O PAPEL DA COMUNIDADE NA REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE E A EXPERIÊNCIA DA REDE DE VIZINHOS PROTEGIDOS 1
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1 Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP-Marília Ano Edição 6 - Número 06 Dezembro/2010 ISSN O PAPEL DA COMUNIDADE NA REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE E A EXPERIÊNCIA DA REDE DE VIZINHOS PROTEGIDOS 1 LOPES, Corinne Julie Ribeiro 2 BATELLA, Wagner 3 RESUMO Este artigo analisa o papel da comunidade na redução da criminalidade. Para tanto, realizou-se um estudo de caso da Rede de Vizinhos Protegidos, programa criado pela Polícia Militar de Minas Gerais. O foco desta pesquisa recai na prevenção por meio da participação ativa da sociedade civil, através de uma parceria com a polícia mineira. Por meio de entrevistas, análise de dados sobre criminalidade, coleta, seleção e análise de reportagens sobre o projeto, realiza-se uma análise da participação comunitária na prevenção e combate à criminalidade. Os resultados demonstram que o sentimento de pertencimento a uma comunidade, com sua devida vinculação territorial, é um importante elemento na prevenção da criminalidade. PALAVRAS-CHAVE: Criminalidade. Prevenção. Comunidade. Rede de Vizinhos Protegidos. 1 O presente artigo é uma versão revisada e ampliada da monografia desenvolvida durante o curso de especialização em Administração Pública: Ênfase em Gestão Social da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho Fundação João Pinheiro Minas Gerais. 2 Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Gestão Social pela FJP/MG. Gestora social do núcleo de prevenção à criminalidade de Vespasiano. csmilec@hotmail.com 3 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP campus de Presidente Prudente. Orientador da pesquisa. wbatella@gmail.com
2 Revista LEVS/Unesp-Marília Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/ INTRODUÇÃO O debate hodierno sobre o combate à criminalidade envolve temáticas diversas. Em sua grande maioria o foco está na repressão e inclui na agenda temas como novas tecnologias, incremento de recursos, qualificação profissional, dentre outros (BEATO, 2008). Tais pontos são comumente voltados para o trabalho do policial, entendido como principal agente responsável pela redução das taxas de criminalidade. Por outro lado, FELIX (2007, p.13) destaca que a segurança pública deve transcender a repressão e envolver formas democráticas de intervenção que evitem a reprodução da violência. O presente trabalho se apóia nessa visão e analisa o papel da sociedade civil organizada, visto como complementar à atuação policial, no enfrentamento do problema da criminalidade. Sobre isso, destacam algumas iniciativas de atuação da própria comunidade como censora e consequente redutora da criminalidade que já ocorrem nas longínquas montanhas da Ruanda, onde existem gritos de guerra para sinalizar perigo, constituindo-se em um dever para a comunidade, que pode ser punida, caso não se manifeste nessas situações. Outras iniciativas ocorrem no contexto brasileiro como o apitaço em Pernambuco, o Comitê Gestor de Segurança e Qualidade de Vida em Marília, e a Rede de Vizinhos Protegidos em Minas Gerais. Para demonstrar que as relações comunitárias têm um importante papel na redução da criminalidade, por meio da prevenção, estudar-se-á a Rede de Vizinhos Protegidos, projeto implantado em 2004, desenvolvido por meio de uma parceria entre associações de bairros e a Polícia Militar de Minas Gerais, abrangendo, atualmente, mais de cinco mil famílias. 2. CRIMINALIDADE, COMUNIDADE PREVENÇÃO Há uma bibliografia diversificada que discute o caráter multifacetado da criminalidade (FELIX, 2002; LIMA, 2002; DINIZ, 2003; BATELLA, 2008). Este entendimento da complexidade do tema em questão implica em novos olhares para o problema que superem o caráter meramente repressivo. A criminalidade não é um tema que deva ser tratado somente no âmbito policial. Esta é, também, a visão de FELIX (2007) que propõe a união de diversas esferas para a construção de políticas de segurança pública, destacando-se: a universidade, o sistema de justiça criminal, os órgãos públicos e a sociedade civil organizada. Esta última vem sendo cada vez mais estudada como protagonista na solução de seus E 182
3 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 problemas, não apenas relacionados à criminalidade, mas de uma forma geral nos processos de transformações socioespaciais (SOUZA, 2002). Encontram-se avanços significativos nos estudos da sociedade civil organizada no combate à criminalidade via movimentos sociais (SOUZA, 2008), mas escassas análises sobre o papel da organização da sociedade através de laços de comunidade. Por ser esta a forma de organização social contemplada nesta pesquisa, realiza-se a seguir uma análise deste conceito. Ao longo dos anos, o termo comunidade foi sendo revestido de vários sentidos, predominando aquele atrelado unicamente à ideia de território, que vem sendo diluído diante das inovações sociais com que se tem deparado. A mera vinculação espacial da sociedade constitui-se um critério que, tomado individualmente, apresenta-se frágil à definição de comunidade. As fronteiras sociais já não são as mesmas; a comunicação global já é uma realidade e diante disso, comunidades são, inclusive, virtuais. Nunca, em toda a história, tivemos tantas concentrações urbanas com a inacreditável densidade populacional como as que temos atualmente; esses exorbitantes adensamentos urbanos vêm perdendo, pouco a pouco, os contornos de Revista LEVS/Unesp-Marília uma comunidade e transformando-se em meros agrupamentos. Assim, em inúmeras regiões não importando o tamanho da cidade, e sim, a ruptura social, estamos muito próximos do limite da suportabilidade, dentro de uma forçada convivência, com contínuos confrontos de complexas e difusas necessidades, carências e ganâncias. (...) Há uma imensa diferença entre agrupamento e comunidade; esta pressupõe partilha de interesses e cuidado protetor mútuo, enquanto aquela se resume a uma simples agregação de pessoas com raros objetivos coletivos comuns, pontuada por sinais de uma filantropia que, no mais das vezes, por ser calculista e interesseira, beira o cinismo utilitarista (CORTELLA, 2006, p.71). Segundo SILVA (2004), há toda uma trajetória teórica para se entender este conceito. Comunidade não significa pobreza, mas, identidade. Partindo da primeira apresentação sociológica do termo, que foi construída por Ferdinand Tönnies, que o definiu em oposição ao conceito de sociedade, passando por MacIver e Page, que 183
4 Revista LEVS/Unesp-Marília acrescentaram ao termo o princípio da cooperação, chega-se ao conceito de Espinas, que é o ponto de partida para esta reflexão. SILVA (2004) destaca que essa proposta avança a dimensão geográfica do conceito de comunidade, interpretando-a na sua intercessão com a dimensão social. Dessa forma, vale lembrar que o elemento essencial de uma comunidade também é o tipo de relação interna entre seus indivíduos, permeada por uma identificação subjetiva e emocional com o conjunto. Essa relação pode se dar para a prática de criminalidades, bem como para a prática de uma cultura de paz, de uma vida cívica. Pensando nessa comunidade cívica, introduz-se, a seguir, o pensamento de Putnam. Segundo PUTNAM (2002), a comunidade cívica, fomentada pelo capital social, caracteriza-se por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração. Além dessas referências, Jane Jacobs é uma importante pensadora na discussão do presente tema. Urbanista e ativista política canadense, Jacobs trata com propriedade o termo capital social. Segundo GOMES (2005, p. 17), a autora: (...) utilizou o termo em 1960 para enfatizar o valor coletivo de laços informais de vizinhanças nas metrópoles, tornando estas localidades onde Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 esses laços se desenvolvem mais vivas, ou em uma expressão da autora, transformando estas localidades em entidades reais. A autora investiga o processo de formação do ser social ou entidade social e considera que para formação deste é necessário que um pequeno número de pessoas estabeleça ligação em relação ao todo presente em uma dada comunidade. Estas pessoas seriam responsáveis pela trama do tecido social produzindo, assim, capital social. Entretanto, estas pessoas precisariam de tempo para descobrir umas às outras e investir em uma colaboração proveitosa. Uma vez estabelecidas, estas relações tenderiam a expansão. (...) O fortalecimento destes vínculos entre vizinhos reforçaria as relações de confiança e reciprocidade impactando positivamente na presença de capital social, à medida que redes adormecidas de engajamento dos indivíduos em questões comunitárias são reativadas. 184
5 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 O que se encontra no cerne das nossas cidades, hodiernamente, na grande maioria das vezes, são agrupamentos de pessoas que entoam uma diversidade de vozes. Esses agrupamentos produzem e são condicionados pelo espaço urbano onde estão situados e que, apesar de formarem o mesmo agrupamento, são compostos por diversas individualidades, necessidades das mais variadas, indivíduos com visão de mundo plurifacetada e com interesses econômicos e políticos que podem ser antagônicos. O que pode, então, convergir essas pessoas tão diversas, a fim de que constituam uma comunidade cívica? A prevenção e o combate à criminalidade podem ser pontos de convergência. Sobre o assunto é importante destacar que, de uma forma mais sistemática, o conceito de prevenção utilizado em segurança pública surgiu sob forte influência do campo da saúde pública, segundo o qual é possível antecipar, preceder ou tornar impossível por meio de uma providência precoce o desenvolvimento de doenças e agravos à saúde (LEAVELL; CLARK, 1958 apud SILVEIRA, 2008, p.127). Trata-se da adoção de medidas precoces que interromperiam o desencadeamento de uma cadeia de eventos, interferindo nos mecanismos que levam ao agravo. Tal concepção vem sendo amplamente utilizada em programas de políticas públicas, embora tenha sido alvo de muitas críticas. Essas Revista LEVS/Unesp-Marília apregoam que, interpretar a violência e a criminalidade como uma doença significa criar modelos biopsicossociais para entender esses fenômenos, enquanto, por outro lado, há vasta literatura que mostram se tratar de fenômenos com diversos fatores correlacionados (SILVEIRA, 2008). Desta forma, as propostas de medidas de prevenção constituiriam frágeis tentativas de homogeneizar soluções para eventos complexos já anunciados via diagnósticos. Este trabalho não se propõe fazer um debate mais aprofundado do conceito de prevenção, todavia, fazer algumas considerações antes de avançar na discussão. SILVEIRA (2008) reforça que a prevenção do crime é antecipação, reconhecimento e avaliação de um risco para sua efetivação, bem como o desencadeamento de ações para remover ou reduzir esse risco. Porém, a autora diferencia controle de prevenção. Sobre o primeiro, destaca-se o conjunto de ações de caráter reativo, ou seja, levadas a cabo após o acontecimento ou a identificação de um evento, enquanto as incursões via prevenção entendem que determinadas situações não ocorrerão se medidas forem adotadas, prevalecendo seu caráter proativo. Desta forma, entende-se aqui que a prevenção ao crime é um processo e não um programa, sendo o foco real da prevenção a socialização e a integração das comunidades sob risco. Como o foco deste trabalho é discutir a experiência de uma 185
6 Revista LEVS/Unesp-Marília comunidade específica, apresenta-se o trabalho desenvolvido no contexto da Rede de Vizinhos Protegidos. 3. A EXPERIÊNCIA DA REDE DE VIZINHOS PROTEGIDOS E se a gente transformasse a cidade grande, numa cidadezinha? Esta é a metáfora que está no cerne do Programa Rede de Vizinhos Protegidos, criado pela Polícia Militar de Minas Gerais em parceria com as comunidades de vários bairros das cidades onde está implementado Belo Horizonte e mais 26 cidades do interior de Minas Gerais. Considerando a premissa de que a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, conforme preceitua o art.144 da Constituição Federal de 1988, o Major Idzel Mafra Fagundes deu início a um projeto que, hoje, é um dos maiores pilares das ações comunitárias de redução da criminalidade. Ao mesmo tempo em que a Polícia Militar se responsabiliza pela segurança, deixa claro que, com a ajuda da comunidade, seu papel se torna muito mais efetivo. Através de cuidados e ações pró-ativas, o programa aposta num resgate da confiança da população na polícia. Iniciado em junho de 2004, a Rede surge como proposta de integrar as múltiplas modalidades das práticas policiais orientadas para Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 a prevenção e solução de problemas a partir de ações locais (HENRIQUES, 2007, p.3). Trata-se de um investimento na metodologia que se baseia na polícia comunitária. A Rede de Vizinhos Protegidos surgiu de experiências da Polícia Militar de Minas Gerais na própria comunidade, onde os vizinhos eram mobilizados para o envolvimento com questões de segurança. O trabalho passa pela conscientização de que, organizada, a comunidade se torna mais forte. Essa organização envolve a vinculação a uma base territorial, na maioria das vezes o bairro, e a articulação em rede, onde os nós são as próprias residências. A partir disso, reuniões periódicas são realizadas para aprofundar o conhecimento mútuo, principalmente dos hábitos dos moradores. Há, ainda, a organização em sub-redes que podem ser classificadas em quatro aspectos: de verificação, de vigilância mútua, de identificação e de proteção. As primeiras são aquelas que, inicialmente, impulsionam o trabalho, ou seja, o estabelecimento dos contatos. As segundas compõem o processo de vigilância, que busca identificar pessoas ou veículos suspeitos 4 como isso é feito em tempo real, são combinados sinais de perigo entre os vizinhos, a fim de que, caso 4 Algumas pessoas ficam responsáveis por olhar a rua em determinados horários do dia. Isso foi criado com o intuito de despertar a consciência das mesmas, a fim de que elas ficassem mais atentas com a rua, pra que tomassem mais cuidado, pra que comunicassem umas com as outras, pra criar laços entre estas pessoas. 186
7 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 necessário, a polícia seja acionada 5. A terceira, qual seja, a sub-rede de identificação, já por si só se autointitula, é o processo de identificação das residências, prédios e ruas que fazem parte do programa o instrumento de identificação é uma placa afixada na frente da residência ou estabelecimento. Por último, as sub-redes de proteção são compostas pelos atos dos moradores de verificação em relação à entrada e saída dos seus quando não há outras pessoas na casa, são os vizinhos que exercem essa função de proteção. De acordo com a estrutura do programa, a rede é formada por conjuntos de moradores da localidade, que são agrupados em laços de até 5 (cinco) residências circunvizinhas. Como a rede é entrelaçada, uma residência poderá pertencer a 2 (dois) laços. Com o fim de conseguir reduzir os índices de criminalidade, a Polícia Militar fomenta a união e a solidariedade entre as pessoas, aumentando, assim, o capital social existente na mesma. Perdeu-se muito da capacidade de contar com o próximo; as pessoas se relacionam com os outros por meio da proteção contra esses outros. Além de reduzir e prevenir a criminalidade, outra importante conquista do Programa é reduzir a sensação de insegurança dos moradores onde ele esteja instalado. 5 As pessoas participantes deste processo são cunhadas como Câmeras Vivas e a polícia, pelo menos no projeto piloto, poderia ser acionada através de telefones celulares, que ficavam com algumas viaturas da polícia. Jane Jacobs (2001) trata da funcionalidade de uma rede de vizinhança bem provida de olhos. Revista LEVS/Unesp-Marília Isso é muito importante, haja vista um recente relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em que o Brasil se destaca pela sensação de insegurança. Segundo o relatório, a sensação de insegurança atinge 70% dos brasileiros e é a maior do mundo. Assim funciona o programa, que logo após a primeira reunião, foi denominado de Rede de Vizinhos Protegidos, tendo como objetivos reduzir a criminalidade local, aproximar a comunidade da Polícia Militar, recuperando a sensação de confiança e segurança da comunidade nesta instituição, criar em cada cidadão o sentimento de participação cidadã na questão da segurança pública as pessoas iriam cuidar umas das outras - 6, além de instruir a comunidade sobre procedimentos de segurança e garantir de fato sua segurança, fazendo com que ela volte a ocupar espaços públicos comunitários. Para implementação da Rede, as seguintes ações são propostas: sensibilizar os moradores de uma dada região, fazer reuniões mais próximas às comunidades que o programa foi implementado com a participação da PMMG, organizar as redes e sub-redes de Vizinhos Protegidos. 4. O PAPEL DA REDE DE VIZINHOS NA REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE 6 Primeiro, seria necessário sensibilizá-los para que mudassem alguns de seus comportamentos. A intenção era de que as pessoas passassem de vítimas a agentes de segurança. 187
8 Revista LEVS/Unesp-Marília Os critérios utilizados na identificação das redes que serão trabalhadas nesta pesquisa foram: localização em bairros distintos; data de implantação superior a 4 anos; pertencimento a um mesmo batalhão da PMMG; possuir uma reconhecível liderança local. Em função de maior possibilidade de contatos, optou-se por trabalhar no 34º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais que é composto por companhias de Polícia que atendem 63 bairros de Belo Horizonte, situados nas regionais Noroeste e Pampulha. Dispersas entre as companhias, existem 15 Redes de Vizinhos Protegidos, distribuídas em 4 companhias da Polícia Militar, sendo elas, a 21ª, a 8ª, a 17ª e a 9ª Companhias. Serão alvos do presente estudo a Rede de Vizinhos do Bairro Castelo, situada na 8ª Companhia e a Rede de Vizinhos do Bairro Padre Eustáquio, que pertence à 9ª Companhia. Sobre os procedimentos metodológicos, esta pesquisa realizou as seguintes etapas: entrevista ao idealizador do Programa Rede de Vizinhos Protegidos, para entender melhor o objeto de investigação do presente estudo; questionários aplicados a lideranças locais, tais como lideranças comunitárias, representantes de igrejas, representantes de escola, bem como outros moradores; Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 coleta de informações, através da Polícia Civil, bem como da Polícia Militar de Minas Gerais, sobre a Rede de Vizinhos Protegidos; coleta e seleção de reportagens sobre a Rede de Vizinhos Protegidos, dos locais estudados, veiculadas desde o seu surgimento. Além de avaliar a eficácia da rede no combate à criminalidade, a pesquisa focou outros elementos que permitem analisar o funcionamento da rede. Dentre esses, destaca-se a importância do território. O critério da territorialidade é um critério de fundamental importância para definir a espacialidade das relações tratadas. Essa espacialidade não é delimitada administrativa ou politicamente, ainda que sofra suas influências, mas, principalmente, pela interdependência que existe entre as pessoas que a compõem sobre o ponto de vista econômico e social. Isto pode claramente ser comprovado pela divisão das redes estudadas. Apesar de haver uma delimitação administrativa da cidade feita pela prefeitura, as redes não se formam segundo este critério, mas, antes e sobretudo, pelo critério de pertencimento a um território, onde as pessoas atuam, constroem relações diversas, inclusive ligadas à segurança individual e coletiva. O território é um fator determinante para a construção de comunidades, pois é a partir dele e sob ele que as relações começam a se perfazer. Apesar de existirem os 188
9 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 vínculos de parentesco, que são, em sua grande parte, fortes laços, é o vizinho quem está perto. Nas palavras de um entrevistado, este é um ponto positivo da Rede de Vizinhos Protegidos: o vizinho colabora com a segurança do bairro; é o melhor amigo. Por outro lado, o território pode ser um ponto negativo quando as pessoas identificam nele um fator de exclusão. Neste sentido, um comércio local do Padre Eustáquio, quando entrevistado, diz que a Rede de Vizinhos é parte de um grupinho ; sabe de sua existência, mas não faz parte dela. Interessante perceber que, ainda que o comércio local faça parte da espacialidade administrativa e política das redes, não se implica em seu território e nem significa e qualifica este espaço como sendo seu. Sobre o funcionamento no formato de uma rede, foi frequentemente apontada nas entrevistas a questão da conectividade. Toda rede pressupõe conectividade, vários pontos conectados entre si. Isso é perceptível tanto na metodologia, quanto na prática do Programa. Como relatado anteriormente, na teoria a Rede de Vizinhos Protegidos é formada por conjuntos de 05 residências circunvizinhas e, como a rede é entrelaçada, uma residência poderá pertencer a 2 (dois) laços. Na Rede pesquisada no Padre Eustáquio foram encontrados laços compostos por até 15 famílias. Nas palavras de uma entrevistada, Revista LEVS/Unesp-Marília os quarteirões funcionam como pequenas células. Outro aspecto importante e muito relevante é que a rede é uma estrutura sem fronteira. A perspectiva de uma rede é que ela ganhe elementos ao longo do tempo e esteja sempre aberta. Isso pode ser notado em escala maior quando falamos da grandeza que tomou o programa que, hoje, abrange cerca de moradores de 78 bairros das nove regionais de Belo Horizonte. O que começou em um bairro localizado, Caiçara, tomou proporções de uma grande rede. Em base local isto também pode ser sentido. Nas duas Redes pesquisadas, tudo começou com um grupo de moradores acionados pela Polícia Militar. O que antes representava algo da ordem de dezenas de moradores, nas redes pesquisadas encontra-se na ordem de grandeza de centenas de moradores. A capacidade de comunicação é que mantêm a ligação entre os laços. Em algumas pesquisas, a fragilidade dessa comunicação foi apontada como elemento que ameaçava o bom funcionamento da rede. Sobre o papel desempenhado pelas redes na redução da criminalidade, destaca-se que há, de fato, a possibilidade de associar a existência do programa a uma real redução da incidência criminal. A inexistência de dados elaborados nas escalas das redes conduziu a análise para a interpretação de reportagens que avaliavam este programa. 189
10 Revista LEVS/Unesp-Marília Apesar da criminalidade ter diminuído 7 nos últimos anos por vários fatores, haja vista a complexidade que determina sua existência e as diferentes formas de lidar com ela, essa redução tem sido atribuída, em várias ocasiões, ao Programa Rede de Vizinhos Protegidos. Segundo reportagem veiculada na Revista Encontro, desde que o Programa foi implantado, em 2006, na 20ª Cia. do 16º Batalhão, que atende vários bairros da Região Nordeste de Belo Horizonte, a taxa de criminalidade na região caiu em torno de 70%. De acordo com recente reportagem veiculada jornal Estado de Minas, em cinco anos de projeto, atingiu-se o índice de 68% de redução de crimes violentos em uma área crítica da Região Noroeste da capital. 7 Segundo o ICV (indicador de criminalidade violenta) apurado pela Fundação João Pinheiro, em Minas Gerais, houve uma queda de 21,51% da criminalidade violenta de 2008 em comparação com o primeiro trimestre de Em Belo Horizonte, os três indicadores trabalhados Crimes Violentos, Homicídios e Roubos apresentaram redução significativa nas taxas médias trimestrais. Em relação aos Crimes Violentos, a queda foi de 23,89% passando de um patamar de 87,48 ocorrências por 100 mil habitantes no primeiro trimestre de 2008 para 66,58 ocorrências por 100 mil habitantes no primeiro trimestre de Na comparação entre os primeiros trimestres de 2009 e 2007, a redução foi da ordem de 30,51%, uma vez que o patamar médio nos três primeiros meses de 2007 foi de 95,81 ocorrências por grupo de 100 mil habitantes. No que se refere aos Homicídios, o município deixou o patamar de 3,18 ocorrências por grupo de 100 mil habitantes, verificado no primeiro trimestre de 2008, para o nível de 2,38 ocorrências por 100 mil habitantes, na média dos três primeiros meses de 2009, com redução de 25,18% na taxa. A incidência de roubos em Belo Horizonte, por sua vez, foi reduzida de 79,58 ocorrências por 100 mil habitantes, na média do primeiro trimestre de 2008, para 60,95 ocorrências nos três primeiros meses de 2009, o que representa, portanto, queda da ordem de 23,41% (CONEXÃO NOTÍCIAS, 2008). Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 No que tange especificamente ao bairro Padre Eustáquio, segundo reportagem veiculada pela Agência Minas, no final de 2007, site que veicula notícias do Governo do Estado de Minas Gerais, com o Programa, o índice de crimes violentos no bairro caiu 20%. Os índices de crimes violentos em Minas, como estupros, assaltos e homicídios, caíram 24% de janeiro a agosto deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. A medição estatística foi feita pela Secretaria de Defesa Social em parceria com a UFMG. Na Região Metropolitana, a queda foi de 45%. Em Belo Horizonte, a queda foi ainda maior: quase 50% (ABREU JUNIOR, 2007). Ainda em referência a este mesmo bairro, outros índices de redução da criminalidade: O bom resultado do Rede de Vizinhos Protegidos pode ser medido com a redução significativa de 64% das ações criminosas, em zonas consideradas perigosas dos 14 bairros da 9ª Cia Esp onde o projeto foi implantado. "O mais importante desse tipo de trabalho é que os moradores atuam em 190
11 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 parceria com a Polícia Militar", observa o Capitão. Ele informa ainda que, em Minas, mais de mil bairros já adotaram A Rede de Vizinhos. Entre os crimes que apresentaram redução constam assalto à mão armada a transeuntes, estabelecimentos comerciais, prédios e residências; arrombamento de veículos e furto. Moradores dos bairros Caiçara, Alto Caiçara, Adelaide, Padre Eustáquio, Carlos Prates, João Pinheiro, Dom Cabral, Coração Eucarístico, Minas Brasil, Pedro II e Vila Oeste, sob a jurisdição da 9ª Cia Esp; e os conjuntos Alípio de Melo, Celso Machado e Califórnia, além do Bairro Castelo, todos da 8ª Cia Esp, participam do projeto e elogiam a iniciativa da PM (PMMG, 2008). Em relação ao bairro Castelo, segundo reportagem veiculada pelo Jornal do Castelo, a redução da criminalidade foi de 40%: Segundo o tenente coronel Cícero Nunes, a melhoria do policiamento no bairro Castelo é uma prioridade, uma vez que o Revista LEVS/Unesp-Marília bairro é novo e tem características que atraem a bandidagem. No entanto, ele ressalta que os índices de criminalidade no bairro vêm reduzindo a cada ano. Um dos motivos, segundo ele, é mobilização dos moradores e a qualidade do efetivo policial da 8ª Cia. Os policiais dessa companhia foram premiados duas vezes. A redução da criminalidade e de roubo e furto a veículos é de 40% neste ano. Estamos em um bom momento afirma Nunes. O tenente coronel explica ainda que a criminalidade no bairro, assim como em outros geridos pelo 34º, está sendo monitorada e que é feita a gestão orientada do problema para detectar os pontos críticos e tentar eliminalos. Essas viaturas vão dar mais agilidade ao serviço e fazer com que cheguemos mais rápido às ocorrências, avalia Nunes (JORNAL DO CASTELO, 2008). Para além dos dados demonstrados, cumpre analisar as entrevistas a lideranças: quando perguntados se notaram a redução da criminalidade após a implantação da Rede de Vizinhos, a resposta, 191
12 Revista LEVS/Unesp-Marília quase que unânime, foi positiva na Rede do Padre Eustáquio, sendo que somente a diretora da Escola Estadual Padre Eustáquio respondeu não ter condições de avaliar. Em relação à Rede do Castelo, duas das dez pessoas entrevistadas disseram não conseguir precisar essa redução ou não possuir condições de avaliá-la. Embora essas respostas não consigam retratar, com fidedignidade e precisão, a diminuição da criminalidade, devem ser um indício a ser considerado. Na rede do Castelo, outra liderança comunitária entrevistada disse que consegue notar esta diminuição, haja vista as ocorrências da Polícia serem registradas no espaço comunitário existente na região onde a liderança passa todo o seu dia. Corroborando com esta percepção, a diretora e sua vice da Unidade Municipal de Educação Infantil Castelo disseram que, antes, ouvia-se falar o tempo todo de roubos e assaltos e as professoras tinham medo de ficar no ponto de ônibus, o que, hoje, já não mais acontece. Na rede do Padre Eustáquio, segundo os entrevistados, a redução da criminalidade pôde ser notada pela diminuição de roubos de carro, de abordagem aos transeuntes, bem como pela diminuição da invasão a comércios locais. Quando perguntados sobre a eficácia da Rede, houve unanimidade nas duas Redes em afirmar que sim, com as seguintes ressalvas: o pastor entrevistado do bairro Castelo, bem como uma Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 moradora do mesmo bairro, destaca que a eficácia depende muito do envolvimento das pessoas, do seu interesse. Neste sentido, o Pastor disse que saberia dizer de casos em que a rede foi eficaz e casos em que ela não foi. Para os demais entrevistados, a Rede de Vizinhos é eficaz, na medida em que mostram resultados, ajuda na construção de uma segurança pública cidadã e incrementa o combate à criminalidade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa corrobora a eficácia da Rede de Vizinhos Protegidos. Destacou-se a validade desta proposta no combate à criminalidade, principalmente pela capacidade de monitorar o que polícia alguma vai conseguir, seja pela parca proximidade com a comunidade, o que impede de conhecer sua rotina, seja pela falta de estrutura. Abre-se uma discussão importante que engloba a comunidade como protagonista, juntamente ao papel desempenhado pelas polícias, no combate à criminalidade. Enquanto a comunidade segue orientações de segurança ensinadas pela polícia, bem como aciona a mesma quando necessário, atua no enfrentamento do problema. Enquanto parte de uma comunidade, seus cidadãos possuem limites de intervenção que só a polícia pode e deve romper. 192
13 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 Na maioria das vezes, o papel da polícia aparece em segundo plano na medida em que, ao ser acionada, alega não ter como intervir. Ainda que hoje, o trabalho da polícia, ao menos em uma das companhias que respondem pelas redes entrevistadas, não seja mais o de encabeçar a rede, mas tão somente de promovê-la em espaços oportunos, a polícia poderia se apropriar mais deste papel de vanguarda. Neste sentido, a polícia poderia incrementar o fomento e estímulo à criação de mais redes, promovendo-a em todas as companhias de polícia. O Programa Rede de Vizinhos Protegidos não é ainda o que se propõe ser em grande escala. Talvez, por isso, não seja tão conhecido pela população, nem seja alvo de investimento do governo em suas propagandas sobre segurança pública. Mas é, definitivamente, uma maneira de fomentar o capital social existente nos bairros onde acontece. Muito mais que promover uma segurança pública diferenciada, promove relações humanas. E cada pessoa, na infinidade da construção das relações humanas, é muito importante no caminhar contínuo da prevenção à criminalidade. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU JUNIOR, Jesus Cássio. Rede de Vizinhos Protegidos. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Manhuaçu, 26 dez Revista LEVS/Unesp-Marília Disponível em: < a.org.br/praticas/rede-devizinhos-protegidos> Acesso em: 01 mar BATELLA, Wagner Barbosa. Análise espacial dos condicionantes da criminalidade violenta no Estado de Minas Gerais 2005: Contribuições da Geografia do Crime f. Dissertação (Mestrado em Geografia) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC MG, Belo Horizonte. BEATO, Cláudio C. Compreendendo e avaliando projetos de segurança pública. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, 197p. CONEXÃO NOTÍCIAS. Segurança pública em pauta. Conexão Notícias, Belo Horizonte, ago./set Disponível em: < iniotemporario.com/conexao 5.pdf> Acesso em 01 mar CORTELLA, Mario Sérgio. Não nascemos prontos! Provocações filosóficas. Petrópolis, RJ: Vozes, DINIZ, Alexandre, M. A. A geografia do medo: Reflexões sobre o sentimento de insegurança em Belo 193
14 Revista LEVS/Unesp-Marília Horizonte. O Alferes, Vol.18, edição especial, p , out FELIX, Sueli A. Geografia do Crime: Interdisciplinaridade e Relevância. Marília: Unesp Marília Publicações, p. FELIX, Sueli A. Violência e Segurança: entre as percepções, um convite ao debate. Marília: Guto, 2007, 194p. GOMES, Filipe Galgani. Capital social e desenvolvimento social: experiências latinoamericanas f. Monografia (conclusão do curso) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro, Habilitação em Administração Pública, Belo Horizonte. HENRIQUES, Márcio Simeones. Desafios à comunicação organizacional frente a uma filosofia de polícia comunitária. In: Seminário Internacional de Comunicação, 9, Rio Grande do Sul. Trabalho submetido ao GT Comunicação Organizacional. Rio Grande do Sul: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p.3. Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, JORNAL DO CASTELO. PM ganha 11 viaturas para atuar no Castelo. Jornal do Castelo, Belo Horizonte, maio Disponível em: < m.br/site/(0str2nyjg2ikyxzus mwn1pz5)/site/indexinst.asp x?acao=prod&id=86751&usu id=5687&conteudo=- %20Vizinhos%20Protegidos > Acesso em 01 mar LIMA, Renato S. Criminalidade Urbana: conflitos sociais e criminalidade urbana dos homicídios cometidos no Município de São Paulo. São Paulo: Sicurezza, p. POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Criação de ambientes seguros (Rede de Vizinhos Protegidos). Belo Horizonte, p. PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna. 3ed. Rio de Janeiro: FGV, SILVA, Maria Nadurce da. Escola e comunidade juntas contra a violência escolar: diagnóstico e esboço de plano de intervenção f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Católica de Brasília, Brasília. 194
15 Ano Edição 6 Número 06 Dezembro/2010 SILVEIRA, Andréa M. A prevenção dos homicídios: desafio para a segurança pública. In: BEATO, Cláudio C. Compreendendo e avaliando projetos de segurança pública. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, pp Revista LEVS/Unesp-Marília crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil SOUZA, Marcelo L.. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2008a. SOUZA, Marcelo L. Mudar a cidade. Uma introdução 195
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