BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO CIVIL.

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1 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO CIVIL. Giulliano Tozzi Coelho Introdução Não há dúvidas que a criação do instituto da pessoa jurídica, dotada de personalidade própria e de responsabilidade limitada é um dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento da atividade empresarial e econômica ao longo do tempo. Contudo, como é próprio da natureza do ser humano, tais características possibilitaram uma utilização antijurídica da pessoa jurídica no sentido de perpetrar fraudes, driblar obrigações e jamais satisfazer créditos contraídos. A disregard doctrine foi, então, o meio utilizado pelos tribunais para combater esse comportamento ilícito e será justamente este o tema do presente ensaio. Para tanto, faremos uma breve análise histórica do surgimento da teoria, bem como analisaremos os requisitos para a aplicação da teoria no Código Civil Brasileiro. Por fim, será analisada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na aplicação do instituto. 2 Histórico A teoria da desconsideração teve sua origem nos países que adotam o sistema da common law, mais especificamente nos Estados Unidos. Sua primeira aparição data de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux, no 1 1 Advogado. Sócio do Escritório Garrido & Tozzi Advogados. Conciliador Cível.

2 qual foi definida a competência do tribunal federal para apreciar o caso em razão da desconsideração da personalidade de uma Corporation, para conhecer do conflito entre dois indivíduos que por detrás dela atuavam. Importante notar que a Constituição dos Estados Unidos definia a competência dos tribunais federais para apreciar conflitos entre indivíduos de estados diferentes e não de pessoas jurídicas 2. No Reino Unido, o caso paradigmático foi o famoso Solomon v. Solomon & Co., de No entanto, a House of Lords reformou a decisão da Corte de Apelação que desconsiderou a personalidade jurídica da companhia criado por Solomon, reputando-a como uma extensão de sua atividade pessoal, o que acabou por gerar uma influência negativa na aplicação da teoria no Direito britânico 3. Como bem saliente Munhoz, a teoria da desconsideração tem origem jurisprudencial, pautando-se por soluções casuísticas, sob a influência da preocupação da justiça para o caso concreto. Ao surgir como produto da jurisprudência e não da ciência do direito, a teoria tem levantado dúvidas e incertezas, em virtude das múltiplas situações e critérios utilizados pelos tribunais, motivo de perplexidade especialmente no civil law, que pressupõe uma sistematização dogmática dos institutos 4. No cenário nacional, o pioneirismo deve-se a Rubens Requião que publicou o artigo Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica, de 1969, a partir do qual a disregard doctrine passou a ser objeto de análise 2 2 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Comtemporânea e Direito Societário: poder de controle e grupos de sociedades. São Paulo: Juarez de Oliveira, p KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcanti. Desconsideração da Personalidade Jurídica: disregard doctrine e os grupos de empresa. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, p MUNHOZ, Eduardo Secchi. op. cit., p. 150.

3 por doutrinadores e tribunais, além de diretamente consagrada em alguns textos legais 5. Exemplo disto são o art. 2º, 2º, da CLT e o art. 28, CDC. Finalmente, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o legislador abordou expressamente a teoria da desconsideração no âmbito das relações privadas no art. 50 do diploma que prevê: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Feitas estas breves considerações sobre o histórico da disregard doctrine, passa-se a enfrentar o problema de sua aplicação prática. 3 Disregard Doctrine A disregard doctrine tem sido conceituada como a suspensão temporária da personalidade jurídica, em determinado caso concreto, atribuindo-se aos seus sócios ou administradores as relações que incialmente seriam imputadas à pessoa jurídica 6. Destaca-se, no entanto, que a aplicação da teoria da desconsideração não importa na extinção da sociedade, mas na perda da eficácia desta personalidade em determinado ato. A este respeito, leciona Ricardo Negrão: Na aplicação da teoria do superamento, também chamada da penetração ou disregard of legal entity, não se extingue a sociedade, mas apenas se afastam os efeitos legais decorrentes da personalidade jurídica para estender a um, alguns ou todos os sócios os efeitos de obrigações que a rigor seriam suportados exclusivamente pela pessoa jurídica KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcanti. op. cit., p MUNHOZ, Eduardo Secchi. op. cit., p NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 7 ed. São Paulo: Saraiva, p. 296.

4 No nosso ordenamento, a teoria da desconsideração tem como fundamento o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e pela confusão patrimonial, tal como exposto no art. 50, do Código Civil. Mas o que deve ser entendido exatamente por desvio de finalidade e por confusão patrimonial? Ensinam Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho que toda a pessoa jurídica é criada para o desempenho de funções determinadas, consistente da criação de um centro de interesses autônomo 8. Pode-se acrescentar que é através desta criação de um centro de interesses autônomo que se torna possível a reunião de esforços e recursos econômicos para a realização de atividades que não seriam possíveis de serem realizadas por pessoas isoladamente consideradas. Deve-se ter em conta, entretanto, a advertência feita por Koury: A função do instituto da pessoa jurídica de limitar os riscos empresariais, através do reconhecimento da sua existência como distinta da existência de seus membros, que objetiva, principalmente, estimular o desenvolvimento social, não é evidentemente ilegítima; todavia, a sua utilização pode ter, em alguns casos, esse caráter 9. Portanto, haverá desconsideração pelo desvio da finalidade toda vez que a pessoa jurídica for utilizada com objetivos diversos daqueles preconizados pela lei, bem como o objeto social for uma mera aparência para a exploração de uma atividade diversa. Por confusão patrimonial deve-se entender a confusão existente entre os bens de propriedade da sociedade e os bens pessoais dos sócios, de modo que tanto uns quanto outros são utilizados indistintamente, como se não 4 8 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, p KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcanti. op. cit., p. 70.

5 houvesse a existência da pessoa jurídica. Cumpre lembrar que a leitura combinada dos art. 45 e do art. 985, ambos do Código Civil, consagram que a pessoa jurídica, no caso a sociedade empresária, não se confunde com seus sócios. Nesse sentido, assim ensina Antônio Carlos Malheiros: Ocorre que em muitas situações os sócios não dão importância à separação patrimonial estabelecida formalmente pela legislação, originando uma confusão entre os seus bens pessoais e os pertencentes ao patrimônio social, podendose adentrar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para averiguar a fundo esse acontecimento. Podendo o mesmo ocorrer quando houver desvio de finalidade 10. Destarte, ocorrido o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patrimonial de modo a esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica, caberá, ex vi do art. 50, Código Civil, ao credor ou ao Ministério Público, nos casos que lhe couber intervir, requerer a aplicação da teoria para estender aos sócios e administradores a obrigação de satisfazer os créditos da sociedade. Depreende-se, portanto, que na sistemática do Código Civil, a regra é o não redirecionamento das obrigações da sociedade aos seus sócios ou administradores, em respeito ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Não obstante, sempre que a o instituto for utilizado para fraudar credores, estando presentes o desvio de finalidade e/ou a confusão patrimonial, poderá o juiz aplicar a disregard doctrine, como medida excepcional. Este tem sido o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, em seu papel de uniformizador da jurisprudência infraconstitucional. Peguemos como exemplo o REsp / SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi 11. No 5 10 MALHEIROS, Antônio Carlos. Teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada às relações familiares. In: ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Temas de Direito Societário e Empresarial Comtemporâneos. São Paulo: Malheiros, p BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n Relator: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 24 de junho de Disponível em: <

6 presente caso, a Ministra expõe que não basta a mera condição de sócio majoritário para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a teoria exposta no art. 50 do Código Civil recepciona e consagra a Teoria Maior da Desconsideração, pela qual devem ser demonstrados o desvio de finalidade e a confusão patrimonial para sua aplicação. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez, também tem se manifestado pela excepcionalidade da desconsideração da personalidade com base no art. 50, do Código Civil. O Agravo de Instrumento , de relatoria do Desembargador Ergio Roque Menine, é prova disto, dispondo que, ainda que não hajam bens passíveis de penhora, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial devem ser demonstrados com prova robusta de sua existência, face a excepcionalidade da teoria da desconsideração. Apenas a título exemplificativo, colaciona-se as seguintes ementas: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DA DESCONSIDERAÇÃO PERSONALIDADE JURÍDICA. IMPOSSIBILIDADE NO CASO EM EXAME. Nos termos do art. 50, do Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica, com o direcionamento da execução para os sócios, é medida excepcional que somente pode ser determinada quando caracterizado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. No caso, a prova realizada até o momento não serve para demonstrar de forma cabal a ocorrência das aludidas hipóteses. Manutenção da decisão que se impõe. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento Nº , Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Walda Maria Melo Pierro, Julgado em 22/08/2013) AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INVIABILIDADE >. Acesso em: 27 ago RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n Relator: Desembargador Ergio Roque Menine. Porto Alegre, 23 de agosto de 2013.

7 NÃO-PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. A desconsideração da personalidade jurídica é medida extrema, uma vez que excetua a regra geral da desvinculação existente entre a pessoa jurídica e a personalidade de seus sócios. O artigo 50 do Código Civil prevê tal possibilidade, mediante o preenchimento dos seguintes requisitos: desvio de finalidade e confusão patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios. Na espécie, não há qualquer prova da prática de atos abusivos pelos sócios da agravada, que viesse a configuram desvio de finalidade ou confusão patrimonial. A inexistência de bens penhoráveis em nome da empresa não é apta, por si só, a autorizar desconsideração da personalidade jurídica da devedora. Mantida a decisão que indeferiu a desconsideração da personalidade jurídica da agravada. NEGADO SEGUIMENTO ao recuso, por decisão monocrática. (Agravo de Instrumento Nº , Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson José Gonzaga, Julgado em 14/08/2013) Percebe-se, destarte, que o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul têm adotado entendimento a respeito da desconsideração da personalidade jurídica semelhante, apenas admitindo a medida como forma excepcional e mediante prova robusta da existência de desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial. 4 Conclusão A disregard doctrine foi concebida como forma de evitar o uso da personalidade jurídica de forma abusiva, através do desvio de finalidade e da confusão patrimonial. Desta forma, evita-se a utilização do instituto de pessoas jurídicas para perpetrar fraudes e inadimplir obrigações. Ocorrerá o desvio de finalidade sempre que a pessoa jurídica for utilizada para um fim não previsto pelo legislador, como a realização de atividades ilegais e a utilização de um objeto social como simples fachada. Já a confusão patrimonial se caracteriza pelo fato de que a separação patrimonial entre pessoa jurídica e seus membros ocorre apenas no mundo jurídico, sendo completamente inexistente no mundo dos fatos. 7

8 É preciso ter em mente que a desconsideração é medida excepcional, prevalecendo como regra o princípio da autonomia e separação patrimonial da pessoa jurídica. É justamente neste sentido que o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vêm se manifestando, exigindo provas da existência dos requisitos previstos no art. 50 do Código Civil. Referências Bibliográficas: COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcanti. Desconsideração da Personalidade Jurídica: disregard doctrine e os grupos de empresa. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, MALHEIROS, Antônio Carlos. Teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada às relações familiares. In: ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Temas de Direito Societário e Empresarial Comtemporâneos. São Paulo: Malheiros, MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Comtemporânea e Direito Societário: poder de controle e grupos de sociedades. São Paulo: Juarez de Oliveira, NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 7 ed. São Paulo: Saraiva,