:: CANÇÃO DO BECO ::

Transcrição

1 :: CANÇÃO DO BECO :: (Marília Rocha) :: DESCRIÇÃO DO OBJETO PRINCIPAL E DA PREMISSA A passagem de alguns escritores e poetas brasileiros pelo Rio de Janeiro e os lugares em que trabalharam ou viveram marcaram profundamente suas obras. A cidade guarda ainda hoje esses espaços desconhecidos, que foram palco de uma expressiva produção literária. Entre outros, há o apartamento em que Manuel Bandeira viveu numa rua de boemia e prostituição na Lapa, a casa onde Vinicius de Moraes passou parte da juventude na Ilha do Governador, a suposta casa de Machado de Assis onde hoje é uma favela, o edifício onde Drummond trabalhou durante uma década na Cinelândia, o apartamento e o banco onde o Pedro Nava se matou na Glória, a casa onde João Cabral de Melo Neto passou seus últimos dias de vida cego no Flamengo. Estes lugares resistiram ao tempo por meio da poesia, trechos de cartas, diários e crônicas dos poetas. Atualmente, alguns deles estão abandonados, outros se transformaram completamente e outros ainda permanecem surpreendentemente inalterados, como ilhas paradas em outro século. Eles têm em comum o fato de estarem integrados à paisagem urbana atual, mas continuarem esquecidos pelos registros oficiais, uma vez que nenhum deles integra os circuitos principais de preservação e divulgação de vida e obra dos escritores. Além do passado escondido, estes espaços guardam as estórias anônimas de quem os habita atualmente. A série fará um retrato dos lugares e das pessoas que passaram a ocupá-los, cruzando o passado e o presente da cidade, a literatura e a vida que segue. Propomos desenvolver o roteiro de uma série inicial de três episódios de 26 minutos, dedicados a Carlos Drummond Andrade, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes, além da produção de um episódio piloto sobre a Lapa de Bandeira. O escritório de Drummond, a casa de Bandeira e a praia de Vinícius revelam um amplo mapeamento de paisagens urbanas. Elas levam a incursões numa cidade 29

2 desconhecida e ressoam ecos do cotidiano e da obra de alguns dos melhores poetas de nossa história. :: DEFINIÇÃO DO TEMA E MODO DE ABORDAGEM O tema da série é a ligação entre lugares da cidade do Rio de Janeiro onde os poetas viveram no passado, as marcas que tais lugares deixaram em suas obras e as pessoas que os ocupam nos dias atuais. Os episódios abordarão histórias do cotidiano de cada lugar, a partir da vida de pessoas que os habitam atualmente. O passado preservado por cada um deles será trazido à tona pela leitura de trechos de poemas, notas e crônicas dos autores. Haverá um diálogo entre imagem e som, de forma que uma destas camadas irá complementar, contrapor ou se cruzar com a outra. A experiência de pessoas reais que vivem, trabalham ou se divertem nesses espaços hoje em dia, será combinada com a sensibilidade dos autores, que trazem uma segunda camada de memória de cada um deles. :: ESTILO DOCUMENTAL O projeto tem como referência um curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade chamado O Poeta do castelo, de O filme é protagonizado pelo próprio Bandeira, que encena dia-a-dia enquanto ouvimos alguns de seus poemas narrados por ele mesmo em voz off. Joaquim Pedro insere a literatura na vida cotidiana, envolvendo ambos com um encanto particular. Ele cria uma espécie de ficção do cotidiano, filmando o poeta em momentos tão banais como ao buscar leite na padaria, preparar seu café da manhã, comprar um jornal ou encontrar um conhecido na rua. E combina tais momentos com a narração dos poemas, que complementam pela voz o sentido das imagens. A série seria então uma espécie de resposta ao filme, 50 anos depois. Como uma 30

3 espécie de contraplano a ele, o presente de cada espaço será encenado pelas pessoas que o habitam hoje, tendo como fio a poesia que une os dois tempos. Outra referência é o filme Black and Tan (Dudley Murphy, 1929). Como O poeta do Castelo, é encenado por pessoas reais, e traz moradores de um bairro de periferia de Nova Iorque com a cena dos músicos de jazz. O pianista Duke Ellington, o trompetista Arthur Whestol e bailarina Fredi Washington encenam a si mesmos como personagens que vivem no Harlem e conseguem emprego no lendário Cotton Club, onde Duke tocava realmente com sua orquestra. Em ambos, o roteiro ficcional se mistura a pessoas, ambientes e fatos reais, contextualizando a cena de um meio artístico que cruza a vida e a obra dos personagens envolvidos. :: SINOPSES Primeiro episódio: Beco das minhas tristezas Manuel Bandeira foi durante muito tempo um sujeito duro, que vivia no Rio com dificuldades financeiras. Entre 1933 e 1942, ele morou em um modesto edifício situado na Rua Moraes e Vale, na Lapa. Ali ele completou 50 anos, produziu dois de seus livros mais importantes, e na sua correspondência há várias referências ao prédio e a sua vida nele. O ambiente do seu quarto, o beco onde o prédio se situa e a vizinhança da Lapa aparecem em vários poemas que foram escritos neste apartamento. Vão demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar Não como forma imperfeita Neste mundo de aparências: Vai ficar na eternidade, Com seus livros, seus quadros, Intacto, suspenso no ar! 31

4 Algum tempo depois que Bandeira deixou o lugar, o prédio se tornou uma repartição pública. Após muitos anos com esta utilidade acabou abandonado. Há cerca de três décadas foi invadido por famílias de sem-teto. São estes os atuais moradores, muitos dos quais já regularizaram a posse. Poucos sabem que Bandeira morou ali, em três apartamentos diferentes ao longo de quase dez anos. O episódio retratará o edifício e seu entorno, que permanece numa região pitoresca da Lapa, como se tivesse parado no tempo. No prédio há canos de água clandestinos subindo até o último andar, um antigo elevador interditado que serve como depósito, escadaria íngreme e estreita pra subir oito andares, música popular alta nos corredores, carros velhos estacionados na porta, garrafas de cerveja esquecidas nas janelas. Na esquina, um boteco com fotos do Bandeira e uma placa dizendo que o poeta morou naquele lugar. A prefeitura colocou errado. Para os moradores do Moraes e Vale 57 não sobrou nem o registro histórico. Pretende-se que o episódio seja conduzido por alguém que vive em um dos três apartamentos ocupados por Bandeira. Uma das possibilidades é o apartamento 73, onde ele morou mais tempo (seis anos) e produziu os poemas mais importantes. O lugar é um conjugado estreito com apenas um cômodo que serve de quarto e de sala, mais um espaço para a cozinha e um banheiro. Atualmente, uma cama de casal com televisão na frente fica na entrada da sala e serve de sofá. Dona Aparecida vive lá com seu cãozinho Alexandre e o marido, que é vigia noturno. Ela nunca ouviu falar em Manuel Bandeira e nunca leu poesia, mas gosta de literatura. Diz que não conheceu seus pais, não tem sobrenome, um juiz inventou o sobrenome Oliveira para colocar nos seus documentos, ela aprendeu a ler e escrever sozinha. Fora do apartamento, o episódio acompanhará a vida na pequena rua sem saída, paralela à rua da Lapa. Ela é cortada ao meio pelo Beco das Carmelitas, antigo ponto de prostituição no bairro, onde hoje só passam os moradores. A ele se refere Bandeira no conhecido poema: Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? 32

5 - O que vejo é o beco. O Poema do Beco e A última canção do beco, serão os fios condutores que nos levarão pela rua ainda calçada com paralelepípedos, que preserva em sua maior parte o casario do século passado, hoje em ruínas ou absolutamente abandonado, e onde pode-se ver crianças brincando ou velhos sentados na calçada no coração da cidade. Segundo episódio: O noturno da repartição Numa rua sem saída da Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, há um prédio chamado Edifício Rex. Carlos Drummond Andrade trabalhou por dez anos no 16º andar deste edifício. Velho e mal conservado, mantém, no entanto, os corredores de madeira, piso e grades antigas. No primeiro andar funciona um cinema pornográfico magnífico, frequentado por velhinhos. A rua e o boteco do lado guardam o mesmo ar desde sempre. E o Edifício Rex continua ali esquecido e intocado. Nos anos em que lá esteve, entre 1934 e 1944, funcionou ali o Ministério da Educação e Saúde, onde o poeta servia como chefe de gabinete. O ministério não era mais do que um conjunto de salas instaladas inicialmente no décimo e depois do décimo sexto andar do edifício. Este prédio foi construído na década de 1920 para ser um hotel e tinha no andar térreo um imponente teatro. No tempo do ministério se dividida entre hotel e repartição pública. Algumas salas eram usadas por senadores, já que o Senado Federal funcionava a um quarteirão. Esta atmosfera impregnou a obra do poeta, e suas palavras continuam se ajustando perfeitamente ao lugar, como mostra o trecho de uma crônica autobiográfica de 1943: No conjunto das exterioridades significativas do seu temperamento, há a assinalar que o sr. Drummond mais uma vez se contradiz, passando de escritor a homem prático. Como servidor público, pode ser visto em seu gabinete à rua Alvaro Alvim, atendendo simultaneamente a três telefones, recebendo vinte pessoas e lavrando vertiginosamente despachos de "arquive-se", "cumpra-se" e "não há verba". Alguns 33

6 prejudicados por esse último gênero de despacho insinuam que toda sua atividade é fictícia, e que os negócios públicos caminhariam da mesma maneira ou melhor se ele, em vez de trabalhar, fosse a uma sessão de cinema. Outro ponto a esclarecer. Na década de 1960, as salas foram vendidas separadamente e hoje o prédio abriga escritórios e moradias. São pouco mais de 300 salas, das quais em pelo menos 40% moram idosos ou solteiros com poucas posses que preferiram se instalar no centro. O episódio retratará o andar onde Drummond trabalhava, no qual hoje funcionam escritórios de advocacia, contabilidade e pelo menos três moradias, improvisadas no espaço de uma sala comercial. Se por um lado ele conserva o ambiente burocrático dos escritórios, por outro há uma transformação gerada pelas residências, que podem trazer possíveis personagens para o episódio. Uma delas é Rosângela, uma cantora romântica que se apresenta em bares noturnos no Rio. Nos finais de semana ela transforma sua casa, que tem boa acústica, em estúdio amador de gravação. Outra sala é ocupada por Luís, senhor idoso, barbudo, americanófilo e com aspecto ermitão. Ele trocou seu apartamento em Irajá pela sala no centro para não enfrentar o trânsito diário no trajeto ao trabalho. Sua porta fica sempre entreaberta, mas fechada com corrente, o que lhe permite observar a movimentação do corredor. O terceiro morador é um jovem advogado, o único que substituiu a porta de madeira da sala por uma porta envidraçada, o que lhe dá aspecto de residência. O episódio poderá ser guiado por algum deles, o que deverá ser decidido durante a pesquisa. O edifício e as pessoas que transitam nele e na rua Álvaro Alvim, estarão em diálogo com Drummond. Seu olhar envolve não apenas os aspectos físicos do lugar, mas para os rumos que as pessoas tomam enquanto seres humanos em tais ambientes, quase sempre como seres solitários na cidade, em suas tentativas fracassadas de busca da felicidade. Além da crônica citada, o episódio poderá conter o poema Elegia, de 1938, que também liga o poeta aos atuais residentes e trabalhadores do lugar: Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. 34

7 Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear. Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. Terceiro episódio: Praia de Cocotá Praia de Cocotá, número 109. Situada na Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro, banhada pela baía de Guanabara e bastante poluída. Na época em que era limpa, foi onde Vinicius de Moraes passou uma parte muito importante da juventude. Ali fez grandes amigos, gente simples, filhos de pescadores. Ali perdeu a virgindade e também a inocência da juventude. Dos 9 aos 16 anos, Vinícius morava com o avô em Botafogo nos dias da semana. Nos feriados, férias e finais de semana ia para a casa dos pais na Ilha do Governador. Não foi um período em que escreveu poesia, mas as recordações desta época marcaram sua obra posterior. Vinicius é um poeta intimamente ligado à zona sul carioca, é raro associá-lo a esta parte suburbana e pouco charmosa do Rio. E é justamente isto que 35

8 faz o lugar particularmente especial, como se percebe neste trecho do poema Ilha do Governador, que abrirá o episódio: Quanto meus olhos não viram No céu da areia da praia Duas estrelas escuras Brilhando entre aquelas duas Nebulosas desmanchadas E não beberam meus beijos Aqueles olhos noturnos Luzinho de luz parada Na imensa noite da ilha! (...) Como esquecer isso que foi a primeira angústia Se o murmúrio do mar está sempre nos meus ouvidos Se o barco que eu não via é a vida passando Se o ei-ou dos pescadores é o gemido de angústia de todas as noites? A casa dos pais de Vinícius ficava de frente para o mar. O episódio será um retrato dos dias atuais, em que restaram poucas residências desta época ali. Há um único casarão antigo na rua, número 143, que por causa de uma troca de números esta pode ter sido a casa do poeta. Vê-se as ruínas das casas vizinhas e os terrenos baldios tomados pela mata. Vê-se um aterro desfigurou a praia há 50 anos. Hoje há ali uma nova estação das barcas, um estacionamento e uma grande e deserta praça. Na frente da área onde estava a casa de Vinicius há um reduto de velhos pescadores, que poderá ser o eixo do episódio. A presença destes pescadores no meio da água poluída, onde praticamente não há peixe, mas insistindo em sobreviver ali, é um dos poucos elementos que permanecem deste o tempo do poeta. Eles são como a natureza que insiste em sobreviver naquele lugar degradado. Os barcos estacionados na água estão em frangalhos, as redes de pescaria já velhas e a água do mar suja. No entanto, olhando para o horizonte, a paisagem continua exuberante. 36

9 O episódio mostrará um enorme contraste entre o passado e o presente. Com o desafio de encontrar a intensa sensualidade de Vinícius, como se vê no trecho do poema Rosário, também inspirado pelas vivências na ilha: Lembro que longe, nos longes Um gramofone tocava Lembro dos seus anos vinte Junto aos meus quinze deitados Sob a luz verde da lua. Ergueu a saia de um gesto Por sobre a perna dobrada Mordendo a carne da mão Me olhando sem dizer nada Enquanto jazente eu via Como uma anêmona n'água A coisa que se movia Ao vento que a farfalhava. 37