitos somente fazem sentido se os cidadãos forem iguais e, aceitem, a partir de suas diferenças, portanto, respeitando as alteridades, que a dinâmica de renovação dos consensos que configuram as instituições públicas, possa ocorrer através de apresentação de razões justificadas publicamente. Quer dizer que, apesar das diferenças morais, culturais, religiosas etc das doutrinas abrangentes, Rawls pensa um sistema de formação do público a partir de momentos constitutivos de reconhecimento. Esse reconhecimento é o que garante o critério de legitimidade do pensamento liberal, portanto, o sentimento de coautoria e participação é central para a conclusão de um processo intersubjetivo de construção de decisões. Conclui-se, portanto, que apesar da omissão do autor quanto a sua aproximação de Hegel, é impossível pensar o projeto liberal igualitário fora da perspectiva dialética, negativa, especialmente que se caracteriza por uma democracia constitucional que garante a diferença. Certo é que Hegel, autor do século XIX, ainda esta presente nos processos de formação epistemológicos e apesar de ter sido referência para o idealismo alemão, ainda na contemporaneidade se torna fundamental pensador que contribui para a elaboração de uma sociedade que está em permanente modificação e que se posiciona pelos processos de formação do direito e do Estado.
11 Referências bibliográficas GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, xxiv, 261 p. (Justiça e direito ). HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Principes de La Philosophie Du Droit. Traduit de l'allemand par André Kaan et préfacé par Jean Hyppolite. Gallimard p. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Linhas Fundamentais da filosofia do direito, ou Direito natural e ciência do estado em compêndio / G. W. F. Hegel ; tradução Filosofia do Direito; tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, (Clássicos). HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: São Paulo: Edições Loyola, v. (O pensamento ocidental). HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 5. ed. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, , [2] p. (Pensamento humano ) ISBN ] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia Real: Jenaer Systementwürfe III. Trad. Jose Maria Ripalda. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1984 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. 2. ed. São Paulo: Discurso, p. ISBN HONNETH, Axel, Sofrimento por indeterminação: uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel. / Axel Honneth. São Paulo : Editora Singular. Esfera Pública, HONDERICH, Ted. The Oxford Companion to Philosophy. New York:Oxford University Press, LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de Filosofia IV introdução à ética filosófica I. editora Loyola, São Paulo, LEFEBVRE, Jean-Pierre/m. Hegel e a sociedade / Jean Pierre Lefebvre, Pierre Macherey/ xx / r; tradução, Thereza Chistina Ferreira Stummer, Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: discurso editorial, p. (Clássicos e Comentadores, Edição de Bolso). KERVÉGAN, Jean-François. Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité, PUF, «Léviathan»,1992 ; rééd. PUF, «Quadrige», (USAR EM PORTUGUêS) KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy. An Introduction. Second edition. Oxford University press
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