VULNERABILIDADE VIBRÁTIL: ARTE DA PERFORMANCE E MOBILIDADE URBANA

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA ELILSON GOMES DO NASCIMENTO VULNERABILIDADE VIBRÁTIL: ARTE DA PERFORMANCE E MOBILIDADE URBANA RIO DE JANEIRO 2018

2 Elilson Gomes do Nascimento (Elilson) Vulnerabilidade Vibrátil: arte da performance e mobilidade urbana Dissertação de mestrado apresentada à banca de avaliação, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Experimentações da Cena: Formação Artística. Orientadora: Profa. Dra. Eleonora Batista Fabião Rio de Janeiro 2018

3 Elilson Gomes do Nascimento (Elilson) VULNERABILIDADE VIBRÁTIL: arte da performance e mobilidade urbana. Dissertação de mestrado apresentada à banca de avaliação, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre no Programa de Pós- Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Experimentações da Cena: Formação Artística. Aprovada em: 21 de fevereiro de 2018 Orientadora: Profa. Dra. Eleonora Batista Fabião - UFRJ Avaliadora externa: Profa. Dra. Denise Espírito Santo da Silva UERJ Avaliadora interna: Profa. Dra. Livia Flores Lopes UFRJ

4 Agradecimentos Agradeço, primeiramente, aos meus pais e amores supremos, Eliane e Edmilson, pela sorte que é ser filho deles. Agradeço sempre e imensamente por tanto amor, dedicação e investimento. Concluir este mestrado é uma conquista nossa, como tudo que eu já vivi e viverei. Nada seria ou será possível sem eles e sem a história deles. Aos meus irmãos, Diana e Júnior, agradeço por serem meus segundos pais e primeiros amigos. Às minhas sobrinhas, Kethillyn e Nicole, pelo mais honesto e bonito sorriso, o da continuidade. Às minhas tias e aos meus tios e também aos meus vizinhos, igualmente familiares pelos cuidados ao longo da vida. A todos esses, pela formação que me guia. À professora Eleonora Fabião, agradeço profundamente por todas as aberturas de espaço que sua existência e movência luminosas fazem não só na cidade, mas na gente. Obrigado por tanto ensinamento, investimento, cuidado, acolhimento, parceria, disponibilidade e amor. Se eu tiver a chance de orientar alguém um dia, é imperativo que eu enderece tanto SIM. Sou realmente feliz por esse encontro tão desejado que me expande e revoluciona. À Elza, voz que salva e muda as horas, pela bênção mais bonita da vida. Aos tantos e magníficos encontros que se desencadearam na cidade dela desde então. Francini Barros, Marina Duarte, Paulina Albuquerque, Romeo Lyra, Regina Medeiros, Maria Luiza Sá e Thomás Aquino, presentes que a vida me deu em Recife, agradeço por iniciarem o Rio em mim. Romulo Torres, Rebeca Queiroz, Nei Marques e Heloisa Aguida, amigos dos meus amigos que viraram meus, não tenho palavras para agradecer a moradia física e afetuosa que me deram nos momentos de chegada na cidade. Agradecimento que estendo a Carolina Lima, João Pedro Pontes, Eduardo Rios, Miro Spinelli e Mayara Yamada: jamais poderei me esquecer. Bebel, Gunnar, Luísa e Miro, os Cactus, agradeço pela nossa vida em comum e pela inspiração de vida que suas vidas e seus trabalhos geram em mim. Aos colegas de turma do mestrado e das disciplinas, pelos momentos de troca e aprendizagem. Ao PPGAC-ECO-UFRJ por tanto aprendizado e crescimento. Singularmente, agradeço à Marlene Cardoso Bonfim por toda atenção e dedicação. Aos professores Adriana Schneider, Carmem Gadelha, Livia Flores, Ronald Duarte, Dinah Cesare, Luiza Leite e Gilson Motta, pelos aprendizados que seguem reverberando nestas páginas. À Adriana, agradeço especialmente pelo cuidado ao longo do processo e pelas trocas preciosas na qualificação; Livia e Ronald, por me amadurecerem e incentivarem constantemente, além de me colocarem tantas vezes para desilhar junto com eles. Às professoras Denise Espírito Santo e Livia Flores, pela tamanha dedicação a este trabalho e por iluminarem o que vem depois.

5 Ao André Rodrigues, amigo tão querido, agradeço a gentileza e disponibilidade em ser companhia, força e cuidado nas ruas desde que ainda éramos apenas conhecidos. Aos artistas Crack Rodriguez, Eleonora Fabião e Flávia Naves, pela inspiração-interlocução dentro e fora destas páginas. Ana Kemper, Andrêas Gatto, Felipe Ribeiro, Flávia Naves e Maria Palmeiro, amigos-amores de todas as horas. Nathália Mello, sagitária, pelas bandeiras e além em comum. Maria Cumarú, Diego Deleon, Dieymmes Pechincha e Gabriel Morais, por terem sido casa. À Miúda e Ao Teatro Inominável, pelos momentos de parceria e acolhida. Aos professores Otávio Leonidio e Lídia Costa, pela oportunidade e confiança de, durante e em diálogo com esta pesquisa, fazer parte das bancas de seus orientandos. À Editora Temporária Clara Meliande, Tania Grillo e Maria Inês Vale pela coisa inefável que é ter parte desta pesquisa já publicada em livro. Ao Thiago Lacaz, designer do livro. Aos festivais Temporal (Assunção), Amostra Urbana (Curitiba) e Atos de Fala (Rio de Janeiro), pelo acolhimento e oportunidade ao meu trabalho artístico, a este trabalho artístico. Amada Júlia Fontes, Juliana Beltrão, Bia Figueiredo, Melina Mulazani e Edu Barreto, pela acolhida em suas casas quando esta pesquisa aconteceu em outras cidades. A todas as pessoas que colaboraram comigo nas ruas e que estão registradas ao longo da dissertação performers, fotógrafos e transeuntes agradeço tamanha confiança e disponibilidade. Ao Willams Costa, agradeço tamanha gentileza nos registros da primeira ação desta pesquisa. Lucas Feres, Anderson Damião e Samara Lacerda, por cuidarem de mim nas ruas em algumas das primeiras ações. Mayara Millane, Érica Neves, Alexandre Francisco, Homero Ferreira e Gunnar Borges, pelos materiais que atenciosamente conseguiram para algumas ações. Isis Agra, João Gusmão, Hermínia Mendes, Mayara Millane, Renata Vieira e Juliana Serafim, amigos tão importantes e parceiros das primeiras experimentações em espaços públicos, no Recife. À Hermínia, Mayara e Paula Caal, agradeço o apoio e refúgio para escrever em momentos tão precisos. Jay Melo, sempre disposto a ajudar. Patrícia Tenório e Fátima Chaves, pela amizade que ensina e cuida. Lúcia Helena, Hélmiton Pessoa e Príscilla Karla, meus amigos mais antigos. Aos meus amigos de modo geral, de tantos lugares e tempos, pela sorte que é não caberem nesta página. Aos meus amigos e colegas de teatro, professores e diretores, pela preparação e alimento. À maioria das minhas professoras e professores, pela formação que segue em mim. Singularmente, menciono Edvânea Maria, que tantas vezes amadureceu minha escrita; Cristina Rocha, que sempre me estimulou a querer me expressar pela escrita; Angela Dionisio, que foi e é como uma mãe acadêmica, além de Solange e Aparecida, pedagogas que cuidaram de mim também como filho na Educação Infantil.

6 Ao povo nas ruas e das ruas que encontrei pela cidade do Rio de Janeiro. Mortos, vivos e vivos, por tanta abertura, colaboração, ousadia, vulnerabilidade e vibratilidade. Ao meu irmão Fábio (in memorian), que fez o amor de me encontrar algumas vezes nas ruas do Rio. Por fim, à minha amada avó, Maria Luiza Duarte, minha memória mais imperecível. Retirante, mãe solteira, analfabeta, a única que tive. Abria o sorriso mais lindo que conheci quando eu lia meus deveres do caderno de alfabetização. Que seu sorriso seja a matéria primeira desta dissertação.

7 Acervo pessoal Rio de Janeiro, 2016

8 RESUMO NASCIMENTO, Elilson Gomes do. Vulnerabilidade vibrátil: arte da performance e mobilidade urbana. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Esta dissertação propõe uma inter-relação entre arte da performance e mobilidade urbana por meio de uma investigação prático-teórica que congrega conceitos de áreas diversas antropologia, arquitetura, comunicação, dança, filosofia, geografia, linguística, performance, psicanálise e teatro e a experimentação de ações performativas em ruas e transportes coletivos do Rio de Janeiro através do trânsito entre os papéis de pedestre, espectador, cartógrafo e performer. Nessa tessitura, discutese o planejamento e a mobilidade no espaço urbano, refletindo-se como a prática de ações performativas e de outras corpografias, dentre as quais o ciclismo e o trabalho ambulante instauram um dissenso nas estratégias de controle, mobilizando negociações éticas que podem despertar concidadania e autonomia em contraponto ao ir e vir frenético e incessante que caracteriza a circulação em grandes centros urbanos. Palavras-chave: Arte da performance. Mobilidade urbana. Transportes coletivos.

9 Sumário Plataforma de acesso sem catracas 13 Linha I: Das disposições coreográficas rotineiras: mobilidade no espaço urbano 24 - Da paviment-ação: Pago 4 e Pago 4 e Estação de Transferência I: Do dissenso performativo 47 Linha II: Transportes coletivos: passarelas discursivas, espaços performativos 49 - Do correlato: controle e dissenso 52 - Estação Adílio 56 - Estação de Transferência II: Vulnerabilidade Vibrátil 70 Linha III: Das baldeações: programas e anti-programas performativos 73 - Eleonora Fabião: o corpo-ambulante engajando a cidade 74 - Flávia Naves: o corpo-figura desnormatizando a cidade 82 - Crack Rodriguez: arte como verbo histórico 89 - Entre programas e anti-programas: arte da performance em mobilidade urbana 93 Linha IV: Notas sobre o lê gado olímpico Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro Transporte Olímpico Transporte Olímpico #2: revezamento Estação de Transferência III: Pontos de Intermitência 116 Linha V: Massa e m u l t i d ã o: coros em performance na pólis contemporânea Massa Ré 125 -Performance e(m) tragicidade: Gota e o coro-multidão 133 Confluente-afluente 145 Referências bibliográficas 149

10 13 Plataforma de acesso sem catracas Esta dissertação é costurada por palavras, imagens, salivas, impressões digitais, intervalos, espaços em branco e outros índices de encontros. Impressa em folhas de papel A4, é interligada por estações-conjuntos-precários de circunstâncias, escolhas, acasos, agenciamentos, acordos, negociações, afetos, pesos, volumes, moedas, deslizes e atritos dentre outras propriedades e acontecimentos de palavras-e-corpos. Tenta preservar nas entrelinhas esbarros, ruídos, timbres, cacofonias, tintas e peles. Pesa toneladas de ferro, concreto armado, gente, poeira e palavras. Balança, corre e freia. Tem temperatura variante, de modo geral, entre 30 e 40 graus Celsius, múltiplas durações e um valor que se divide entre compras de tarifas metropolitanas e de materiais precário-relacionais. Seu percurso é cartografado pela realização de ações performativas em ruas e transportes coletivos da cidade do Rio de Janeiro, mas suas linhas de tráfego antecedem a realização das mesmas, pois compreendem as rotas de transição que venho experimentando entre os papéis de passageiro, espectador, pedestre e performer. O embarque aconteceu em meados de 2012 na cidade do Recife, onde as ações de pedintes, religiosos, vendedores ambulantes e artistas em transportes coletivos começaram a pavimentar minha pesquisa. Venda de produtos, apresentações musicais e circenses, pregações religiosas e pedidos de esmolas constituíam frames 1 de interesse na minha vivência como passageiro-espectador em Recife e também em Lisboa, onde, durante intercâmbio acadêmico, iniciei o contato com os estudos da performance em seu viés antropológico e passei a identificar pedintes, religiosos, ambulantes e artistas de rua como performers. Esse movimento discursivo e geográfico resultou no Trabalho de Conclusão de Curso Dá licença, abençoado: uma análise de aspectos discursivos nas performances em transportes coletivos (Letras/UFPE, 2015), no qual investiguei, a partir de um banco de dados composto por gravações e anotações, como os transportes são transformados em espaços performativos através de corpos dissonantes que põem em movimento o que quer e o que pode essa língua 2 portuguesa quando exercida no vai e vem das cidades. Ao enquadrar como performances o pedido de esmolas, a venda de produtos, a pregação religiosa e a apresentação artística que reconfiguram o espaço dos transportes coletivos e 1 Frame é aqui utilizado de acordo com Erving Goffman (1986, p. 10): I assume that definitions of a situation are built up in accordance with principles of organization which govern events- at least social ones- and our subjective involvement in them; frame is the word I use to refer to such of these basic elements as I am able to identify. (Tradução livre: Considero que as definições de uma situação são construídas de acordo com princípios que governam os eventos sociais e nosso envolvimento subjetivo neles; frame é a palavra que utilizo para me referir aos elementos básicos que posso identificar). Construo a expressão frame de interesse para caracterizar tanto o comportamento assumido pelos pedintes, religiosos, ambulantes e artistas, quanto o enquadre que faço deles enquanto pesquisador, uma vez que os seleciono dentro do frame performers no meu envolvimento subjetivo como espectador em transportes. 2 Verso da canção Língua, de Caetano Veloso, cantada em dueto com Elza Soares. Disco Velô, 1984.

11 14 transformam os passageiros em espectadores, preciso detalhar qual perspectiva teórica tenho em mente, haja vista a polissemia que envolve os estudos sobre performance e sua consequente conceituação. Patricia Leonardelli (2011, p. 3), recorrendo aos escritos de Richard Schechner, descreve que uma performance: acontece, fundamentalmente mediante três operações (1. A criação de um comportamento que gera uma ação; 2. A efetivação da ação; 3. A apresentação de tal ação) por isso, diversos acontecimentos culturais, desde atividades esportivas, até rituais e mesmo produtos midiáticos, comportariam um caráter performativo que, de fato, seria intrínseco à condição humana, variando apenas conforme o conjunto de convenções que determinam sua expressão. (Grifo adicionado). Nas performances em transportes coletivos, o comportamento que gera uma ação se traduz, primeiramente, 3 quando o pregador, o camelô, o artista ou o pedinte se apresenta como tal, colocando-se numa posição central, para que seja visto e escutado; a efetivação da ação se dá muitas vezes por um cumprimento de abertura (pelo qual introduzem quem são e o que estão fazendo) e também pelo reconhecimento dos eventuais materiais que dão pistas a respeito da atividade do performer: produtos, bíblia, instrumentos musicais, panfletos de instituições filantrópicas etc.; E, finalmente, a apresentação de tal ação constitui o desenvolvimento em si da performance, quer seja pela apresentação artística, pela venda de produtos, pela pregação religiosa ou pelo pedido de esmolas. Além, é claro, do acompanhamento de tais ações por uma plateia de passageiros convertidos em ouvintes-espectadores-consumidores-filantropos-religiosos. Richard Schechner (2012, p. 49) também afirma que performances consistem na ritualização de sons e gestos, uma vez que decretam padrões conhecidos de comportamentos e textos (Idem, ibidem. p. 58). Se levarmos essa consideração a cabo, podemos pensar que as performances em transportes coletivos virtualizam outros espaços: a igreja, a feira, as calçadas das ruas ocupadas pelos pedintes de braços estendidos, o palco são cenários que atualizam, passageiramente, os corredores dos transportes. A existência de um corredor já propicia a feira livre dos ambulantes, com o acréscimo ao imaginário de uma feira: o feirante é móvel e interage corpo a corpo com os passageiros que, em repouso, visualizam 4 e recebem os produtos para avaliação, testagem e eventual consumo; os pedintes, que na rua tendem a ocupar um ponto fixo, aproveitam a passarela para fazer circular o pedido de esmolas; já os artistas, sobretudo os músicos, transformam os limites dos vagões ou as portas centrais opostas ao lado de acesso/saída em caixas 3 FORA TEMER! 4 Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é costumeiro que os ambulantes, ao se apropriarem dos corredores e transmuta-los em feira, aproveitem as barras de segurança como encaixes precisos para suas mercadorias que, presas a um gancho de açougue, deslizam pelos ferros, se movendo junto com os comerciantes. Essa engenhosidade parece caracterizar o imaginário urbano da cidade há pelo menos mais de uma década, visto que aparece em uma das cenas do documentário Línguas - vidas em português, de 2001, no qual um ambulante carioca explica a funcionalidade do mecanismo.

12 15 cênicas, onde podem apoiar corpos e instrumentos; os pregadores religiosos, por seu turno, desenham púlpitos invisíveis quando se fixam num ponto do corredor ou decidem quebrar a liturgia, transitando ao longo do corredor-assembleia para inculcar crenças e coletar améns. Na reestruturação cenográfica dos transportes há um movimento operativo mais dialógico que dialético, pois, se a ação é dissidente, a forma como se desenha dialoga com a estrutura do espaço. Podemos avaliar essa reestruturação através das premissas que Erving Goffman (1986, p. 124) considera constituintes da performance, cujo conceito se refere à organização que transforma um indivíduo num artista de palco, o qual, por sua vez, torna-se um objeto passível de ser observado extensivamente, sem ofensas, e procurado para interagir por pessoas que, ao redor, desempenham papel de audiência 5 (Minha tradução). Nesse movimento de apropriação do espaço, os performers agem por meio de táticas discursivas que compreendem formas assimiláveis da polifonia das ruas que, por extensão, passa a ocupar os transportes. Uma dessas formas é a conversa, a qual, a fim de manter as relações entre os interlocutores, exibirá índices de poder, didatismo, demagogia, superstição, misticismo, camaradagem, etc. (MATTOS, 1998, p. 15). Nos coletivos, esses índices aparecem, por exemplo, em expressões corriqueiras como dá licença, abençoado, dá licença, meu querido, com o perdão de interromper sua viagem, cidadão de bem, se você quiser e puder colaborar comigo, que representam formas linguísticas que mantêm as fronteiras entre o performer e o poder dos passageiros, que, caso convencidos, podem ser solidários. As escolhas linguísticas imbricadas nesses processos performativos de negociação acentuam o que R. A. Hudson (1996) e outros autores da antropologia linguística e da sociolinguística 6 conceituam por relações de poder e de solidariedade, as quais ganham corpo linguisticamente pelas formas de tratamento e referência que são reflexo e motor da organização social dos espaços. Quando um pedinte utiliza termos como abençoado e cidadão para se referir ao passageiro, possível doador de esmolas, realça a distinção social entre eles. Por outro lado, se nomeia seu interlocutor por irmão, querido e amado, complementando com descrições sintáticas do modelo você, que é pai de família como eu, busca uma comunhão com o ouvinte, mantendo um diálogo que expressa uma troca discursiva horizontal. Busca, pois, uma relação de reciprocidade 7 5 Trecho original: [ ] that arrangment which transforms an individual into a stage performer, the latter, in turn, being a object that can be looked at in the round and at length without offense, and looked for engaging behavior, by persons in a audience role (GOFFMAN, 1986, p. 124). 6 Para leituras mais detalhadas sobre os conceitos de poder e solidariedade consultem-se autores da sociolinguística como Brown e Gilman (1960) e Trudgill (1974). 7 O apelo à reciprocidade e, por conseguinte, à solidariedade, também é característica capital na atividade dos vendedores ambulantes. Quando atuam conjuntamente nos corredores ou quando agradecem aos condutores dos veículos a permissão para comercializar, surgem traços de camaradagem entre trabalhadores que podem ilustrar o que Victor Turner (2008, p. 216) define por communitas: um sentimento de solidariedade de grupo, normalmente de curta duração. [...] a expressão espontânea de sociabilidade que enfatiza igualdade e companheirismo.

13 16 que é, em si, a estratégia discursiva elementar de um pedinte. Um pregador religioso, por sua vez, pode referir-se aos ouvintes de maneira veladamente depreciativa se utiliza adjetivos e substantivos em grau diminutivo para realçar a humanidade daqueles em comparação à grandeza de Deus. Além das relações de poder e solidariedade, outro mecanismo recorrente nas performances em transportes é o reforço da oralidade através de materiais escritos ou visuais. Os ambulantes estão sempre acompanhados de expositores e amostras grátis e alguns fazem até demonstrações para convencer os clientes a comprarem, como também há, por parte dos pedintes, a utilização de recursos que podem atestar a veracidade de sua fala: receitas médicas, contratos de aluguel, fotografias de pessoas enfermas etc. A tentativa de legitimar a fala não é um aspecto isolado, porém resultante de um sistema social que se constituiu pelo valor conferido à documentação, visto que vivemos num mundo decididamente grafocêntrico (MARCUSCHI, 2011, p. 27). Entretanto, há também os que agem sem recorrer ao escrito nem ao oral. Muitos pedintes, por exemplo, não falam, não partilham questões pessoais ou comprovam suas necessidades através de documentos, mas simplesmente optam pelo tradicional estender de mãos. Realizam, assim, uma tradução corporal de todo um discurso através de um gesto tipificado socialmente. Evidentemente, corpo e verbo coexistem na comunicação, mas uma vez que o gesto, além de substituir a expressão verbal, pode torná-la redundante, isso não salientaria um comportamento claramente dramático? Como se vê, nem só de verbo se performa em transportes coletivos e, se dilatarmos essa consideração para além dos compartimentos de metrô e dos corredores dos ônibus, talvez não seja hiperbólico dizer que vivemos num mundo relacionalmente dramacêntrico, 8 isto é, centrado nas ações, na perform-atividade. A performatividade que ganha corpo e fala em transportes coletivos, como se vê, integra discurso, espaço, materiais e espectadores, revertendo precariedade em potência, efemeridade em praticidade, dialética em dialogismo. Urdindo recursos linguísticos e visuais às particularidades de suas falas e gestos, pedintes, ambulantes, artistas e religiosos alteram a ordem dos transportes coletivos, praticando o espaço, exercendo outras funções em interação com os outros (CERTEAU, 2007, p. 191), que, convertidos em espectadores-ouvintes-compradores-filantropos-plateia, acabam por participar de processos que perturbam mecanismos de controle urbano. Essas observações sobre espaço, corpo e política, inerentes à ação dos performers em transportes, foram despertando, paulatinamente, o interesse de também experimentar, não somente como espectador, esse dialogismo performativo em movimento. Assim, a pesquisa me conduziu até a cidade do Rio de Janeiro e ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFRJ, ao qual submeti, em 2015, o projeto Os transportes coletivos como espaços performativos: uma leitura- 8 Esta palavra-conceito será retomada na conclusão da dissertação.

14 17 experimentação. Neste projeto, propus continuar a pesquisa de campo em transportes coletivos, coligando a teoria da performance aos conceitos linguísticos e antropológicos, acrescentando à experiência de pesquisador-espectador a experimentação como artista, realizando performances nos transportes cariocas. Contudo, a partir da minha chegada ao Rio, no início de 2016, dois motivos correlatos me levaram a experimentar de modo mais constante e intenso outro papel, o de pedestre: a limitação de recursos financeiros e, especialmente, uma relação de chamamento com as ruas. Esse chamamento foi estimulado pelo trabalho de artistas-pesquisadores da performance urbana, principalmente Eleonora Fabião, cujo trabalho motivou minha vida para o Rio e com a qual passei a interagir como orientando; e também estimulado pelas leituras iniciais do Mestrado, a maioria centradas nas relações corpo-cidade e arte-política. Uma das primeiras leituras foi a obra Walkscapes, de Francesco Careri (2002), que, apresentando uma historiografia sobre as caminhadas como práticas estéticas, recorre, influenciado pelo pensamento de Gilles Deleuze, aos conceitos de sedentarismo e nomadismo, os quais constituem os dois pilares conceituais da movimentação humana e da construção dos territórios, física e perceptivamente. Em linhas gerais, o sedentarismo engloba culturas de fixação na terra e modos disciplinados de conservar a organização dos fluxos de movimento. O conceito de nomadismo abriga exercícios de liberdade e agência perante as construções dos caminhos, pois os trajetos nômades reinventam a geografia. Não há cartografia puramente física, mas corpórea (CARERI, 2002, p. 30, minha tradução). Sendo assim, o caminhante e aqui tomo a liberdade de utilizar o termo em relação sinonímica com pedestre pode circular no espaço urbano, conservando-o e alterando-o, uma vez que caminhar, embora não represente a construção física de um espaço, implica na transformação de um lugar e de seus significados (CARERI, 2002, p. 50, minha tradução). Dessa maneira, o pedestre assimila a organização instituída pelo poder público, uma vez que sua atividade não é plenamente autônoma, já que segue um planejamento, mas também pode conferir sentidos e significados ao espaço urbano, implicando seu corpo à cidade. De modo contrário, contudo, pode agir esse mesmo corpo pedestre quando apenas segue os fluxos ordenados e, substancialmente, quando pratica a mobilidade através dos transportes coletivos, tendo em corpo que os veículos, através das rodas, motores, condutores, trajetos, tarifas e leis, assumem e garantem o movimento do usuário que, em repouso, circula. Atravessado por esses conceitos e realizando muitos e longos percursos a pé pela cidade, 9 o contato imediato do corpo com o funcionamento urbano e não mediado pelos transportes coletivos 9 Como será detalhado nas descrições de minhas performances em toda a dissertação, fazer percursos a pé se tornou um procedimento crucial na minha prática performativa: ora como aquecimento para as performances, ora como ato em si.

15 18 foi expandindo a percepção para outros aspectos da mobilidade urbana e, consequentemente, alargando a pesquisa para o exterior dos transportes coletivos, estes não mais um campo exclusivo, mas um dos meios para investigar relações entre os conceitos e a prática da arte da performance e a questão da mobilidade urbana. Assim, a arquitetura das estações e dos transportes, o planejamento urbano da cidade do Rio de Janeiro, as disposições coreográficas dos pedestres e trabalhadores de rua, dentre outros aspectos, foram atribuindo ao meu corpo um trânsito entre os papéis de pedestre, usuário de transportes coletivos, espectador e performer no espaço urbano. Nessa tessitura de movimentos, dois conceitos são basilares para o desenvolvimento desta pesquisa e, inerentemente, do meu trabalho como performer: cartografia (corpo vibrátil) e programa performativo, concebidos, respectivamente, pelas pensadoras Suely Rolnik e Eleonora Fabião, ambas em diálogo com o conceito de Corpo sem Órgãos, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Suely Rolnik (2011, p. 23) recorre à geografia para definir cartografia. Diferente dos mapas, que encerram-se como representações estáticas, a cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos sua perda de sentido e a formação de outros. A cartografia, assim, é terreno e prática de experimentação política das relações múltiplas que podem ser agenciadas e reinventadas num feixe de vetores afetivos que existem entre o cartógrafo, seu corpo, sua história, os lugares, os corpos dos lugares, as histórias dos lugares e as camadas temporais que passeiam entre atualidade e virtualidade permeando estratégias das formações do desejo no campo social. Essas estratégias, para a autora, definem a prática de um cartógrafo, substantivo que ela não restringe aos estepes da geografia, mas expande para identificar aquele que age na formação de outros mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (IDEM, IBIDEM). Um cartógrafo, dessa maneira, joga com a existencialidade, pois, consciente de que os modelos organizacionais carregam uma obsolescência que não dá conta de expressar as urgências e os pormenores das relações que se criam entre os corpos, tem o interesse de participar ativamente da inscrição de outros desenhos nos mapas correntes. Tem, portanto, o desejo de ser produtor para além de produzido. Para isso, entrega-se de corpo e língua à experiência cartográfica, na tarefa de dar língua aos afetos que pedem passagem através da utilização de tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, visto que, para ele, todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas (ROLNIK, 2011, p. 65). Considero que a atividade do cartógrafo, conforme delineada por Rolnik, pode exemplificar os gestos e ações da performatividade urbana. Com esta afirmação, posso referir-me não só aos artistas da performance, mas também àqueles que agem no meio urbano a partir da criação de outras linhas e engajamentos possíveis para a construção e realização de desejos: quer seja essa realização da ordem da sobrevivência financeira, como o fazem os vendedores ambulantes, quer seja do

16 19 exercício de uma circulação urbana mais autônoma, como o fazem os ciclistas. O próprio conceito de Rolnik convida para essa multiplicidade, a qual desejo particularizar em relação ao trabalho do artista da performance em espaços urbanos. Acredito que o performer pode atuar como o cartógrafo em fluxo de intensidades, engajando-se de corpo e língua, pois ele vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado (ROLNIK, 2011, p. 65, grifos originais). Nesse sentido, se a prática do cartógrafo é imediatamente política, porque ela diz respeito à escolha de novos mundos, sociedades novas (ROLNIK, 2011, p. 69), a prática do artista da performance, de modo expropriador, apropriador, devorador e desovador, portanto cartográfico, é inerentemente política. Um performer que atua na urbanidade pode expropriar-se dos seus trajetos cotidianos, apropriando-se de caminhos desconhecidos, de corpos desconhecidos, dos espaços e dos materiais da cidade, devorando as linhas que inscreve nas rotas da cidade, desovando, por fim, toda essa experiência em práticas de transvaloração. O artista da performance, ao executar suas ações performativas, pode mudar o valor das coisas, 10 transvalorando a cidade em movimento, ao praticar novas maneiras de socialização. Performances urbanas, nesse movimento de transvaloração que expropria, apropria, devora e desova outros modos de relação da cidade e com a cidade, podem ser lidas, conforme propõe Brígida Campbell (2015, p. 227), como modos de adentrar a cidade por dentro, ou por baixo, e produzir relações para perturbar os processos neutralizados pela cotidianidade e as formas repetitivas de viver. A autora, em seguida, considerando que essas ações criam infiltrações no cotidiano, recorre ao conceito formulado por Paola Berenstein Jacques, que especifica a ideia da prática cartográfica como corpografia urbana. Jacques (2008) define que corpografia é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta. A corpografia, portanto, é uma cartografia performativa que, sendo essencialmente política e corpórea, compreende a prática da cidade para além da circulação na cidade. Os corpos inseridos nessa práxis agregam resistência aos modelos impostos pelo projeto urbano, os quais, de acordo com a autora, são da ordem do cerceamento, da domesticação e da espetacularização. Ao contrário dessas operações, os corpógrafos denunciam, por sua simples presença e existência, a domesticação dos espaços mais espetacularizados, sua transformação cenográfica (JACQUES, 2008). Assim, a prática de uma cartografia corporal inaugura espaços de transvaloração, porque 10 Yoko Ono, Hélio Oiticica e Eleonora Fabião são três artistas que, sequencialmente, defendem o argumento de que o trabalho do artista é mudar o valor das coisas. Esta afirmação, bem como a referência aos artistas anteriores, foi proferida por Eleonora Fabião durante sua conferência MOVIMENTO HO no Seminário Internacional Hélio Oiticica para além dos mitos (Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2016) e também aparece em seu livro Ações (2015).

17 20 nega as limitações da mobilidade urbana, que redoma possibilidades de experimentação política em nome do fluxo incessante da impermanência, isto é, de um direito de ir e vir que não incorpora um agir. Considero que ciclistas, skatistas, carroceiros, vendedores ambulantes, pedintes, religiosos e artistas de rua agem desviando a lógica espetacular das cenografias do cotidiano ao inscreverem, através de suas ações, um engajamento maior de seus corpos aos espaços, adaptando-os às suas diversas e específicas necessidades de circulação e sobrevivência. Os ciclistas e os skatistas resistem entre a massa de veículos automotores, aderindo aos escassos espaços vazios das avenidas, num desenho que acompanha e desmancha a lógica vigente. Os trabalhadores de carga imbricam-se aos seus materiais de trabalho, rolando por cima das leis de organização da mobilidade ao transmutarem toda sorte de asfalto, canteiros e calçadas em vias de trânsito e de trabalho. Os ambulantes, religiosos, pedintes e artistas de rua transferem ações de outra ordem e de outros espaços para o interior dos transportes coletivos e para as ruas, alterando suas funcionalidades. Por sua vez, o artista da performance, considerando aqui especialmente aquele que trabalha nos ambientes públicos, põe em movimento, assim como os corpos acima descritos, o exercício de praticar a cidade. Se considerarmos que ele age como um cartógrafo, por meio da multiplicidade de apropriações e expropriações, torna-se preciso especificar os procedimentos composicionais específicos de sua prática; compreender os programas que expandem a vibratilidade de seu corpo. Performando com a palavra ativada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1999, p. 12), programa, expandindo seu campo de proposição semântica, Eleonora Fabião (2013, p. 4) elabora o conceito de programa performativo. Primeiramente, parte da definição sugerida pelos autores programa é o motor de experimentação acrescentando: porque a prática do programa cria corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa. Programa é motor de experimentação psicofísica e política (grifos originais). Um programa performativo, assim, é o planejamento que permite o movimento infindável de aberturas de janelas que caracteriza o acontecimento em si da performance; programas são os disparadores da dramaturgia do imprevisível operada pelas ações performativas e, por isso mesmo, constituem o enunciado da performance: um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por ambos sem ensaio prévio (idem). Um programa, esquematicamente, é um enunciado que possibilita, norteia e move a experimentação (Idem, grifos originais), um continuum prático e da prática entre palavra e ação, verbo e corpo, corporal e social. Os programas, sendo assim, são enunciados corpóreo-linguísticos, procedimentos que geram no performer uma aderência ao meio, com seus múltiplos feixes espaciais, temporais e contextuais,

18 21 através de um engajamento psicofísico que afasta mecanicidade e automatismo, privilegiando, ou melhor, acendendo o aderir. Aderir às pessoas no agora, ao tempo do agora, ao espaço em que se é e se está, tentando negociar ativamente relações através do desencadeamento de ações. Ao agir programas, um performer articula seu Corpo sem Órgãos 11 ao corpo do organismo social, num movimento de aderência-resistência (FABIÃO, 2013, p. 5) que faz vibrar possibilidades de expansões éticas, estéticas, políticas, poéticas, urbanas que desnudam a organização habitual, pois o performer é um desarticulador de processos ditos naturais (idem, ibidem). Todo esse movimento em programa promove aquilo que Fabião, recorrendo ao projeto político de Hannah Arendt, chama de iniciativas. Iniciativas que desenham perpendiculares curvilíneas de encontro e deslocamento na padronização retilínea; iniciativas guiadas por programas que alimentam a vibratilidade do corpo sem órgãos no corpo a corpo com o organismo social. Nesse sentido, um programa performativo pode ainda ser um programa cartográfico, corpográfico, pois o cartógrafo não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado (ROLNIK, 2011, p. 66, grifo original), mas leva consigo critérios de contextualização para realizar sua prática. De maneira análoga, age o performer por meio dos programas. Um desses critérios, indubitavelmente, são as injeções de prudência, as quais Fabião (2013, p. 6), em acordo com Deleuze e Guattari, enfatiza como regra imanente à experimentação. De modo semelhante, Rolnik (2011, p. 69) defende que a prudência deve ser uma regra para a atividade do cartógrafo, uma regra de delicadeza para com a vida. Regra que agiliza mas não atenua seu princípio: essa sua regra permite discriminar os graus de perigo e de potência, funcionando como alerta nos momentos necessários. A prudência, desse modo, é um limiar que o cartógrafo, nos desenhos que escreve nos territórios, e o performer, na prática de seus programas, não abrem mão, visando não perder de vista o quanto se suporta, na prática cartográficacorpográfica-performativa, o lançar-se à circulação imparável de afetos. Considero que a inter-relação entre os conceitos discorridos, de cartografia e programa performativo, podem tornar consanguíneos os papéis de pedestre, usuário de transportes coletivos, espectador e performer que experimento e teorizo ao longo desta dissertação. Com isso, não desejo afirmar genericamente que todo cartógrafo é performer: não se deve perder de vista a especificidade do programa performativo, que é a intencionalidade artística. O que faço é aproveitar a expansividade presente no conceito de cartografia e imbricá-la à ideia de programa na tentativa de 11 O performer e a prática da performance geram, segundo Fabião (2013, p. 5), a criação de um Corpo sem Órgãos (CsO), o qual corresponde a um conjunto de práticas que compreende a elaboração de um programa e seu desenvolvimento em duas fases: uma é para a fabricação do CsO, a outra para fazer aí circular, passar algo (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 12, apud FABIÃO, op. cit.). A autora ainda concorda com os filósofos no que concerne à indissociabilidade entre corpus e socius, política e experimentação. Entendo, então, que o CsO do performer e sua prática agem corpo a corpo com o organismo social em movimento de resistência e aderência, conforme conceituado pela própria Fabião.

19 22 debruçar-me de corpo e língua (ROLNIK, op.cit.) no espaço urbano e no espaço de indissociabilidade entre teoria e prática que aqui proponho. Essa imbricação também se reflete no tipo de escrita que se articulará por todo o percurso desta dissertação. No encalço de cada reflexão teórica, como mais um modo de relação com as matérias desta dissertação, as performances que realizei em ruas e coletivos aparecerão em forma de relato. Este gênero narrativo conforme sugere o crítico literário Paul Zumthor (2001) é compreendido como uma vocalização textual em que se registram trocas interpessoais. Desse modo, o relato das performances tenta preservar a multiplicidade de vozes e encontros concatenados na experiência urbana, funcionando como registro da obra artística. Referência ovular para esta cartografia escrita é o livro Ações, da performer Eleonora Fabião, que também utiliza o relato multivocal como registro de suas experiências nas cidades. Com essas ideias-tráfegos em corpo, investigo na Linha I, intitulada Das disposições coreográficas rotineiras: mobilidade no espaço urbano, as relações entre arquitetura e movimento através dos conceitos de coreo-polícia e coreo-política, de André Lepécki, em correlato com escritos de outros teóricos da sociologia, da filosofia e da arquitetura, como Richard Sennett, Peter Pál Pelbart e Silke Kapp. Nesse ínterim, destaco como trabalhadores de carga subvertem os cerceamentos do controle sobre o movente e descrevo a experimentação de minhas peças Pago 4 e 10 e Pago 4 e 30 para discutir uma possível ideia de automobilidade. Na Linha II, Transportes coletivos: passarelas discursivas, espaços performativos, dialogando com conceitos de autores como Walter Benjamin, Jacques Rancière e Suely Rolnik, avalio como os transportes representam o símbolo máximo e institucionalizado dos projetos de mobilidade urbana, observando as molduras comportamentais que se estendem desde a sua aparição. Além disso, revisito a performatividade de pedintes, religiosos, artistas e vendedores ambulantes e finalizo o capítulo com a descrição da performance Estação Adílio, que realizei em estações e vagões de trem da cidade do Rio de Janeiro. Na Linha III, nomeada Das baldeações: anti-programas e programas performativos, continuo a dialogar com o conceito de Eleonora Fabião para investigar a prática de três artistas da performance que atuam em espaços públicos: Flávia Naves, Crack Rodriguez e a própria Fabião. A escolha por destinar o capítulo do meio da dissertação para evocar trabalhos de outros artistas reflete o interesse de investigar teoricamente a inter-relação performance/mobilidade para além do meu processo criativo e verificar como a experiência de espectador ecoa na prática artística. Após escrever junto com as obras selecionadas, ainda (sempre) apoiado no conceito de programa performativo, desenvolvo o conceito de anti-programas performativos. Esta alcunha se refere aos planos de mobilidade urbana, sistematizações coreográficas dos espaços públicos que parecem não

20 23 viabilizar a experimentação política, mas a preservação de molduras comportamentais, impondo preceitos de conduta e utilização. Na Linha IV, Notas sobre o lê gado olímpico, após descrever que programas e antiprogramas, assim como controle e dissenso, coexistem em retroalimentação, reúno os autores Milton Santos, Denise Espírito Santo e Raquel Rolnik, para discutir a mobilidade urbana como projeto de segregação social. Em seguida, discorro brevemente sobre o plano de mobilidade urbana da cidade do Rio de Janeiro, especialmente sobre as alterações que a cidade viveu em consequência da realização dos Jogos Olímpicos Rio Finalizo com duas performances que realizei atreladas a esse contexto: Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro e Transporte Olímpico. Na Linha V, Massa e M u l t i d ã o: coros em performance na pólis contemporânea, relaciono os conceitos propostos pelos autores Antônio Negri e Michael Hardt às ideias de coro uníssono e dissonante, teorizadas por Nietzsche, entendendo a movimentação nas cidades sob uma perspectiva córica para além da coreográfica. Defendendo que as ações performativas podem eclodir irrupções de multidão na massa córica em ruas e transportes coletivos, descrevo duas performances atreladas à noção de coro: Massa Ré e Gota. Se a primeira evidencia a coralidade num agrupamento de performers caminhando em contrafluxo, a segunda suscita uma união de singularidades através da multidão que se entrecruza em águas transportadas num balde vermelho. Por fim, na aba Confluente-afluente concluo a dissertação revisitando as principais questões que nortearam cada Linha e aponto possíveis caminhos para a continuidade da pesquisa, especialmente no que diz respeito ao par oralidade e performance urbana, constituinte do que quero chamar de dramacentrismo. No mais, desejo que, ao longo do trajeto, possamos ser pedestres, cartógrafos, concidadãos e performers. Juntos.

21 24 Linha I Das disposições coreográficas rotineiras: mobilidade no espaço urbano Da janela de um nono andar, um homem assiste o percurso que outro homem faz lá embaixo, desde o ponto extremo do quarteirão. Os braços quase voam na marcha apressada do corpo. Ele alcança quatro dos sete ônibus tortuosamente aglutinados, com apenas os motores e as luzes em movimento. Para por dois segundos, seu tronco leva a ponta da cabeça e os ombros em direção ao céu. Certamente inspirou pela boca e soltou pela boca, sem filtros. Troca o peso da sacola entre as mãos. Descobre que nenhum daqueles sete veículos mediarão sua ida para casa. À frente, mais três. É o da ponta que partirá. Corre. Na calçada há um banheiro químico, um contêiner, um ciclista e um cachorro. Desvia dos quatro. Surgem mais duas bicicletas. Tenta desviar pela rua, mas, onde não há ônibus parados, há carros em desfile incessante. A calçada é a sobra para os menos velozes. Para. Espera sem poder. O ônibus parte. Para novamente e não espera. Segue para o outro extremo, onde há metrô, trem, ônibus e carros carros carros. Do prédio, o observador, no conforto interrompido pela sinfonia de buzinas, motores e freadas, placidamente assiste mais cinco ou seis corpos seguirem a mesma coreografia do anterior. Um homem, trajando short curto, par de tênis e camisa vermelha de proteção UV, utiliza a estrutura de uma das paradas do VLT 12 como barra de treinamento físico. Em seguida, corre, no centro da cidade, ao lado de um dos trens do VLT. Dentro do transporte, as pessoas comentam sua ação. Apostam entre si se ele conseguirá alcançar a velocidade do veículo, conversam sobre os recém-concluídos Jogos Olímpicos, riem da insistência do performer e reclamam do desprendimento de energia para coisa inútil. Todas essas conversas trafegam sob velocidade média de 15 km/h. Do lado de fora, o corredor não pode escutar, porém vê e vive a engrenagem da cidade. Enquanto segue à risca as paradas e acelerações do veículo, disputa o pouco espaço de calçada que sobrou, mantendo-se atento para não atropelar ninguém. À frente do VLT, uma motocicleta o conduz, buzinando para que pedestres não atravessem os trilhos e, portanto, não sejam atropelados. Uma mulher cruza mesmo assim, pois as faixas de pedestre estão distantes e os semáforos acendem a luz vermelha por menos tempo que a verde. Não chega, contudo, à outra margem da avenida. Fica ali, nas divisórias de ferro e vidro que separam os trilhos do asfalto, ambas as áreas planejadas para veículos. Mas logo consegue atravessar, uma vez que a longa fila de carros e ônibus não se move. O 12 Sigla para Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT integrou-se à malha de transportes coletivos da cidade do Rio de Janeiro em 2016 como parte do projeto legado olímpico, uma série de reformas em decorrência da realização dos Jogos Olímpicos Rio 2016.

22 25 corredor, por sua vez, para. Espera o bonde modernoso que disputa os mesmos semáforos e cuja existência não intimida a quantidade de outros meios de transporte. Uma mulher se inclina no assento do trem e esguicha o olhar para o lado direito, onde dois homens iniciam uma confusão. Eles começam a se esmurrar e as pessoas, divididas entre apartar e se proteger, são reféns dos limites de ferro da composição superlotada. Um dos homens saca uma arma e uma correria impossível é iniciada. A mulher levanta do assento, mas cai. Entre empurrões, um arrastão é iniciado por outros passageiros que aproveitam a confusão. Ela é pisoteada. Deitada no chão da estação, a poucos centímetros da área de embarque e desembarque, espera pelo socorro demorado. O serviço de saúde, ao chegar à estação, constata que não há espaço para macas e, logo, não sobra espaço para prestar socorro. A mulher pisoteada é então colocada numa cadeira de rodas e levada à superfície. 13 Essas três narrativas de cenas ordinárias ambientadas na cidade do Rio de Janeiro desvelam paradoxos inerentes ao funcionamento da mobilidade urbana. Falta espaço. Falta tempo. Violência e desconforto há de sobra. Nessa equação, sobra cidade? Uma cidade, de acordo com Deleuze e Guattari (apud BOGÉA, 2009, p. 157), é como um correlato da estrada que existe em função de uma circulação e de circuitos. Se a cidade, de acordo com os pensadores, é ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que ela cria, definindo-se por entradas e saídas e, mais ainda, necessitando que coisas entrem e saiam continuamente, a mobilidade urbana e seu adjacente planejamento parecem limitar esse emaranhado de circuitos à imposição de uma circulação compulsória. Essa compulsividade de movimentos, que, como se percebe, não conecta a cidade e seus cidadãos, mas apenas garante que eles entrem e saiam, que passem sem parar, contraria até mesmo o conceito que se reveste no termo mobilidade. Sobre a palavra, a arquiteta brasileira Silke Kapp (2012, p. 31) salienta que a mobilidade é habitualmente considerada um bem, seja como possibilidade de deslocamentos cotidianos numa mesma região (mobilidade urbana) ou deslocamentos sazonais para além dela (mobilidade geográfica em geral), seja como possibilidade de mudança de domicílio (mobilidade residencial). Sobre a mobilidade urbana especificamente, a autora considera que na tríade aumento de liberdade/independência/autonomia, comumente associada à expansão das possibilidades de deslocamento defendida pelos projetos urbanos, prevalece um eufemismo em relação aos dispositivos que ampliem qualquer uma dessas possibilidades, não importando se o deslocamento é livre, induzido ou compulsório (idem, ibidem). Sua fala teoriza a falta de articulação evidente nos 13 Adaptação da seguinte notícia:

23 26 paradoxos ilustrados nos relatos que abrem este capítulo: muitos veículos para poucas vias, velocidade que não acompanha o tempo da cidade e esta talvez a maior ironia ausência de conforto e de segurança em um serviço que é tarifado. Há, nessa sucessão de contrastes, um projeto de dominação que, nas palavras de Kapp, faz da mobilidade uma via de alienação, cabendo lembrar [ ] que seres humanos são res extensa, têm corpos e vivem espacialmente, não apenas num sentido metafórico. Mantê-los sempre em movimento equivale à dominação tanto quanto mantê-los cativos. Nos dois casos, o poder sobre o tempo é correlato do poder sobre o espaço. Uma sociedade de indivíduos que se movem continuamente em espaços determinados, de forma heterônoma, nunca é emancipada. (KAPP, 2012, p. 33). Podemos considerar, então, que a circulação dos corpos nas cidades é orientada por um controle sobre o tempo e sobre o espaço que gerencia extensivamente o fluxo de pessoas e se camufla num ideário de organização. Desse modo, a mobilidade no espaço urbano é regida por uma série de preceitos comportamentais e por normatizações que compreendem desde as leis de utilização dos espaços públicos até noções de cuidado patrimonial e preservação que são internalizadas conforme o decorrer da vida em sociedade. Regras estabelecidas, utilizações sugeridas, preceitos internalizados: fato é que há um controle sobre o corpo movente (DELEUZE, 1992), sobre os corpos em trânsito pela cidade, orientando-os para onde e como seguir, coordenando seus passos e, sobretudo, coreografando-os para que a cidade conserve sua quotidianidade. Compreendamos cidade como um substantivo comum ardilosamente convertido em sujeito dividual, 14 isto é, divisível entre ser coletivo e ser indeterminado, mas que, por outro lado, atende a múltiplas determinações e determina múltiplas orientações. Em outros termos, ora a cidade aparece pronunciada como a nomeação do comum aos seus cidadãos, ora é anunciada numa relação sinonímica com instância de poder, assumindo uma assimetria em relação aos cidadãos, os quais devem manter com ela uma relação de obediência. Trata-se de uma dupla orquestração: 1) a cidade age quase anonimamente, gerindo os corpos sob noções de bem-comum, levando-os a se policiarem uns aos outros e 2) também aparece de forma institucionalizada (A Prefeitura, A Secretaria de Transportes, O Metrô ) por vias legislativas, através de símbolos, emblemas, marcas d água, placas de sinalização numa espécie de tentacularização que tenta camuflar nos espaços públicos, substantivos comuns, os sujeitos que, de fato, dão rosto ao poder. Mas, que poder é esse ao qual repetidamente me refiro? Peter Pál Pelbart (2007) ressalta que o poder se espraia na forma plural: o Estado, o capital, as ciências e a mídia são apenas algumas 14 O termo é citado a partir de Gilles Deleuze (1992, p. 224), que utiliza dividual para adjetivar a maneira como as sociedades de controle formatam os indivíduos, os quais são passíveis de divisão em meio a uma massa que não opera mais com o indivíduo um par, como ocorria nas sociedades disciplinares, mas é uniformizada pelas estratégias de controle e pela organização capitalista.

24 27 manifestações do poder. Esse poder múltiplo, tentacular, com mecanismos esparramados de modulação da existência, pode ser nomeado, de acordo com o filósofo, como biopoder, isto é, o poder sobre a vida, que faz sobreviventes, cria sobreviventes e produz sobrevida (p. 59). O espaço da cidade é atravessado e constituído pelas inúmeras camadas do biopoder e tem funcionado como passarela dos corpos sobreviventes que, por sua vez, compõem a imagem mais recorrente quando é acionada a palavra cidade: o vai e vem frenético e incessante, coreografia meticulosamente conduzida pelos planos de mobilidade urbana. A reflexão sobre coreografia proposta nesta dissertação parte do trabalho do teórico da dança André Lepecki. No texto Coreopolítica e coreopolícia, o autor cita Andrew Hewitt (2005, p. 11, apud LEPECKI, 2011, p. 46) quando propõe que coreografia é o elo para se pensar a relação estético-política e a define como a disposição e a manipulação de corpos uns em relação aos outros. A coreografia, nesse sentido, é o mecanismo que pode tornar ilusório o par liberdade e autonomia habitualmente relacionado à ação de transitar pela cidade. Quimérico, pois, a circulação ocorre por meio da ligação fundamental entre movimento e arquitetura como os dois fatores fundamentais na construção e na autorrepresentação da pólis como fantasia político-cinética da contemporaneidade (LEPECKI, 2011, p. 48). Movimento e arquitetura, assim, constituem o duo coreográfico elementar que autoriza quem pode se mover, designa por onde é possível se mover e também cerceia a mobilidade dos corpos de acordo com critérios de adequabilidade e aceitabilidade. Esses critérios, podemos considerar, correspondem a preceitos que variam numa escala modulante do mais disfarçado ao mais evidente conforme o setting em questão: as ruas ou os transportes coletivos, os cenários fundamentais da movimentação pela cidade. Antes de embarcamos nos transportes coletivos, quero destrinchar algumas considerações sobre as disposições coreográficas que ocorrem nas ruas, garantindo a perpetuação de uma fantasia da automobilidade no chão do urbano contemporâneo, para utilizar expressão de Lepecki. O teórico, situando essa fantasia de um transitar autônomo como herança da modernidade, a entende como emblema privilegiado de subjetivação, o qual, no palco supostamente liso e neutro que é o chão da cidade, encontra nos flaneurs e nos carros os dois grandes automoventes de uma modernidade que se representa sempre enquanto estado em perpétua mobilidade. Caminhante e automóvel, assim, coproduzem juntos a imagem-emblema da suposta autonomia política e cinética do cidadão contemporâneo (LEPECKI, 2011, p. 47). Nas ruas, a autonomia dos condutores de veículos na suposta proteção da redoma particular do automóvel, atritando os pés nos pedais para que as rodas deslizem no asfalto, transportando-o; e o caminhar do pedestre, que atrita e desliza os pés diretamente nos calçamentos são, na verdade, condicionadas, cada uma a seu modo, pelas leis e normatizações de trânsito, isto é, por uma

25 28 infinitude de expressões verbais, visuais e arquitetônicas do controle sobre a mobilidade. Dentre essas configurações, podemos destacar a geometria extremamente retangular das vias de circulação nas ruas (e também dos transportes coletivos), com todas as faixas, setas, linhas e filas formatando o paradoxo de uma circulação quadrada, reta, que reforça uma mobilidade frenética e individual, inibindo eventuais interações em trânsito que poderiam comobilizar concidadãos para além de passantes. A insistência na manutenção de uma circulação ilusoriamente autônoma advém, de acordo com Richard Sennett (2003, p. 14), de um [ ] princípio geral (que) vem sendo aplicado a cidades entregues às exigências do tráfego e ao movimento acelerado de pessoas, cidades cheias de espaços neutros, cidades que sucumbiram à força maior da circulação. Esse princípio, cujo gérmen se confunde com o próprio surgimento e profusão dos projetos urbanos de mobilidade (aparição dos meios de transporte), é um preceito moderno que se estende até a atualidade, salientando a espécie de enquadramento teoremático que o biopoder configura no urbano: resumindo-o e restringindo-o a linhas retilíneas que ignoram toda sorte curvilínea típica da volumetria dos corpos e da sua densidade múltipla de ritmos. 15 Contudo, não se exclui, em meio aos cerceamentos do planejamento adjacente à mobilidade urbana, a ocorrência de ações desviantes que distendem o advérbio supostamente ao palco do controle sobre o movente, ao chão da pólis contemporânea. Essas ações exercem uma possível automobilidade que, para carros e pedestres, se conserva apenas de modo aparente e podem ocorrer coletivamente e individualmente, ou melhor, numa singularidade que carrega em si um traço coletivo. Nas ruas, intervenções de caráter político e de caráter artístico, como manifestações, protestos, happenings e performances, podem contrapor contrafluxo ao fluxo imposto, provocando agenciamentos de tempo e de espaço, mobilizando a colaboração ou mesmo desaceleração dos corpos transeuntes. Lógica semelhante operam ciclistas e skatistas quando vão de encontro à ausência de políticas públicas, tomando agência do modo de se deslocar e por onde se deslocar, arriscando-se em cenários urbanos como a cidade do Rio de Janeiro, onde, visivelmente, veículos motorizados têm privilégios na organização engendrada pela administração pública. Sobre a agência dos ciclistas, Marc Augé (2015) afirma que: Todos os convites à passividade se desfazem quando os ciclistas montam numa bicicleta. O ciclista passa a ser responsável por si mesmo e imediatamente toma consciência disso. Simultaneamente ele toma consciência do lugar que lhe corresponde passível de ser percorrido em todos os sentidos, assim como dos itinerários que o distanciam desse lugar e dos outros que o trazem de volta (AUGÉ, 2015). 15 Falarei mais adiante sobre o surgimento e desenvolvimentos dos transportes coletivos e as características modernas que a mobilidade urbana preserva na contemporaneidade, recorrendo a postulados de Richard Sennett e Walter Benjamim.

26 29 Assim, engajando-se fisicamente para transitar pela cidade, ciclistas (e também skatistas, igualmente praticantes da imbricação corpo-chão na cidade) bailam nos preceitos dos planos de mobilidade urbana, opondo-se à ilusão da automobilidade dos condutores de carro e também dos pedestres. Atritando e deslizando seus veículos sem outro intermédio que não a implicação direta do corpo com o chão e o espaço aberto, ciclistas e skatistas ainda gozam do poder de desviar, fazendo das ínfimas brechas dos congestionamentos de carros espaços para exercer uma liberdade movente. Afinal, o sonho do ciclista é identificar-se na terra com o peixe na água ou a ave no céu, mesmo quando é preciso aceitar as limitações que o espaço lhe impõe. Pois o mérito do ciclismo a diferença dessa ilusão demasiado sedutora é precisamente nos proporcionar uma consciência mais aguda do espaço e do tempo (AUGÉ, 2015). Acredito que essa consciência aguda do tempo e do espaço também pode ser atribuída aos trabalhadores de carga, como os catadores de produtos recicláveis, que, às carradas, trafegam pela cidade com suas carroças transmutando toda sorte de asfalto, calçadas e canteiros em vias para se movimentar e para trabalhar. Para se movimentar trabalhando. Para trabalhar em movimento. Trabalhar movimentando o corpo que, imbricado ao material de trabalho, desliza e atrita pés e rodas, simultaneamente, no chão. 16 Nesse movimento, desviam-se das leis e experimentam modos mais autônomos de (sobre)viver na cidade. Autônomo talvez não seja o adjetivo mais preciso, pois os condutores de carroças, indissociabilizando mobilidade e trabalho, são marginalizados pelas relações capitalistas, que diminuem o valor de seus corpos e de sua profissão, relegando-os à condição de subemprego. Porém, embora explorados, possuem uma astúcia coreográfica que os distingue dos passantes convencionais na movimentação do espaço urbano. A expressiva quantidade de trabalhadores de carga transitando pelas ruas do Rio de Janeiro foi uma das primeiras percepções no início de meu movimento cartográfico na cidade. A relação corpo-objeto suscitada por esses trabalhadores ecoa já em uma das primeiras ações performativas que realizei nas ruas do Rio, conforme descrevo a seguir. 16 Essas observações amadureceram através do contato com a artista Nathália Mello, com a qual colaborei numa ação intitulada ca[r]rinho. Durante o Doutorado em Artes da UERJ, Mello desenvolveu uma pesquisa que articula, dentre outras, relações entre arte da performance, corpo, memória e modos de trabalho. Seus projetos artísticos podem ser conferidos em:

27 30 Da paviment-ação: Pago 4 e 10 Fotos de Pago 4 e 10 : Willams Costa

28 31 O aumento da passagem do metrô, que, de R$3,70, passou a custar R$4,10 a partir do dia 02 de abril de 2016, um sábado, foi uma das primeiras questões relativas à mobilidade urbana que mobilizou o meu contato com a cidade e o meu trabalho como performer. O aumento era assunto de conversas que eu discretamente escutava ou que propositalmente estimulava nas ruas, nas paradas de ônibus e nas próprias estações de metrô, onde o reajuste de tarifa era anunciado em placas fixadas nas bilheterias, catracas de acesso e vagões. O reajuste da tarifa e os trabalhadores indo e vindo com seus carrinhos compuseram em mim um mapeamento perceptivo que agregou mais duas referências. A primeira delas foi o encontro com vários carrinhos de supermercado acorrentados numa esquina. A composição fica no Centro, na frente de um supermercado. A segunda consistiu em observar os trabalhadores, que se denominam carretos, carregando coisas, o que me levou a imaginar a utilização dos carrinhos para transporte de gente. 17 Numa escala maior, comecei a comparar esse procedimento com o tráfego de pessoas no metrô: imóveis, ou melhor, inertes, em movimento repousado, sob conforto ou imprensados entre corpos e barras de ferro, os usuários são carregados. Esse mapeamento perceptivo, que germinava um desejo de ação, ganhou uma segunda camada e transmutou-se finalmente em ato performativo após o reencontro com o texto Programa Performativo: o corpo-em-experiência, de Eleonora Fabião. Partindo de uma análise dos trabalhos do performer estadunidense William Pope L., Fabião (2013, p. 5) considera que: o performer suspende o que há de automatismo, hábito, mecânica e passividade no ato de pertencer [...] Um performer resiste, acima de tudo e antes de mais nada, ao torpor da aderência e do pertencimento passivos. Mas adere, acima de tudo e antes de mais nada, ao contexto material, social, político e histórico para a articulação de suas iniciativas performativas. Este pertencer performativo é ato tríplice: de mapeamento, de negociação e de reinvenção através do corpo-em-experiência. As palavras aderência e resistência dançavam no meu pensamento com a imagem da performatividade dos trabalhadores empenhados de corpo inteiro aos seus materiais de carga, aderindo-e-resistindo ao chão da cidade e, de certo modo, revertendo a condição de subemprego em iniciativa autônoma. A proposição de Fabião sobre o trabalho de pertencimento de um performer foi célula pavimentosa para alinhar a relação mobilidade urbana/arte da performance que orienta meus caminhos pela cidade. Desse modo, a ação de mapear, que até ali envolvia aumento da tarifa, carrinhos e relações entre corpo e trabalho, precisava de atos de negociação e reinvenção para que meu corpo pertencesse performativamente à experiência da cidade através de uma iniciativa que propusesse 17 Essa imagem já habitava meu imaginário, pois já havia alterado o modo de utilização tradicional desse objeto numa encenação teatral do texto Fando e Lis, de Fernando Arrabal, no qual Fando empurra Lis, paralítica, num carrinho. Em nossa encenação, utilizávamos um carrinho de supermercado.

29 32 suspensões. Nessa contextura, pretendi articular suspensões do automatismo com o uso do material carrinho de supermercado, da mecânica e hábito envolvidos com a mobilidade na cidade e da passividade intrínseca à aceitação aos reajustes 18 anuais das tarifas metropolitanas. Para que esse ato tríplice virasse movimento, era necessária a criação de um programa performativo através do qual eu pudesse mergulhar de corpo e língua 19 na cidade. Então, elaborei o seguinte programa, rascunhado na última página de uma cópia do supracitado texto de Fabião: Pago 4 e 10: com um carrinho de supermercado contendo duas almofadas de minha casa, um protetor solar, uma garrafa de água mineral e alguns copos descartáveis, levantar um cartaz com os dizeres: Pago R$ 4,10 para você andar no meu carrinho. *Sujeito a condições. Aos transeuntes interessados, explicitar as condições: 1. aceitar ser registrado em foto e em vídeo; 2. fazer, dentro do carrinho, o percurso entre duas estações de metrô. Estrategicamente, decidi agir este programa no dia 04 de abril de 2016, segunda-feira, primeiro dia útil após o reajuste na tarifa. O reajuste foi efetivado pela Invepar 20 no sábado, 02 de abril, também estrategicamente, pois aos fins de semana a quantidade de usuários é consideravelmente menor, o que precisamente inibe iniciativas de manifestação. Com o programa em mente e em mãos, convidei dois colaboradores, André Rodrigues e Willams Costa, os quais, respectivamente, registraram a ação em vídeo e em foto. Agendei com eles o início do trabalho para 13h30, no Largo da Carioca, centro da cidade, mais especificamente na área de entrada para a Estação de Metrô Carioca, aquela que concentra o maior fluxo de usuários. 21 Assim, as opções de trajeto para os interessados em andar no carrinho e receber o pagamento seriam da Carioca até alguma das estações de metrô vizinhas: Cinelândia ou Uruguaiana. Programa, colaboradores e local definidos, faltava o crucial: o carrinho, material precário-relacional que desencadearia uma prática negociativa com os passantes das ruas. As negociações pelo carrinho incluíram conversas com gerentes de supermercado, tentativas de acordo com feirantes e carretos, pedidos de empréstimo a bares e prédios vizinhos ao meu. Os gerentes não confiavam o empréstimo a um estudante de artes e nem poderiam autorizar a saída do patrimônio material dos estabelecimentos ; os feirantes e carretos não queriam vender, emprestar ou não aceitavam a proposta de um valor de aluguel equilibrado para as duas partes; e os donos de bares e prédios vizinhos ao meu ou possuíam um carrinho que não comportaria o tráfego de pessoas ou ficavam inseguros para confiar num vizinho de poucas semanas e com sotaque de estrangeiro. 18 Vale ressaltar que em 2013 o estopim de uma das maiores manifestações políticas da história do país foi o aumento de vinte centavos na tarifa metropolitana de diversos municípios. 19 ROLNIK, S. Op. cit. 20 Invepar (sigla para Investimento e Participações em Infraestrutura S/A) é uma empresa privada que através de edital público de concessão detém as ações e administra o metrô do Rio de Janeiro, o VLT e avenida expressa Linha Amarela. A empresa foi alvo das investigações da Lava-Jato em Dado presente no livro Trilhos da Cidade, de Janice Caiafa (2013), que constrói um estudo etnográfico minucioso sobre a história e a utilização do metrô na cidade do Rio de Janeiro.

30 33 Finalmente, consegui o objeto num prédio onde uma amiga estava hospedada com a desculpa de que eu a ajudaria a trazer compras de grande porte do Saara. 22 Parti da minha residência, localizada na Rua Washington Luís, até o Largo da Carioca, num percurso que compreendeu 1,6 km de tempo. No caminho, a negociação já foi estabelecida através dos acordos necessários com carros, pedestres, árvores, lixeiras, placas, buracos, desníveis e ausência de rampas de acessibilidade em inúmeras calçadas para que o corpo-carrinho pudesse transitar em meio a olhares de curiosidade, espanto, desdém direcionados para o conteúdo transportado. De modo geral, a composição dos materiais é que recebia os olhares, poucos transeuntes quiseram conferir quem carregava aquele quê. Às 13h30 posicionei-me com o carrinho na frente da Saída A da Estação Carioca, no epicentro do Largo. Quando fui passar o protetor solar, o mesmo que seria compartilhado com os possíveis passageiros, um jogo impôs-se: o chão do Largo da Carioca não é plano. Logo, o carrinho não ficava parado, sendo necessário um ligamento incessante entre alguma parte do meu corpo e alguma parte do corpo do carrinho. Levantei o cartaz com o anúncio e vários passantes olhavam, comentavam e soltavam gargalhadas apontando para mim. Era impossível não retribuir os sorrisos, mas tentava me manter convidativamente sério. Com poucos minutos, uma mulher, tapando uma risada na boca, me abordou. Ah, mas o percurso é muito longo! São apenas 750 m até a Cinelândia e 550 m até a Estação Uruguaiana. Mas eu estou de saia Não faz mal, eu tenho almofadas, água, protetor, você vai confortável e, se quiser, cobre as pernas com uma delas. Não é tão fácil assim, você fala assim porque é homem. Mas, olha, eu iria, se não estivesse tão atrasada, eu iria. Em seguida, outra mulher tocou no meu ombro e perguntou se aquilo era uma performance protestando contra o metrô. É assim que você vê? Ué, você está na frente do metrô e utilizando o mesmo valor! Então, tá interessada? Vamos lá! Eu não posso, além do mais aquela câmera ali já me registrou. A mim também, ué, todas elas e mais aquelas viaturas de polícia. Mas é que eu trabalho no metrô! Jura? Sim, faço parte da Invepar, mas, olha, deixa eu te dar meu cartão, se você quiser conversar sobre mobilidade urbana qualquer dia, é só me escrever. Mais rápido do que eu poderia imaginar, já estava em relação corpo a corpo com o metrô institucional. Faltava, é claro, o metrô cotidiano. Posteriormente, alguns grupos de pessoas se posicionaram ao redor do carrinho. Muitos não acreditavam na veracidade do anúncio e, ao ver as câmeras, soltavam risadas: tá tirando com nossa cara? A gente não quer aparecer no Sílvio Santos nem no youtube, hein? Duas mulheres passaram tomando sorvete. Uma delas parou e tentou negociar um aumento no valor, disse que menos de 5 reais era muito barato para ir de uma estação até a próxima dentro de um carrinho. A amiga se 22 Saara é a sigla para Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, o maior centro comercial a céu aberto do estado fluminense.

31 34 afastou prontamente quando percebeu o registro das imagens, algo que a negociadora demonstrou não se importar. Percebi que era preciso pedir que as câmeras se distanciassem um pouco para que as conversas pudessem fluir e eu mesmo anunciasse a existência do registro, já que era uma das condições de pagamento. As conversas, então, passaram a ter uma duração maior. Uma mãe andando com auxílio de uma bengala disse que estava levando a filha ao dentista, mas que, na volta, caso eu ainda estivesse por ali, a menina participaria e ela me ajudaria a carregar, pois tinha adorado a atitude, em suas palavras, contra o metrô. Vários transeuntes liam o cartaz à distância, desaceleravam os passos, contornavam meu ponto e se aproximavam, como uma mulher que contestou o tamanho do veículo. Aí só cabe criança. Cabem adultos, eu garanto. Alguém já foi? Ainda não, mas pode ser você. Não sou um experimento tão barato, meu filho, disse ela, às risadas, atraindo dois homens. Um deles parou entre nós, conheceu o programa, tocou no meu ombro direito e seguiu. O outro continuou e conversou durante 30 minutos. Contou suas experiências trabalhando na rua, me identificou como artista e apresentou sua arte: fazia mosaicos com pedaços de vidro colados em pedras portuguesas que encontrava soltas pelo chão. Disse também que aquele material ajudava uma ONG para crianças e, se desculpando por tomar tempo do meu trabalho, me fez um pedido: será que você não poderia apresentar o meu trabalho para o Luciano Huck? Ou me encaminhar até ele? Mas eu não o conheço, eu não sou da televisão. Ah, não? Não. Mas o senhor pode escrever uma carta ou , não? Não, aposto que eles não leem. E se foi.

32 35 Voltei a erguer o cartaz e, simultaneamente, passei a prestar mais atenção na eferverscência de movimentos daquele largo: incontáveis trabalhadores iam e vinham carregando carroças com jornais, botijões de água mineral, móveis Um fiteiro mais ao fundo ecoava uma trilha sonora que variava entre And IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII, will always love youuuuu; é o amoôôr, que mexe com minha cabeça e me deixa assim. Um fio de cabelo no meu paletóóóó, além de meu pintinho amarelinho em versão flauta. Cortando a soundtrack, um homem sem camisa, dreads no cabelo, bastante interessado sobre o programa. Expliquei e ele seguiu, dando legal para mim e para as câmeras. Rapidamente, reapareceu no largo, desta vez acompanhado. Trouxe aquele que, segundo ele, era seu irmão mais velho. Moravam juntos na rua, ali perto, na feirinha de artesanato da Carioca e, por isso, chamavam-se de irmãos. O irmão, após segurar bem o cartaz e avaliar minhas palavras, foi resoluto, embora embriagado: não concordo, não quero, não me interesso e vou dormir. Em seguida, outro homem tentava falar comigo, mas não conseguia parar de rir. Nesse meio tempo, um executivo cumprimentou-o e tirou uma foto do meu anúncio, sem mais palavras. Após discutir comigo cada palavra presente no cartaz, procurando descobrir quem eu era e de onde vinha, o homem disse: logo vi que você não era um qualquer. Não entendi, o que é e o que não é ser um qualquer? Você não se veste, fala ou tem aparência física de um qualquer. Franzi a testa e desejei prolongar a discussão, mas meu trabalho ali estava para outra pauta. Então, você não quer receber 4 e 10? Levo e pago para qualquer um que quiser. Nem se você me pagasse 20 mil reais eu iria nesse carrinho até a Cinelândia, ainda mais a Cinelândia! Uma passante nos interrompeu, dizendo que já havia passado três vezes por ali. Queria passear comigo, mas reclamava de dores nas pernas e

33 36 frisava o fato de trajar vestido. O homem que não entraria nem por milhares de reais, incentivou que ela entrasse, elogiando o trabalho que faríamos. Foi, então, que o homem com dreads voltou com mais dois amigos, apresentando-os pelo nome, mas sem nunca dizer o seu. Um deles não morava por ali, mas os conhecia por fazer bicos naquela região. O outro me pediu água e me olhou energicamente enquanto eu relatava as condições, saindo abruptamente da área quando soube que seria filmado. A mulher de vestido e o trabalhador toparam entrar no carrinho. Disse que priorizaria ela, que chegou antes, mas o agenciador da minha ação saiu em defesa de seu amigo, argumentando para minha quase colaboradora: a senhora não vai ficar confortável aí dentro, deve doer. E ainda está de vestido! Ela prontamente concordou, ao passo que o amigo dele, agora meu colaborador, entrou no carrinho rumo à Cinelândia.

34 37 O agenciador nos acompanhou, dizendo que seria o próximo, voltando da Cinelândia à Carioca. Durante todo o percurso tentou, repetidas vezes, reajustar o preço. Mantive-me firme no cumprimento do programa e o passageiro concordou, dizendo que o negócio foi claro e fechado, pedindo que o amigo não incomodasse. Mas ele seguiu querendo me apontar por onde ir. Nos momentos em que os buracos da cidade e a minha condução quase provocaram um acidente, ele interveio: se derrubar ele, vai me pagar cem reais, hein? Parei para respirar e procurar um calçamento mais uniforme, afinal era indispensável manter a segurança do passageiro e também do meu próprio corpo, que já estava escoriado pelo carrinho. O passageiro disse que não me preocupasse, pois tudo daria certo e que a adrenalina valeria os 4 e 10. Ele passou a erguer o cartaz e anunciar a ação: é quatro e dez! É quatro e dez que ele paga para andar nesse carrinho! É quatro e dez, vai perder, é? Quatro e dez, vambora! Tem mais vaga aqui! Na superfície da Estação Cinelândia, ele quis deixar os dez centavos, mas relembrei o nosso trato. O agenciador, então, virou passageiro e, antes de tudo, confirmou mais uma vez quem eu era e para quem trabalhava, dizendo que era de se desconfiar receber um dinheiro assim, fácil. Você sente que está recebendo um dinheiro fácil? Analisou os objetos componentes do carrinho, ajustou as almofadas como queria, bebeu um pouco de água e perguntou a serventia do protetor solar. Passou o creme nas axilas, sentou e, para a câmera, disse alô, Rede Globo, mandando que eu seguisse. Solicitou que motoristas parassem no sinal verde para que passássemos, mexeu com os transeuntes, especialmente com os turistas, pedia ajuda aos amigos ambulantes, acenava para as calçadas, gritando pela atenção das pessoas e anunciado quanto valia andar naquele carrinho. Queria ser visto e foi visto por todos e, justamente quando atravessávamos as obras de construção do Novo passeio público da Rio Branco. Um legado da Prefeitura do Rio para você, conforme indicavam as placas, passou a utilizar o cartaz de anúncio como cartaz de protesto. Ô, moça, eu não aguento mais pagar o metrô. Ô, gente, e esse aumento para quatro e dez?! Não dá mais, não tem paz (Paes?). Quatro e dez?! Isso aí é um roubo? É 157? 23 É um crime de mau trato? É 171? 24 Ei, ele tá pagando 4 e 10! Tá barato que tá dedéu, mas vamo lá. Reconhecendo que anunciava e protestava enquanto eu conduzia o carrinho em silêncio, ele reivindicou seu labor: olha, eu mereço mais, hein?! De fato, ele era um passageiro sem passividade, ele era o performer da ação, gritando para a cidade, entre poeira, entulhos e passantes, os assuntos da ordem do dia. Ao 23 Referência ao artigo 157 do Código Penal brasileiro, decretado em 1940: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Fonte: de-07-de-dezembro-de Artigo 171 do Código Penal, também de 1940, que prescreve como crime obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Fonte: op.cit.

35 38 passarmos pelo VLT 25 (ainda) em construção, abordou os trabalhadores da obra: não dá, ô, o VLT vai acabar ou não vai? Amigo! O VLT, ó, eu não aguento mais pagar metrô. Eu tô aqui andando pra poder pagar. Quando voltamos para a Carioca, cruzamos com um dos irmãos que havia desistido por conta do registro fotográfico. Olha ele, lá. Ele desistiu quando viu as câmeras, maluco. É que ele tá foragido, matou quatro mulheres. Percebi que o homem seguia me encarando. Confesso que a informação, que nunca saberei ser verídica, me desestabilizou. Comecei a me sentir estranhamente culpado por ter conhecimento do fato, mas seguimos. Ele aceitou o pagamento e, cumprimentando um de seus irmãos que estava por ali, disse que chamaria os demais. Falei que encerraria a ação, pois precisava liberar os colaboradores. Ele foi mesmo assim e o irmão que continuou ao meu lado falou: você deve ter bastante dinheiro, hein? Não tenho, não, senhor. Pra tá distribuindo assim Mas eu nem queria o dinheiro, ele foi otário. Dava pra ter roubado esse carrinho fácil fácil. Chamei os colaboradores e fui devolver o veículo. 25 O Veículo Leve sobre Trilhos foi a principal reforma na mobilidade urbana do centro carioca inserida no projeto legado olímpico. Falarei mais detidamente sobre o assunto na Linha IV.

36 39 Pago 4 e 30 Foto de Paulo Faltay (morador do Largo do Machado)

37 40 Pago 4 e 30, foto de André Rodrigues No dia 02 de abril de 2017, exatamente um ano após o último reajuste e novamente no fim de semana, a tarifa do metrô aumentou vinte centavos. Na tarde de 03 de abril de 2017, primeiro dia útil após o aumento, agi o mesmo programa, com a alteração, é claro, do valor de pagamento. Dessa vez o centro de realização foi o Largo do Machado e as opções de translado oferecidas foram Largo do Machado/Catete, Catete/Largo e Largo/Flamengo. Se na primeira realização eu percorri com o carrinho cerca de 2 km entre minha antiga residência e o Largo da Carioca, agora o objeto precáriorelacional foi retirado no acervo do curso de Direção Teatral, da Escola de Comunicação (UFRJ Campus Praia Vermelha) e conduzido até o Largo do Machado, compreendendo a extensão de 3,5 km de tempo. Durante o percurso, a maior familiaridade com o objeto e a atenção com os desníveis da rua, adquiridos através da primeira experiência, me possibilitaram estar mais atento aos passantes. Confirmei que a maioria absoluta das pessoas com as quais cruzamos o caminho, eu e o carrinho, conferiu o conteúdo do objeto, com olhares rápidos ou minuciosos. Muitos franziam a testa, cerravam os olhos ou balançavam a cabeça ao perceberem que as vias pedestres eram atravessadas por um carrinho cuja carga se resumia a duas almofadas, uma garrafa de água mineral, um protetor solar, um cartaz e um colete de trânsito. Fiz questão de olhar nos olhos das pessoas que fitavam o material, mas o olhar delas nunca ultrapassava minhas mãos, isto é, limitava-se até o limite do carrinho. Inclusive conhecidos

38 41 passaram por mim sem cumprimentar. Como se meu corpo e o corpo do carrinho constituíssem um só corpo, mas sem rostidão, pois o objeto acumula o destaque no campo perceptivo das ruas e deve disparar palavras como subemprego, precariedade, vulnerabilidade social 26 Talvez assim ocorra com os demais e inúmeros trabalhadores de carrinho que atuam nas ruas da cidade: eu mesmo esbarrei em alguns e percebia o meu olhar direcionado para seus objetos. A diferença é que havia sempre um cumprimento entre eles e eu, como se nossos objetos de trabalho nos identificasse como pertencentes a uma mesma communitas, enquanto os demais passantes pareciam resumir nossos corpos aos nossos objetos. Chegando no Largo do Machado, aproximadamente às 14h30, girei o olhar por 360 graus e logo me deparei com um grupo considerável de crianças cheirando cola; uma viatura de polícia; idosos sentados à sombra; um grupo de homens abordando transeuntes com bilhetes para o Cristo Redentor; um floriculturista; dois ou três homens pedindo doações para o GreenPeace e, claro, o vai e vem de usuários nas escadas rolantes da estação de metrô. Posicionei-me à vista de todos eles e levantei o cartaz com o anúncio, ora apontando-o diretamente para quem saía do metrô, ora apontando para o outro lado do Largo. Após inúmeros transeuntes interagirem à distância, uma mulher resolveu conversar: olha, mas você é malandro, hein? Bom protesto contra o metrô. Seria incoerente eu participar, pois não utilizo o metrô. Acaba que o gasto não compensa, tenho impressão de que ele liga nada a nada. E outra: não tenho trabalho formal e todo custo está fazendo falta. Aliás, de que adianta trabalhar formalmente no país onde nem se pode mais se aposentar?! Destaquei que me interessava por nãousuários do metrô, mas ela disse que só iria se eu a deixasse em Laranjeiras, onde não há metrô. Falei que não poderia desvirtuar o programa e ela me deu dicas de ordem estética: as letras desse cartaz poderiam estar mais escuras, mais desenhadas, sabe? Você também poderia encaixá-lo num suporte de madeira preso ao carrinho, assim ficaria com o corpo solto e não cansaria os braços. Agradeci e ela se despediu: vou torcer para que você consiga realizar o trabalho e para que somente pessoas de bom coração entrem nesse carrinho. Imediatamente à ida dela, o grupo de homens que vendiam tickets para o Cristo Redentor formou um círculo em torno do meu trabalho. Expliquei as condições e um deles aceitou ser passageiro. Troquei mais algumas palavras sobre o percurso, mas ele, irritado e autoritário me ordenou: vambora! Vambora, que eu tô trabalhando! Fomos em direção ao Catete, num caminho onde quase não há espaço: muitos camelôs e pedestres disputando as calçadas. Um amigo dele nos 26 Comecei a observar essas relações antes mesmo de ir para as ruas, ainda na produção de Pago 4 e 10. Compartilhei no facebook imagens de tipos diversos de carrinhos, pois necessitava do material para realizar a performance. Um dos meus colegas de mestrado prontamente divulgou em sua página o pedido, ao passo que outro colega da turma postou o seguinte comentário: avisa para ele que minha mãe disse que se ele estudar direitinho não vai precisar trabalhar com esse tipo de material.

39 42 acompanhou e, enquanto gentilmente me ajudava a subir e descer algumas rampas, dizia que nunca tinha reparado que as distâncias entre as estações eram tão curtas e que a tarifa não levava em conta o fator distância. Chegamos à Estação Catete e eles voltaram ao Largo do Machado para trabalhar. Vários trabalhadores dos comércios, oficial e ambulante, além de seguranças, caixas e serventes pediam que eu mostrasse o cartaz e perguntavam as condições. A maioria dizia que, caso não estivesse trabalhando, iria. Um vendedor de livros, no entanto, disse que não iria, mas a esposa, sim, pois era desse jeito, maluca. Você tá querendo dizer que eu sou maluco, é isso? Quero dizer que todos nós que estamos na rua anunciando, trabalhando e movimentando a cidade somos malucos. Mantive-me de costas para as escadas rolantes de saída da estação, fazendo com que os usuários virassem de costas para ler o anúncio. Aos que entravam, também virava o cartaz para as respectivas direções, porém poucas pessoas interagiam. Virei para o ambulante mais próximo, o qual, dentre outros trabalhadores, já explanava o programa da ação para os passantes curiosos, e disse que aquela estação parecia difícil para negociar. Ele me perguntou onde eu já havia trabalhado e concluiu: ah! No Centro deve ter sido ótimo, passa todo tipo de gente. Aqui, meu filho, é Zona Sul. Você não sabe que o povo tem mais frescuras? Um passageiro, saindo do metrô, embora considerasse aquilo divertido, disse que tinha pernas. Outra parou, tirou os óculos, leu o cartaz e parou a alguns metros, sem esboçar nenhuma reação. Permaneceu ali por quase 40 minutos, até o momento em que alguém entrou no carrinho. Uma camelô estrangeira, descarregadores de abastecimento para os supermercados e até um pai com a esposa e quatro filhos demonstraram interesse, porém seus horários de trabalho impunham indisponibilidade. Todos perguntavam até que horas eu pagaria, porque participariam assim que estivessem livres. Três senhoras fizeram um círculo em torno do carrinho, a princípio, incrédulas. Quanto você está ganhando para fazer isso? Mas ele está perdendo, não? E esse carrinho vai comportar a gente? Isso aí é para criança andar! A cada explicação, elas riam e conversavam entre si até revelarem, para minha surpresa, que não se conheciam. Haviam parado simultaneamente, a poucos passos, para comentar sobre o cartaz e o carrinho. Uma delas entrou no metrô, a outra voltou a trabalhar e a terceira decidiu entrar no carrinho, com notável desaprovação de sua filha. Enquanto a filha andava distante de nós com vergonha do que fazíamos, ela me dizia que aquilo era uma oportunidade de loucura e de coragem, um atravessamento que mudou a rotina do dia e que a permitia desopilar tudo de uma vez. A cada rampa e a cada curva dizia que eu era mesmo um maluco e que ela era ainda mais por estar ali dentro. Os camelôs do Catete nos aplaudiam e gritavam conseguiu! Ele conseguiu! Ela me falava, apontando os celulares em ação, que viraríamos estrelas do youtube. Duas senhoras passaram por nós, uma pilotando um carrinho

40 43 motorizado e a outra sendo conduzida numa cadeira de rodas por uma enfermeira. À última, disse que o carrinho de supermercado poderia ser outra opção. A mim, disse que indicaria o veículo aos seus pacientes cadeirantes. Alguns policiais e guardas fitaram nossa ação e ela temeu que fôssemos advertidos. Ríamos a cada risada que nos atravessava e ela agradecia a experiência, mandando eu descansar ou dividir o peso. Meus braços se empenhavam ao carrinho que, por sua vez, constituía a minha imagem. O peso faz parte. O chão da cidade, as rodas do carrinho e o seu peso é que fazem meu corpo. Ao término do trajeto ela quis recusar o pagamento. Vá tomar uma cervejinha, eu não participei pelo dinheiro. Foi por tudo, menos pelo dinheiro. Anúncio é anúncio, acordo é acordo. Deixo os 30 centavos, então. De modo algum. Pois, então, vou lá pagar a passagem do metrô. Ela embarcou na estação Largo do Machado, onde o grupo de vendedores de tickets estava ainda maior. Eles me anunciavam entre si: é ele que paga pra fazer o rolê! Vai lá! Um deles veio e questionou o valor. Disse que há anos não utilizava o metrô e, por isso, nem sabia da tarifa. Não vou porque estou trabalhando, mas eu gostei disso, porque pega nossa inteligência, hein? A gente tem que pensar além de sorrir. E não deixa de ser um bom protesto, avaliou, voltando a abordar os pedestres. Dois meninos com cola nas mãos se aproximaram. Antes que eu falasse, um dos ofertadores interveio: isso aí é pra adulto, não pode criança. Eles dispersaram e o vendedor prosseguiu: essas crianças são todas malucas, cara! Um perigo constante! Posteriormente, um grupo de quatro amigas parou e começou a discutir quem andaria no carrinho. A mãe de uma delas se uniu à conversa, alertando que o percurso até a estação Flamengo seria longo e que, por isso, o valor era baixo. Mas é esse valor que a gente pagaria se fosse pra lá de metrô, alertou uma das amigas. Uma delas insistia que deveriam aceitar, pois acreditava que estavam sendo filmadas à distância. Tenho certeza que isso é coisa do Luciano Huck e que, se eu entrar, vou ganhar muito dinheiro. Deixei claro que ela ganharia apenas R$4,30 e que não trabalhava para o Luciano Huck e nem trabalharia. Ela insistia na versão e, nesse impasse, uma garota que já havia passado pelo Largo, voltou para entrar no carrinho. Preciso me organizar, porque estou sem calcinha. E dura! Essa grana vai ajudar a inteirar o maço de cigarros que há dias eu não compro. Ao longo do caminho, enquanto ela filmava o percurso, pediu que eu tivesse atenção, pois, quando criança, já se acidentara fazendo aquilo. Era turista, de Londrina e estava no Rio desde o carnaval. Vou embora amanhã, porque não dá mais. O dinheiro acabou e não surge mais. Alguém consegue manter dinheiro e arrumar trabalho nesta cidade? Ela me disse que era professora de artes, assim como sou professor de português. Português? Mas você não é artista? Estudo artes da cena, sim. Ah, claro, eu sabia que isso era uma performance! Conversamos também sobre a diferença entre bairros tão próximos: no caminho para o Flamengo as calçadas estavam mais livres e limpas, quase não havia ambulantes e o comércio não era popular. Só a acessibilidade que continua horrível, disse ela, a cada vez que o carrinho tropeçava

41 44 no asfalto, dizendo que eu deveria escrever um trabalho sobre acessibilidade. Desviei não apenas de buracos, mas de homens que secavam a minha passageira e quase atropelavam o carrinho. Crianças passeando em carrinhos de bebê acenavam para ela e um homem nos ofereceu uma amostra grátis de bolo. Paramos e conversamos sobre limão, chocolate e trabalho. Ele panfletando. Eu performando. Ela passeando. Os três trabalhando, mas sem empregos formais. Seguimos e o foco da filmagem dela se transferiu das rampas e buracos para as grafitagens. No fim do trajeto, ela confessou que pensaria mais sobre acessibilidade. Dei cinco reais e trinta e pedi um real de troco. Ai, nem acredito que vou comprar minha carteira de cigarro! Voltamos a conversar um pouco sobre a falta de complementaridade entre ausência de dinheiro e viver no Rio de Janeiro. Na parede ao nosso lado, na frente da Estação Flamengo, ela apontou para mais alguns grafites. Entre eles, uma pichação dizia: sem mimimi. Vou lá pegar o meu metrô! E depois comprar meu cigarro! Vou lá devolver o meu companheiro de trabalho. A maneira através da qual me referi ao carrinho sugere a imbricação do corpo com o material, da indivisão entre sujeito e objeto. O entrelaçamento do corpo com o carrinho é registrado no corpo de trabalho: a força empenhada, a produção de suor, o surgimento de hematomas e escoriações nas mãos, os desvios, acelerações e freadas comandadas pelo próprio material quando atrita no solo desnivelado da cidade. Essa inter-relação entre corpo e carrinho pode ser lida através da palavra-conceito coisa, proposta por Lepecki (2012a), que, primeiramente, discute a noção de dispositivo elaborada por Giorgio Agamben (2005), o qual nos diz: Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e porque não a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2005, p. 14). Como se percebe, através da noção de dispositivo, Agamben engloba um conjunto de instâncias heterogêneas de instituições a locais físicos, de proposições ideológicas a objetos que se articulam como estratégias na organização dos espaços, na constituição das relações de poder e na legitimação de discursos que governam conjuntamente o comportamento em sociedade. Revisando os escritos de Michel de Foucault, Agamben descreve que na obra do filósofo francês a noção de dispositivo esteve frequentemente citada nos escritos sobre governabilidade e aparecia primeiramente nas entrelinhas do conceito de positividade. Este seria um par sinonímico de elemento histórico, isto é, um termo que carrega a amplitude do sentido de histórico no

42 45 imbricamento das instituições, paradigmas, modos e mecanismos que concretizam as estratégias de controle e disciplina. Posteriormente, revisando a etimologia francesa do termo, Agamben descreve que o uso da palavra dispositivo preserva uma relação com o conceito de economia ( oikonomia ), um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens. (AGAMBEN, 2005, p. 12). Inseridos nessa lógica, os objetos, por sua economia utilitária, também refletiriam a função de perpetuar o coreo-policiamento dos corpos na máquina de governo (IDEM, IBID., p. 15) chamada dispositivo. Dialogando com esses postulados, mas recusando uma abordagem categoricamente genérica, Lepecki observa que os objetos, englobados por Agamben na categoria qualquer coisa, evidenciariam uma função estranhamente poderosa que, dotada com as capacidades de capturar, modelar e controlar gestos e comportamentos corresponde, certamente não por acaso, à definição daquela invenção estética-disciplinar da modernidade por excelência, a coreografia (LEPECKI, 2012a, p. 94). Descrevendo a expressiva quantidade de objetos constituindo peças de dança experimental e performance na contemporaneidade presentes não meramente como acúmulo, mas contracenando com os performers Lepecki flexiona essa abordagem ao expressar que objetos podem desviar-se da semântica do controle. O teórico da dança propõe que objetos, quando libertos de utilidade, valor de uso, valor de troca e significação revelam a sua capacidade liberadora, a sua capacidade de escapar totalmente de dispositivos de captura. Livres, objetos deveriam ganhar outro nome próprio: não mais objeto, não mais dispositivo, não mais mercadoria, não mais lixo mas simplesmente coisa (LEPECKI, 2012a, p. 96, grifo original). A noção de coisidade, portanto, abarcaria tudo que escapa da razão instrumental, tudo que existe fora das lógicas de manipulação, tudo que é incondicionado, tudo que quer ativamente fugir ou escapar de ser reduzido às lógicas de compreensão e funcionalidade, tudo que nos relembre que a incerteza circunda a realização das coisas (LEPECKI, 2016, p. 29, minha tradução). 27 Compreendendo que a proposição do conceito de coisidade se afasta precisamente da lógica de subordinação que quer manter estanque a hierarquização sujeito/objeto ou limitar todas as coisas à mera classificação de objeto, considero-a pertinente para endereçar reflexões sobre a relação entre carrinhos e trabalhadores de carga, de modo geral, e sobre a ação Pago 4 e 10/ Pago 4 e 30, de modo particular. 27 Trecho original: [ ] defining a thing as whatever escapes instrumental reason, whatever exists outside logics of manipulation, whatever is unconditioned, whatever actively wants to run away, escape, from being reduced to graspability and comprehension, whatever reminds us that uncertainty surrounds the holding of things (LEPECKI, 2016, p. 29).

43 46 Há, evidentemente, uma distinção capital entre o meu trabalho como performer e o trabalho dos carregadores: relacionar essas reflexões aos trabalhadores de carga requer um movimento complexo, já que é inegável a forte ligação com as estruturas de controle e com a engrenagem capitalista, que não permite o trabalho ser plenamente autônomo. Entretanto, também não se pode negar que os percursos que eles cartografam na cidade, operando contrafluxos e expandido modos de produção e relação, expressam automobilidade e é justamente este aspecto, acredito, que pode unir nossas práticas. Além, é claro, da imbricação de nossos corpos com nossos objetos de trabalho, nossos carrinhos. No caso dos carregadores, os carrinhos de carga são objetos que simbolizam tanto a força física do trabalhador informal quanto a força bruta do subemprego. Também denotam a imbricação entre os corpos dos trabalhadores e a função de carregar, o que inscreve uma dupla diferenciação: se os trabalhadores são, por um lado, categorizados como diferentes e à parte pela massa homogênea que circula pelas ruas, distinguem-se desta, por outro lado, justamente pelo modo como circulam na cidade, fazendo das ruas um espaço para trabalho-em-movimento. Essas contrações disruptivas, entre negação do controle e necessidade de produção de capital, podem encontrar terreno nas considerações que Fred Moten (2003, p. 1, apud LEPECKI, 2012a, p. 95) e o próprio Lepecki dissertam a respeito da relação corpo-objeto: Enquanto a subjetividade é definida pela posse que o sujeito tem de si mesmo e dos seus objetos, ela é perturbada por forças despossessivas que os objetos exercem de tal forma que o sujeito parece ser possuído (infundido, deformado) pelo objeto (MOTEN, 2003, p. 1). Chamo essa força des-possessiva e deformadora que todo objeto exerce sobre o sujeito de coisa. Talvez tenhamos de extrair algo dessa força despossessiva, aprender de que maneira sujeitos e objetos podem se tornar menos sujeitos e menos objetos e mais coisa. O carrinho e o trabalhador, imbricados no trânsito na cidade, tornam nebulosas as categorizações de sujeito e objeto e podem nos ensinar sobre a capacidade agregadora de agir mais como coisa e menos como sujeito e como objeto. De minha experiência de engajamento com o carrinho de supermercado na realização das performances, saliento que o carrinho conduz mais do que é conduzido e, juntamente ao chão, em atrito e deslize, coreografa mais do que é coreografado. Logo, não se limita à condição de objeto utilizado. Age como coisa, no sentido de ser uma unidade coextensiva da matéria (LEPECKI, 2012a, p. 97). Contudo, não seria prudente afirmar que a relação que mantenho com o carrinho na execução da performance está liberta de utilidade, valor de uso e valor de troca. Se por um lado a apropriação do material e a negação ao seu uso cotidiano indicam liberdade de significação, por outro as condições de uso, as relações monetárias expressas no pagamento e no diálogo com a tarifa do metrô podem vibrar uma condição de mercadoria atrelada ao passageiro. Talvez essas dualidades se equilibrem no ato de negociação que, movimentando outras relações de utilidade do

44 47 espaço e do tempo, pode provocar a possibilidade dos corpos envolvidos (performers e carrinho) agirem enquanto coisa. Nesse ato negociativo em prol do deslocamento das noções cotidianas de utilidade do carrinho de compras e da experiência de tempo e de espaço dos corpos em colaboração, um fator evidente na realização das ações é o humor provocado nos passantes pelo quê de absurdo presente na proposição do programa. Embora considere o humor um dos afetos contundentes para negociar relações na execução da ação, para mim é sempre importante preservar certa seriedade no engajamento com o material e com a função de carregador. Para além da necessidade de cuidado com o corpo alheio, intenciono não perder de vista a oportunidade de salientar as disparidades do projeto de mobilidade em vigência na cidade. Nesse sentido, é possível alinhar o programa da ação com o pensamento de arte socialmente comprometida formulado pela artista Tânia Bruguera. Para ela, o objetivo de uma arte comprometida com o social não é (apenas) estimular sorriso, mas criar um processo através do qual se possam processar coisas que são difíceis de digerir e aceitar, mas que precisam ser ditas e feitas se queremos viver em outra sociedade, e para isso não apenas a solidariedade, mas também a fricção pode ser uma ferramenta efetiva 28 (BRUGUERA, 2017, minha tradução, grifos acrescentados). Estação de transferência I: Do dissenso performativo Aproveitando a aparição das palavras fricção e solidariedade na fala de Bruguera, destaco aqui a performatividade semântica que os termos carregam enquanto práticas indissociáveis que caracterizam os processos infindáveis de negociação e agenciamento presentes na performance urbana. Fricção e solidariedade, assim como aderência e resistência (FABIÃO, 2013), são combustíveis daquilo que quero nomear vulnerabilidade vibrátil. Para formular este conceito, contudo, é preciso reembarcar nos transportes coletivos e observar como as ações de pedintes, religiosos, vendedores ambulantes e artistas, resguardadas suas especificidades, vibram um dissenso 29 performativo e tangenciam no que Lepecki (2011, p. 55) conceitua como coreo-política: 28 [ ] En términos del arte socialmente comprometido, el objetivo no es lograr una sonrisa, sino crear un proceso a través del cual se puedan procesar cosas que son difíciles de digerir y aceptar pero que tienen que ser dichas y hechas si queremos vivir en otra sociedad, y para eso no sólo la solidaridad sino también la fricción puede ser una herramienta efectiva. Trecho original do depoimento presente na entrevista concedida à Revista Artishock, publicada em 3 de abril de 2017: 29 Rancière (2006). O conceito será abordado mais adiante, na Linha II.

45 48 comobilização da ação e dos sentidos, energizada pela ousadia de iniciar o improvável, no chão sempre movente da história, e que pode prescindir mesmo do espetáculo do cinético da circulação e do agito, pois o que importa é implementar um movimento que, ao se dar, de fato promova o movimento que importa. Que pode ser, por exemplo, simplesmente parar. Desse modo, agenciamentos em curso nos transportes coletivos, assim como o fazem trabalhadores de carga, ciclistas e skatistas nas ruas, podem jogar astutamente com as ranhuras do modus operandi, mexendo com as molduras comportamentais e os preceitos de circulação na medida em que invocam outras gestualidades, outros acordos, negociando e performando constantemente com a implementação de outros movimentos coreográficos na composição biopolítica.

46 LINHA II: Transportes coletivos: passarelas discursivas, espaços performativos 49 [...] mesmo fora da estrada, mesmo na suposta segurança do lar, o sujeito se vê como automovente apenas para se descobrir num eterno engarrafamento de seu desejo, numa violência neocolonial desmedida e sádica tudo para garantir o combustível que o moverá para o próximo engarrafamento (LEPECKI, 2012b, p. 17). A projeção suscitada pelo trecho acima, da imagem do fluxo de engarrafamentos pelos quais os sujeitos da urbanidade são constantemente violentados, pode encontrar cenário latente no funcionamento dos transportes coletivos, uma vez que estes, ao contrário da ilusória agência dos deslocamentos pedestre e automobilístico, impõem uma mobilidade passiva. Ademais, os transportes são produto e produção dos planos de mobilidade urbana, os quais são engendrados pela coligação entre gestão governamental e iniciativas privadas que arquiteta a malha urbana de transportes coletivos como a alternativa vigente e democrática para transitar pela cidade. Escolho utilizar coletivos ao invés de públicos, pois, os transportes (e a palavra inclui aqui não somente a malha de veículos, mas também as áreas da cidade que são destinadas para construção e funcionamento de plataformas estações de trem, metrô e balsa, rodoviárias...), embora difundidos como um bem público, constituem um serviço tarifado. Evidentemente, dentre os tipos de transporte a contradição público x privado é mais diluída ou mais densa conforme as condições de acesso e utilização (vide os aeroportos). Logo, há uma seleção de público que, por si só, já torna nebulosa a ideia de um serviço público. 30 Sendo assim, poderíamos considerar os transportes coletivos como um símbolo máximo e institucionalizado do controle sobre a mobilidade, sobre os moventes, porque, projetados como bem-comum, difundidos como patrimônios públicos, são espaços que introjetam molduras comportamentais. Nesse sentido, talvez não seja hiperbólico considerarmos que o funcionamento dos transportes contradiz a própria ideia de coletividade, pois a constante e ininterrupta transitoriedade, bem como as características de controle mecanizam o comportamento dos corpos e diluem possibilidades de concidadania. Essa mecanização dos comportamentos está presente no pagamento de tarifas, no abrir e fechar de portas, na espera, na disposição dos assentos e a consequente forma que conferem aos corpos, na sinalização de paradas Instâncias coreográficas rotineiras que regulam o ir e vir. Tão reconhecíveis quanto essas coreografias são as ineficiências intrínsecas à operacionalização dos 30 Para uma diferenciação mais detalhada dos conceitos de público e privado, pode-se conferir Negri e Hardt (2012).

47 50 transportes em grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro, ineficiências que saltam à vista como fragmentos da violência neocolonial (LEPECKI, op.cit.), como retratos da sobrevida em trânsito pelas cidades: a famigerada imagem da massa esperando passivamente pelo meio de ir e vir, do qual, enquanto pagante, torna-se dependente e que, em disputa frenética por um espaço na superlotação, é entretida por recursos audiovisuais que veiculam notícias, anúncios publicitários, avisos das empresas de transporte, pronunciamentos da prefeitura, notas sobre celebridades, previsões astrológicas Esses recursos, cada vez mais frequentes em ônibus e compartimentos de trem e metrô, amenizam, estrategicamente, a passagem do tempo e as eventuais, se não circunstanciais, falhas no serviço da mobilidade. Mas também parecem minimizar o possível constrangimento dos passageiros em ocuparem um espaço com desconhecidos num confinamento em trânsito que pode durar segundos, minutos ou horas a depender do trajeto e das condições de fluxo das cidades. Como sabemos, estando apenas de passagem, não há precisamente relações interativas entre os usuários, os quais parecem limitar-se, em geral, a cumprimentos socialmente etiquetados ou a comentários sobre o próprio cotidiano. 31 Nesse contexto, a presença de recursos audiovisuais parece concentrar o olhar dos passageiros para evitar o desconforto do olhar entre si, pois, pessoas que são obrigadas por força das circunstâncias a compartilharem um espaço restrito não só se encolhem para preservar sua privacidade, mas também desviam os olhos umas das outras. É o que acontece, por exemplo, em elevadores ou transportes coletivos (STEINBERG, 1988, p. 21). Preenchendo lacunas dialógicas, esses recursos preservam a moldura comportamental dos passageiros, evitando possibilidades de interação. Disfarçando e diluindo a inevitável co-presença, a organização espacial dos transportes tenta impedir que passageiros sejam concidadãos para além de usuários, assim como garantir a função primária dos meios de transporte que é o trânsito incessante de pessoas. Essa postura é um traço cultural que caracteriza os transportes desde o seu aparecimento: Walter Benjamin, no famoso O Flaneur, afirma que o surgimento dos elétricos e dos trens, os primeiros meios de transportes coletivos, instaurou na sociedade um predomínio do ver sobre o ouvir, porque as pessoas passaram a ocupar o mesmo espaço por longos períodos de tempo sem dialogar. Recorrendo a uma expressão de Georg Simmel, Benjamin afirma que quem vê sem ouvir fica muito mais inquieto do que aquele que ouve sem ver e este fato: contém algo de muito característico da sociologia das grandes cidades. As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades caracterizam-se por um evidente 31 Não estou excluindo com essa observação a existência de interações mais expressivas. É preciso ter em mente as distinções entre os meios de transporte coletivo e as particularidades sociais que eles impõem. No trem do Rio de Janeiro, por exemplo, que leva a população para áreas periféricas, o longo percurso às vezes é atravessado por jogos de carta, rodas de samba e até cervejada. Acontecimentos que também salientam as distinções de controle em relação, por exemplo, à higienização do metrô que circula na Zona Sul da cidade.

48 predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros, dos comboios, dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizerem uma palavra. 51 Os meios de trans-porte operam, assim, uma dupla mudança: a mudança de lugar (o deslocamento) enquanto função e a mudança de porte (o comportamento) enquanto condição. Mantém-se, por meio dessa dupla operação, o predomínio do olhar sobre o ouvir, a segregação entre corpos e fala, o transporte de usuários ao invés de concidadãos. Nesse atravessamento coreografado, ações que desviam o controle e, aproveitando o fluxo de pessoas, atrelam a atividade do ouvido à atividade do olhar, são constantemente reprimidas. 32 Entretanto, os passageiros de um grande centro urbano como o Rio de Janeiro estão igualmente habituados à ocorrência de intervenções que, paralelamente a essas estratégias de entretenimento, quebram a monotonia funcional dos coletivos e desvirtuam as regras de utilização. Vendedores ambulantes, pedintes, religiosos e artistas têm ressignificado os corredores dos coletivos com suas performances. Ações que alteram, ou melhor, acrescentam funções, tanto ao espaço, que ganha contornos de feira livre, palco, assembleia e púlpito religiosos e corredor filantrópico, quanto aos passageiros. À medida que estes compram os produtos oferecidos, doam ou negam esmolas, respondem amém ou batem palmas, estão assumindo papéis diversos e, mais ainda, co-construindo a interatividade e autorizando a ocorrência de atividades que subvertem os planejamentos da mobilidade urbana, transformando espaços tão controlados em performativos. É preciso considerar também que muitos passageiros expressam desdém e outras reações negativas aos performers. Quando desautoriza a venda, a pregação, a apresentação artística e o pedido de esmola, o passageiro, recusando ser transmutado em espectador, toma rédea do seu papel de usuário, já que, tendo pago pelo serviço, pode contestar o descumprimento das leis de utilização e revogar seus direitos. É como se, em certa medida, refletisse as instâncias molares que regem os transportes. Félix Guattari (2011) sustenta a tese de que há, necessariamente, duas instâncias de expressão do funcionamento político: o nível molar, que estaria para a macropolítica e o nível molecular, para a micropolítica. A macropolítica, como sugere o prefixo, refere-se às estruturas de controle e sistemas de relação e produção que caracterizam o modo político dominante. Micropolítica, por sua vez, não designa um fazer político menor, mas iniciativas alternativas que se 32 Evidentemente, as formas e razões de repressão são inúmeras e compreendem desde o cumprimento de leis municipais até processos de higienização que buscam preservar o conforto do público pagante, o qual, por consequência, exerce certo poder no espaço em relação aos outsiders, cujo exemplo máximo, talvez, seja o pedinte de esmolas.

49 52 opõem aos moldes do campo macropolítico, podendo ocorrer em escalas sociais variáveis, revelando e alterando a macropolítica. Sobre essa relação de contrariedade e inerência entre os dois campos, Guattari (2011, p. 123) considera: a questão micropolítica - ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no campo social - diz respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais amplas (que chamei de molar ), com aquele que chamei de molecular. Entre esses dois níveis, não há uma oposição distintiva, que dependa de um principio lógico de contradição. Os transportes coletivos e as estações são espaços que funcionam na alternância entre ambas as instâncias: se por um lado, enquanto planejados e administrados pelo poder público e pelas eventuais concessões privadas, representam a macropolítica e, portanto, carregam características molares, por outro lado são inevitáveis locais de encontro entre concidadãos, os quais, circulando pela mesma cidade e se deslocando num mesmo espaço, comportam-se em termos moleculares, podendo agir micropoliticamente. Tal modo de agir se expressa desde os cumprimentos socialmente etiquetados até a obediência às regras de utilização do espaço público, o que pode levar passageiros a fiscalizarem se outros estão mantendo o tom. Podem atuar, mesmo que indiretamente, mesmo que micropoliticamente, repito, como asseguradores da macropolítica. Do correlato: controle e dissenso Também em expressão micropolítica, as ações de deslocamento da ordem, as performances efetivadas em transportes coletivos, podem acabar, mesmo que em segundo plano, nas entrelinhas de suas realizações, salientando as ineficiências da mobilidade urbana. Em outros termos, podem ser duplamente performativas: além de desvirtuarem a ordem, instaurando um dissenso, podem desvelar as especificidades do controle sobre os corpos e as ineficácias dos planos de mobilidade. Dissenso, segundo Jacques Rancière (2006), é um desvio ou torção específica (p. 370) na partilha do sensível. 33 Um conflito sobre a constituição do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos que nele falam para serem ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados (p. 374). Partindo do pressuposto de que a política, enquanto recorte do sensível, daquilo que é compartilhado entre os homens, existe em relação, isto é, dialogicamente, Rancière propõe uma distinção entre política e polícia, ou melhor, uma revisão da ideia 33 Trata-se do sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas (RANCIÈRE, 2009, p. 15). A partilha do sensível condiz, assim, ao plano de reconhecimento de tudo que está na esfera do visível e do dizível, incluindo as distinções, isto é, como se operam repartições dentre os espaços. Nesse sentido, os transportes coletivos representam um comum, um serviço público que retrata o direito da mobilidade urbana, mas que se torna exclusivo: afinal, nem todos podem ter acesso.

50 53 consensualmente aceita do conceito de política, tendo em mente o uso socialmente arraigado dos dois termos enquanto práticas semelhantes. De acordo com o filósofo, para apreender o conjunto de comportamentos, hábitos e estruturas socialmente aceitas, atribui-se ao termo política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição (RANCIÈRE, 2006, p. 372). Contrastando esta concepção difundida socialmente com a noção de que o exercício político requer uma alternância entre as capacidades de governar e de ser governado, o filósofo propõe a esse conjunto de processos orquestradores da coletividademobilidade e legitimadores do poder a nomenclatura de polícia. O autor, ainda, faz questão de frisar que devemos nos esquivar da carga semântica negativa do termo, imediatamente associado à repressão e vigilância, pois, para ele, a ideia consensual de policiamento acaba particularizando um sentido de ordenação, quando, na verdade, trata-se de algo mais geral, ancorado na ordem do visível e do dizível: o recorte do mundo sensível que define, no mais das vezes implicitamente, as formas do espaço em que o comando se exerce (idem, ibidem). Esquematicamente, temos vetores contrapondo-se em complementaridade, isto é, coexistindo paradoxalmente num correlato: a política desloca a polícia ou perturba a organização sensível da polícia, para usar o termo original de Rancière sendo o modus operandi para tal deslocamento o dissenso, aquilo que subverte o consenso. É evidente que Rancière está destrinchando essa análise do controle do sensível por uma lupa mais molar, mas se molecularizarmos sua análise para o campo dos transportes coletivos, podemos averiguar a aplicabilidade dos mecanismos da polícia e as eventuais irrupções da ordem da política, isto é, do dissenso. Primeiramente, as estratégias de policiamento do poder no âmbito dos transportes é de ordem semântica: a escolha de disseminar o termo transporte público para um serviço tarifado, camufla, como já comentei, uma seleção de público e transfere para o pagante o compromisso de ordem e cuidado com o patrimônio público, com o bem coletivo, tornando-o um policial por extensão. As regras de utilização, ademais, constituem a parcela mais visível do controle nesses espaços, porque ocupam o plano do discurso verbal, diretivo, explícito: as placas orientando as direções nas estações, os verbos no imperativo indicando como e por onde se deve transitar, sem mencionar os avisos de segurança e as regras de utilização dispostas ao longo de todos os vagões de metrô e corredores de ônibus, apresentando, inclusive, leis municipais, estaduais e federais que legislam sobre a utilização dos transportes, sobre o direito de ir e vir. Em segundo, é de ordem espacial, pois o controle também opera por meio de uma dimensão cenográfica: as fitas demarcando as filas para compra de bilhetes, as catracas fronteirizando o

51 54 acesso, as esteiras desacelerando os corpos que, em linhas retas, seguem como contingentes na lotação, sem mencionar a própria disposição dos assentos, os quais parecem limitar as possibilidades de interação, garantindo a preservação do porte dos usuários, que, dificilmente, agem como concidadãos, seja pela efemeridade típica dos transportes, ou pelas retangularizadas condições de tráfego. Espacialmente, sendo assim, podemos verificar a polícia retangularizando a circulação. Circulação, aliás, é a premissa verbal basilar da polícia (e aqui cito o termo na sua conotação mais usual) para dispersar movimentos sociais na cidade. Conforme salienta Lepecki (2011), é da ordem da polícia fazer circular, dispersar. Sendo assim, entre as manifestações semânticas e espaciais da polícia atuando sobre a partilha do sensível em transportes coletivos, aparecem as manifestações de irrupção política, dissensual, através das ações de pedintes, religiosos, ambulantes e artistas que, expondo sua condição de vulnerabilidade social, de à parte no comum, 34 alterando espaço e passageiros, acabam vulnerabilizando o consenso, a polícia dos transportes, porque suas ocorrências põem em xeque os preceitos dos planos de mobilidade. Não por acaso, há leis elaboradas especificamente para coibir essas ações e que são fixadas em placas ou emitidas pelos dispositivos audiovisuais ao longo da espacialidade dos transportes. Assim, o poder aqui a faceta estatal do biopoder se legitima através dessas regras difundidas numa relação dialética com as performances desviantes, as quais, por sua vez, evidenciam o controle quando ocorrem. Controle e dissenso, assim, retroalimentam-se, coabitam-se como num fluxo de sístole e diástole. Um é correlato do outro e este paradoxo coreográfico, ao menos como podemos observar em transportes coletivos, é operativo, uma vez que ambos estão assimilados no cotidiano, em contradição performativa. 35 Ironicamente, o contraponto performativo instaurado pelos outsiders 36 nos transportes confere aos passageiros, em seu estado de passividade em trânsito, a agência intrínseca a um cidadão: ser quem toma parte no fato de governar e ser governado (ARISTÓTELES, apud RANCIÈRE, 2009, p. 16, grifo original). Se por um lado os passageiros estão governados pelas instâncias de controle nos meios de transporte coletivos, por outro lado, quando convocados a assumir o papel de espectadores, passam a governar de certo modo a atividade dos performers, porque, mesmo com o conhecimento partilhado de que são atividades infratoras, autorizam-nas ao escutá-las e corroboram-nas quando participam, compram, aplaudem, doam ou respondem amém. 34 Para uma definição destrinchada da ideia de comum, pode-se consultar Negri e Hardt (2012). 35 Expressão apropriada a partir da sua aparição em Rancière (2006, p. 374). 36 Apropriação e deslocamento do termo no sentido em que é utilizado por Turner (2008, p. 217), o qual, dissertando sobre liminaridade, fala sobre o estado de outsiderhood: a condição de se estar permanentemente e por imposição posto à margem dos arranjos estruturais de um determinado sistema social, ou situacional e temporariamente segregado, ou segregando-se voluntariamente da conduta dos ocupantes de posições e detentores de papéis naquele sistema. Pedintes, religiosos, ambulantes e artistas, atuando em transportes, assumem essa condição marginal, negociando constantemente com o poder estrutural do espaço e temporário dos passageiros que, se convencidos, podem escutá-los e ajudá-los.

52 55 Esse duplo movimento de convivência com as regras e conivência com os desvios é um sinal de que o consenso e o dissenso igualmente integram a partilha do sensível, manifestando-se em estruturas e ações que, circulatórias nos espaços sociais, abrem margens para aceitação. Aceitabilidade, aliás, é uma das premissas da definição de discurso social apresentada pela linguista Maria Augusta Mattos (1998, p. 13) quando recorre a Angenot (1984): o conjunto não necessariamente sistêmico nem funcional do dizível, dos discursos instituídos e dos temas munidos de aceitabilidade e de capacidade de migração em um dado momento histórico de uma sociedade. Em termos gerais, se o discurso social é sensivelmente partilhado em transportes coletivos a partir dos padrões de utilização e também dos desvios de utilização através das performances de pedintes, religiosos, camelôs e artistas, é porque há práticas cotidianas que autorizam a migração do pedido de esmolas, da pregação religiosa, da venda de produtos e da performance artística para as passarelas de ônibus, balsas e compartimentos de trens e metrô. A performance ocorre, assim, como prática dissensual que negocia aceitabilidade na partilha do sensível. Estação Adílio. Fotos de André Rodrigues

53 56 Estação Adílio A partir dos conceitos desenvolvidos até aqui, sobretudo da observação do dissenso performativo que ocorre em transportes coletivos, descrevo a seguir a performance Estação Adílio, que realizei em estações e vagões de trem da Cidade do Rio de Janeiro, com estruturas discursivas e corporais que se assemelham, inevitavelmente, às práticas dos corpos-ambulantes que vendem, pedem, pregam e se apresentam artisticamente. Estação Adílio é uma ação-tributo em memória do corpo de Adílio Cabral dos Santos, 37 vendedor ambulante carioca que morreu atropelado nos trilhos da Estação Madureira, onde trabalhava diariamente. O corpo de Adílio foi primeiramente atingindo por um trem do modelo chinês, o diretão, de mais alta velocidade. Em seguida, já escangalhado nos trilhos, por onde andava 37 A trajetória de Adílio pode ser conhecida através da crônica Por cima, não: acima, que rendeu ao jornalista Vitor Hugo Brandalise, em 2016, uma menção honrosa no Prêmio Jornalístico Vladmir Herzorg de Anistia e Direitos Humanos. O texto deve ser lido em:

54 57 certamente para evitar a apreensão de sua mercadoria, foi atropelado pela segunda vez por um trem sem-serviço, que corria, sem passageiros, direto para a Central do Brasil. Da Central do Brasil saiu uma ordem que desencadeou a circulação mundial da notícia sobre a morte de Adílio: um terceiro trem, dessa vez com passageiros e parado nos trilhos após freagem do condutor, foi autorizado a atropelar pela terceira vez o corpo negro que, trajando roupa branca e carregando sacos de balas, morreu na contramão atrapalhando o tráfego. 38 A autorização foi materializada pelo gesto das mãos de um dos funcionários da empresa SuperVia, 39 gerida pela Odebrecht, detentora da concessão pública do trem carioca e praticamente um sinônimo do termo corrupção no Brasil. O gesto, que consistiu num abanar de mãos convocando o condutor do trem a passar acima 40 de Adílio, com a justificativa de não interromper o direito de ir e vir dos usuários, eclodiu uma cadeia de excesso de sentido, cujas camadas iniciaram ainda na Estação, com pessoas condenando o gesto e filmando o acontecimento, o que fez o caso ganhar repercussão na imprensa internacional. No intuito de realizar em possível colaboração com transeuntes do trem carioca um gesto de tributo à memória do corpo de Adílio, desenvolvi o seguinte programa performativo: nas estações de trem da SuperVia e, principalmente, dentro dos vagões, carregar junto ao corpo um tecido branco com aproximadamente 1,80 m de altura cortado diagonalmente em duas partes iguais, um poema impresso, um carretel de linha grossa vermelha e uma agulha. Com os materiais, performar com, para e sobre Adílio Cabral dos Santos, o vendedor ambulante que foi atropelado por três trens no dia 28 de julho de 2015 na Estação Madureira. A performance é constituída pelos seguintes procedimentos: 1) deitar o tecido cortado no chão da Central do Brasil e, com o auxílio de algum passante, dar o primeiro ponto de linha vermelha para, então, carregá-lo junto ao meu corpo dentro dos vagões; 2) pedir licença aos passageiros e aos vendedores ambulantes, apresentar-me e falar sobre Adílio, relembrando o caso e introduzindo a ação; 3) ler o poema Adílio, de autoria de Jonatas Onofre; 4) oferecer agulha e linha grossa vermelha para que os passageiros interessados em colaborar com o tributo-ação costurem, ponto a ponto, os dois pedaços de tecido, unindo-os; 5) com o tecido costurado, descer na Estação Madureira e lá, às vistas de todos, pichá-lo com a inscrição ESTAÇÃO ADÍLIO; 6) levantar, dentro da estação, o tecido como bandeira, respondendo às possíveis conversas; 7) vestir um colete de trabalho semelhante ao que utilizam os trabalhadores da 38 Verso da canção Construção, de Chico Buarque, do álbum homônimo lançado em SuperVia é o nome da empresa que opera o serviço de trens urbanos na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana. Desde 2011 o grupo é gerenciado pela Odebrecht TransPort. 40 O título da crônica de Vitor Hugo Brandalise joga com a diferença entre por cima e acima para discutir como uma questão semântica foi utilizada pela SuperVia para justificar o injustificável: segundo a empresa, o corpo de Adílio ficou localizado no espaço entre o trilho e o trem. Logo, os dois trens seguintes ao primeiro atropelamento não passaram por cima, mas acima do corpo.

55 SuperVia e ocupar a passarela de acesso à estação, deitando o tecido-corpo no chão; 8) impedir que as pessoas pisem no tecido e, claro, sempre conversar sobre Adílio. 58 Rio de Janeiro, dezembro de 2016, mais de 500 dias após a barbárie cometida contra o corpo de Adílio, iniciei, às 13h30, uma ação-tributo na estação Central do Brasil. Passei das catracas e fiquei no meio de todos os passantes, observando atentamente cada vendedor ambulante que corria e gritava. Balbuciei o nome Adílio a cada inspiração profunda ou saculejo de pés. Estendi os dois pedaços de pano no chão, numa área de acesso aos trens. Era preciso pedir ajuda para dar o primeiro ponto de linha vermelha e, então, começar a ação dentro dos vagões. Várias pessoas passaram, algumas até por cima do pano, mas ninguém conseguia parar para me ouvir, ou, quando muito, respondiam sobre pressa e sobre não saber costurar.

56 59 Uma funcionária da SuperVia me olhou ao chão junto com tecido, agulha e carretel de linha vermelha grossa. Tentei chamá-la, mas passou rápido demais. Levantei e perguntei a um segurança do trem se ele poderia me ajudar. Me ouviu e negou sem palavras, não sei se não queria, se não podia ou se não sabia o que querer. Vários passantes, várias tentativas, muitos vultos. Até que uma mulher de 54 anos e que há 54 anos vive no Rio de Janeiro e utiliza a Central do Brasil, como fez questão de dizer, me atendeu. Mesmo ressaltando que não entendia nada de costura, assim como eu, aceitou parar para tentarmos. Um segurança interveio e disse que eu não poderia estar ali fazendo aquilo. Conversando com ela e pedindo sua ajuda? perguntei, ao passo que minha colaboradora foi mais enfática: moço, ele não tá atrapalhando nada. Fique tranquilo, só vou dar esse ponto de costura e seguiremos. A essa altura, já havia contado o que simbolizava aquele pano e ela, que nunca tinha ouvido falar sobre o caso Adílio, se disse horrorizada: agora eu faço questão de contribuir. Posteriormente, embarquei no vagão. Aguardei de pé, no fundo do primeiro acesso, as portas se fecharem e o trem seguir. No intervalo entre a espera e a saída, meu corpo com tecido branco e carretel vermelho começou a gerar conversas. O trem deu partida e iniciei com o ritual que repeti em todos os vagões e estações durante quase cinco horas de trabalho: falei meu nome, disse o que estava fazendo e, claro, falei sobre Adílio, pedindo licença para participar da viagem, agradecendo de antemão aos que quisessem e pudessem escutar e ajudar, como fazem os vendedores ambulantes ao performarem em transportes coletivos. Após a apresentação pessoal, lia sempre o poema Adílio, escrito a meu pedido pelo poeta pernambucano Jonatas Onofre: o corpo, encardindo à vista das janelas, assim, de bruços, não tem outra serventia, que esta: dar passagem à corrente elétrica, às moscas, ao segundo trem eà vida que não podes atravancar, tu o apartado dos vivos, dos justos, dos que tem pressa e preço, do pacote sujo,

57 60 de balas apartado não podes mais, não tens nunca tiveste - permissão para atravancar nem teu próprio sangue nos trilhos, não tens permissão para estanca-lo, muito menos reconduzi-lo como um rio de nojo voltando às veias, aos músculos, às tiras de intestino, imagem última do perecimento, estás: menos que um cão dilacerado na rodagem, um pombo pouco depois do esmagamento sob rodas, um inseto espremido entre dedos, sem unhas, não tens permissão para redistribuir alguma aspereza, como a que impregnou a sola de teus últimos passos sobre & sob a sandália, sem dedos, sem pernas para escapar das toneladas de ferro e gente, sem tempo, as coisas dessa paisagem não podem esperar que o vento complete seu trabalho e coagule

58 61 a última gota equilibrada na tua pálpebra esquerda, do homem que foste restarão as roupas, mal cortadas, tatuagens no antebraço, nas costas, nome de mãe, outros horrores só teus, nunca mais gravados, com erro, na memória, a humanidade, a minha, a dessa gente, grita em teus ouvidos para sempre esvaziados: e daí? sabendo que não podes responder, dentro do vazio é que se faz carne a palavra má, do teu vazio, morto, do vazio morto dessa cidade, onde nos culpamos, como irmãos, e cuspimos em honra dos incomuns, dos desviados, dos que gemem e rangem teus dentes, sabendo que não podes responder, fazemos o gesto covarde: apagamos, apagam-se umas luzes sabendo que não podes alguma defesa, sabendo, sim. nós preenchemos o lugar onde não estás ausente com nossos passos, nossa pressa

59 62 nosso preço, lotamos esse segundo trem e cruzamos tua espinha, teu suspiro, tua vez até a próxima estação Quando terminei a primeira leitura do poema e pedi a colaboração mostrando a agulha, uma senhora retrocedeu. Agarrou uma criança e disse que a cidade está muito perigosa e que eu certamente trabalhava com magia negra. Tentei acalmá-la e parti para os assentos seguintes. Duas passageiras costuraram comigo, uma delas lembrava do caso. Descreveu como se sentiu ao saber da notícia, falou que aquele gesto (a leitura do poema que fiz, a costura que ela fazia) era necessário, citando alguma frase de Nietzsche para afirmar a importância da arte no meio da loucura toda em que vivemos, que a arte é quem lida melhor com a barbárie do mundo, algo mais ou menos assim. Agradeci e fui para o lado, abordando outra passageira. A agulha, no entanto, emperrava no tecido e uma delas questionou: você não entende nada de costura, não é? Essa agulha é muito grande, essa linha muito grossa e esse tecido muito duro. Sorri e disse que minhas escolhas foram aprovadas por um vendedor de aviamentos da Saara. A mulher que me acusou feiticeiro, ao ver a dificuldade para costura, disse: ih, homem, tá bom de tu procurar outro trabalho, porque esse aí não vai dar certo, não!. É este trabalho que me faz querer viver e ele já está dando certo. Criei, depois do primeiro vagão, duas estratégias: 1. sempre perguntava o nome de cada colaboradora(o) e se ela ou ele sabia ou lembrava do ocorrido com Adílio. 2. durante a apresentação oral, observava quais passageiros estavam mais atentos: aquele que retirou o fone de ouvido, aquela que porventura se emocionou, ou outro que fazia legal para mim Era para esses que eu primeiramente me dirigia e solicitava a costura, por considerar que aceitariam e desencadeariam um fluxo colaborativo. Por vezes acertei, por outras não, como no caso da senhora que me acusou de bruxo e que só parou de reprovar a ação e as colaborações quando uma passageira de frente para ela, costurando o tecido, disse é apenas um ato simbólico. É isso. Simples assim. Um senhor estendeu a mão para mim. Pensei que era um cumprimento, mas ele depositou algumas moedas. Devolvi e disse que a única colaboração que peço para o trabalho, além da escuta, é a costura. Ele colaborou. Ao longo do trabalho, nos vagões e durante as pausas nas estações, vários passageiros estranharam a ação. Muitos recusaram costurar ou ignoraram meu pedido. Vários outros conversaram comigo ou entre si, muitos falavam sobre a cidade e a necessidade do que chamavam de gestos humanos. Muitos conversavam, mas não costuravam: alegavam não saber ou não

60 63 gostar desse hábito, como frisou um homem, fazendo com que uma mulher, com um sorriso de indignação, me chamasse para colaborar. Um rapaz, próximo ao homem sem hábitos para costura, pediu que eu voltasse pois ele costuraria. Num vagão de outro trem, outros homens repetiram o gesto do primeiro. Um deles me disse: acho muito válido isso aí que você tá fazendo, mas eu não vou costurar, né? Você sabe, homem não costura Ué, e eu não sou homem?! Uma passageira, que havia retirado os óculos escuros para me ouvir mais atentamente, me chamou com a mão esquerda e costurou o tecido, também avaliando minha prática: eita, mas você não entende nada de costura, né? Como compra uma agulha grossa dessa?. Deu vários pontos no tecido, alterando o planejamento do programa, que era unir as diagonais. Perto dela, uma mulher também sabia do caso e pontuou o tecido, me abençoando na sequência. Outra passageira, esta profissionalmente costureira, também aconselhou que eu trabalhasse com uma linha mais fina, recomendando tamanho e marca de agulha. Um homem abriu os olhos e disse que dava muito moral para o meu gesto, voltando a dormir.

61 64 Fora dos trens, falando sobre Adílio em alguma estação, um passante, com farda da COMLURB, aconselhou qual trem eu deveria pegar para seguir em direção à Madureira: aquele ali! É o mais cheio! Vai ter muita gente! Vai ser importante pra você. Ele deu dois pontos de costura. Agradeci e atendi. No trem superlotado, encontrei brecha entre duas meninas que não sabiam do caso. Uma foi pesquisar na hora e começou a ler em voz alta o texto Por cima, não: acima, do repórter Vitor Hugo Brandalise. Mais ao lado, se manifestou um ambulante, com olhos marejados, uma mão com saco de balas no peito e outra que tocou no meu ombro: ei, eu era amigo do Adílio!. Dentre pessoas recusando e outras me chamando para costurar, uma evangélica me acusou de idolatria e tentou me doutrinar: você deveria louvar ao senhor. Falei que homenagem não era sinônimo de idolatria e, para exemplificar, contrastei com o par rezar/orar, mas a situação piorou e ela conseguiu alguns adeptos. Prossegui com o trabalho e ela continuou me reprovando, balançando a cabeça e exclamando sobre mim como se eu já não estivesse mais ali. No trem seguinte, ambulantes pararam o serviço para escutar a ação, voltando a anunciar seus produtos apenas no instante em que terminei de enunciar Adílio. Uma mulher começou a contar para os demais passageiros que chorou quando viu a reação da mãe do Adílio numa reportagem. Um homem não sabia do caso, mas costurou, dizendo que vivemos um tempo em que as pessoas só querem passar por cima das outras. Na área de embarque de uma das estações uma mulher me associou a um grupo de teatro que atua nos trens, comentando que eu estava diferente e perguntando pela magrinha que anda sempre comigo. Falei que era engano, mas ela insistiu, dizendo que já conhecia nossas piadas, mandando parabéns ao grupo por estarmos fazendo uma coisa diferente, costura. Perguntei a um homem, com farda da prefeitura, se ele achava interessante grafitar o pano dentro da Estação

62 65 Madureira. Disse que não havia nada de errado, mas que seria polêmico. Você quer ser polêmico? Perguntou. Prossegui. Estação Madureira. Deitei o tecido no chão e deixei que ele se manifestasse por alguns momentos entre trens e pessoas que passam. A costura conferiu-lhe um formato triangular, escondendo as dimensões das diagonais. Vesti um colete semelhante ao utilizado pelos trabalhadores da SuperVia e no trabalho coletivo pichei Estação Adílio. Levantei do chão, bem ao lado da área onde Adílio morreu, e ergui o trabalho como bandeira. Moradores da Serrinha vieram perguntar e conversamos. Um homem e seu filho de oito anos vieram perguntar e conversamos. Um guarda da SuperVia interferiu, solicitando que eu não fizesse protesto naquela área, pedindo que eu tirasse o tecido do chão. Agora é minha roupa, respondi, colando-o ao corpo e continuando a falar sobre o que a cidade fez com Adílio. O segurança disse que eu estava avisado e que se tratava de uma questão colaborativa: me ajude e eu lhe ajudarei, acionando o rádio de comunicação.

63 66 S Saí da estação e fui para a passarela de acesso, deitando o tecido no meio da passagem, em horário de pico, impedindo que ele fosse pisoteado com as mãos espalmadas para frente. Depois, com as mãos para trás, deixando que o colete imprimisse sua função enquanto meu olhar velava o corpo. Pronunciei ESTAÇÃO ADÍLIO, falando por cima, a cada vez que os alto-falantes pronunciavam Estação Madureira. Crianças pisavam no tecido e adultos se desculpavam. Homens e mulheres olhavam uma, duas, três vezes para trás e perguntavam entre si quem é Adílio?. Muita gente pulando o tecido, atendendo ao meu gesto. Um homem, em particular, se assustou e, parando, disse que era absurdo aquele tecido no meio da passagem às cinco e pouca da tarde. Expliquei minha posição e ele, acalmado, frisou que continuaria difícil para as pessoas entenderem aquilo. Minha ação ou a morte de Adílio? Ele seguiu e uma senhora, cristã, não me acusou de idolatria, mas abençoou a ação. Disse que foi injusto e inaceitável o que aconteceu com Adílio, mas que, embora minha intenção de fazer justiça com as próprias mãos em terra fosse bonita, só nos céus ocorreria a justiça à qual ninguém escaparia. Depois de quase uma hora nesse fluxo, conversando com alguns passantes e instaurando perguntas em outros, um segurança saiu da estação, pedindo que eu parasse de atrapalhar o direito de ir e vir das pessoas. Ironicamente, o mesmo argumento utilizado para justificar o injustificável em 28 de julho de Carregando o tecido nos ombros, voltei para a estação, embarcando num

64 67 trem rumo à Central. Lá, de onde saiu a ordem do terceiro atropelamento, o mais des-vela-dor da cidade e também do corpo, com toneladas de ferro e de gente passando por cima de Adílio. Saí da Estação e fui até as ruas procurar a tubulação de vento mais próxima, com o intuito de amarrar às grades de ferro, com sujeira e graxa, o trabalho coletivo para Adílio. Ao lado da tubulação, contudo, havia dois guardas. Perguntei se havia algum problema fazer aquilo e expliquei que seria apenas para registrar uma imagem. Mas o que significa esse trabalho? Por que tem que amarrar o pano ali?. Eu sou estudante de artes, moço. É um trabalho da faculdade em homenagem ao Hélio Oiticica, sabe? Ele tinha uns tecidos que se movimentam, daí tenho que registrar uma foto desse material em movimento. Ah, bacana! Mas, olha, a gente não tem comando para autorizar. Volta lá na Estação e procura o chefe da segurança, ele é a cara do Márcio Garcia. Desci e localizei o sósia, mas outro funcionário interpelou e, ao ouvir a justificativa do meu pedido, disse não. Mas, eu não posso falar com ele? Os outros seguranças me orientaram assim. Tudo bem, você quer ouvir não diretamente dele? Porque eu já te disse o que ele vai te dizer. Tudo bem, respondi, ao passo que o chefe foi chamado. Repeti a explicação e fui prontamente autorizado. Sem dúvidas! Não vou nem passar o rádio. Só voltar lá e fazer sua fotografia. Bom trabalho lá na faculdade, viu?. Com o consentimento do chefe de segurança amarrarei o tecido nas grades de tubulação de ar da Central do Brasil. Por instantes, além de repetir o gesto de adicionar graxa ao corpo, o ferro trouxe o vento dos trilhos, vibrando o nome de Adílio para a cidade que, rapidamente, voltou a esquecê-lo. Para além deste relato, gostaria de pontuar alguns gestos teóricos sobre Estação Adílio e sobre a morte de Adílio: 1. O corpo do ambulante que performa em transportes coletivos age como um menestrel que sai do conjunto coletivo para emitir enunciados e, assim, singulariza-se: o falar em nome próprio segue abarcando um nós. O programa de Estação Adílio é elaborado, assim, para preservar certa performatividade menestrel de ambulantes como Adílio, além de concentrar na escolha de materiais outro mecanismo performativo desses corpos, dos nossos corpos: a precariedade. 2. A evocação do nome de Adílio pode reperimetrar o território que ele astutamente, por vias infratoras, perimetrava, pois nomear deuses e homens é torná-los presentes no tempo e no espaço, conferindo-lhes ser verdade (GADELHA, 2013, p. 25). Mas a verdade em trânsito é que o corpo mutilado sobre os trilhos evidencia sua marginalidade e, simultaneamente mas, simultaneamente, reperimetra também os sentidos de uma cidade maravilhosa que se revela fascista a partir de um gesto com ares de absurdo que assim se caracteriza não pela falta de sentido, mas pelo excesso. 3. Esse excesso de sentido é solapado pelo gesto institucional do funcionário da SuperVia, que, representando o poder estatal e uma empresa que controla a mobilidade urbana, abre uma

65 68 cratera no compartilhamento de sentidos quando é impelido a determinar que o condutor do terceiro trem reatropele o trabalhador informal. 4. A tentativa de justificativa sobre tal gesto, o de não atrapalhar o direito de ir e vir, incide sobre uma das características capitais do funcionamento do transporte coletivo, que, de acordo com Kapp (2012, p. 34), coincide com o próprio surgimento dos trens ferroviários ainda no século XIX: o tempo e o espaço da viagem se tornam independentes dos acontecimentos dentro e fora dos trens; qualquer evento que altere o destino ou a duração do percurso nada mais é do que um transtorno. Resumido a um transtorno, o corpo morto de Adílio sobre os trilhos e sob os trens é ainda mais multidão abaixo da massa em toneladas de ferro e de gente que circulava no transporte coletivo do Rio de Janeiro. 5. Adílio, é claro, não para a cidade, mas põe às vistas em demasia o que é esta cidade, quem é esta cidade, como está esta cidade e para onde ela vai. Fatalidade que impõe dobras em ressonância ondulatória: o acontecimento sobre o corpo de Adílio antecede um feixe de outros acontecimentos na cidade onde ainda explodem bueiros e desabam ciclovias. 6. O acontecimento da cidade contra o corpo de Adílio desvela a inversão de valor do corpo típica da contemporaneidade, ou mesmo, se assim pudermos considerar, a irrupção de gestos trágicos orquestrada pelo biopoder que, ao contrário de fazer morrer e deixar viver, empenha-se em fazer viver e deixar morrer, pois o poder investe a vida, não mais a morte. Daí porque se desinvestiu tanto a própria morte, que antes era ritual, espetacular e hoje é anônima, insignificante (PELBART, 2007, p. 59). O desinvestimento da morte de Adílio, no entanto, vira narrativa mundial através dos celulares que registraram o cumprimento do gesto de autorização da SuperVia, a qual deixou viver acima do corpo estraçalhado a sobrevida amontoada dentro do trem. 7. Os gestos empreendidos em colaboração com os passageiros em Estação Adílio talvez encontrem ecos em Antonin Artaud (2006, p. 91), quando afirma que [ ] fazer arte é privar um gesto de sua repercussão no organismo, e essa repercussão, se o gesto é feito nas condições e com a força necessárias, convida o organismo e, através dele, toda a individualidade a tomar atitudes conformes ao gesto feito. Se o gesto da mão institucional do funcionário da SuperVia conferiu uma agência passiva aos passageiros dos vagões que, sem ter ideia, compuseram toneladas junto com o ferro do trem na sucessão de atropelamentos do corpo de Adílio, o gesto final da performance foi uma tentativa de convocar o organismo a reagir: em colaboração comigo, no caso do organismo múltiplo composto pelos passantes que, em pressa e esbarrões, desaceleraram seus passos ou pularam o tecido-corpo, evitando pisoteá-lo; ou reativamente contra mim, no caso do organismo SuperVia, através do funcionário que me orienta a não atrapalhar o direito de ir e vir. 8. Através da vivência descrita em Estação Adílio, defendo que a realização de performances em transportes coletivos promove um exercício de concidadania, através do qual os

66 69 passageiros não só conversam entre si, negociando a utilização comum do espaço, mas também conversam sobre a cidade, colocando-a discursivamente em circulação. Nessa direção, a antropóloga Janice Caiafa (2013) considera que o fato dos transportes coletivos promoverem a inevitável convivência com desconhecidos pode viabilizar um exercício ético. Dialogando com este pensamento, defendo que há uma loquaz coreopolítica que insurge a partir das irrupções provocadas pelas ações performativas, salientando negociações éticas não somente para a experimentação estética, mas também para a cidade que passa em movimento.

67 70 Estação de transferência II: Vulnerabilidade Vibrátil Resistência e aderência, polícia e política, molar e molecular, ordinário e dissensual, regra e desvio, encontro e confronto, adequabilidade e aceitabilidade, atualidade e virtualidade, comum e exceção, poder e solidariedade, grafocentrismo e dramacentrismo, dialética e dialogismo Pares que não estão em relação binária, mas em retroalimentação, coexistindo numa contração contínua entre contraposições e complementaridades. É justamente nesse movimento múltiplo que se instaura o termo-propriedade composto (e não oposto como os pares supracitados) vulnerabilidade vibrátil, expressa pelos corpos em ação dos pedintes, religiosos, ambulantes, artistas de rua e artistas da performance, que, vibrando um dissenso performativo, reconfiguram os transportes coletivos. Reconfigurações de tempo e de espaço também são provocadas nas ruas através das ações de ciclistas, skatistas, trabalhadores de carga e, é claro, artistas da performance. Na vibratilidade de novos arranjos perceptivos no espaço, afetam, irremediavelmente, os demais corpos que transitam no espaço urbano. O uso que faço da palavra vibratilidade, aqui, corresponde à aparição da mesma na definição proposta por Suely Rolnik (2006, p. 3). Para ela, vibratilidade nomeia a capacidade de nossos órgãos dos sentidos atuarem em seu conjunto, capacidade que nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. (...) Com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se, assim, parte de nós mesmos. 41 Considero que a ideia de vibratilidade conceituada por Rolnik pode aproximar as atividades desempenhadas por artistas da performance, vendedores ambulantes, pedintes, pregadores religiosos e artistas de rua. Mesmo representando modelos efêmeros de interação, as performances que acontecem em ruas e transportes coletivos atuam na partilha do sensível dos espaços e na textura sensível dos corpos passantes, fazendo com que eles vibrem, isto é, respondam, reajam, atendam aos estímulos sonoros, visuais, discursivos, sociais e se sensibilizem ou não diante das condições de vulnerabilidade social expostas, participem ou não das proposições performativas em curso. Nessa vibratilidade contínua, um performer opera por meio da vulnerabilidade. A vulnerabilidade, como condição para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens preestabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade (ROLNIK, 2006, p. 2), caracteriza-se no âmbito da realização de performances em espaços da mobilidade urbana como 41 A psicanalista vai falar mais detidamente em aspectos neuropsicológicos, descrevendo o corpo vibrátil como a capacidade subcortical do nosso corpo (cujo conceito aparece destrinchado no parágrafo acima) que é antecedida pela capacidade cortical, a qual corresponde à percepção que nos permite apreender o mundo em suas formas e atribuir-lhe sentidos.

68 uma ação política, já que a disposição para colocar-se diante da polis pode remeter à conotação de coragem implicada ao agir em público: 71 A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. Esta coragem não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição de arcar com as consequências; o próprio ato do homem que abandona seu esconderijo para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota coragem e até mesmo ousadia. Essa coragem original, sem a qual a ação, o discurso e, segundo os gregos, a liberdade seriam impossíveis, não é menor pode até ser maior quando o herói é um covarde (ARENDT, 2007, p. 199). Assim, nas relações que ganham corporeidade em ruas e em transportes coletivos através de performances, a condição de vulnerabilidade assumida pelos vendedores ambulantes sem emprego, pelos artistas sem palco, pelos pedintes sem renda, a expressão idiossincrática exercida pelos religiosos e a indissociável relação entre ética e estética movimentada pelos artistas da performance na realização de programas performativos, podem suscitar a conotação de coragem sugerida por Hannah Arendt. O fato de um pedinte assumir sua condição menos favorecida e dividir com uma plateia de estranhos acontecimentos pessoais que justifiquem sua condição revela uma disposição de agir e falar. O vendedor ambulante, que tem a ousadia de burlar as leis de utilização do transporte público, ignora, corajosamente, a disposição de arcar com as consequências. O religioso que abandona a redoma particular da fé, tornando-a pública, mostra ousadia ao exibir sua individualidade. Também o artista sem palco, utilizando as passarelas dos transportes para divulgar sua arte, tem a coragem de inserir-se no mundo e começar uma história própria. Exibindo individualidade, agindo e falando sua história própria que circula por onde transita, a ação de um performer em espaços públicos e, sobretudo, sua condição social de pertencente à margem, acabam vibrando a vulnerabilidade dos planos de mobilidade urbana, salientando lacunas, falhas e inoperâncias. Assemelham-se, assim, como provocadores de dissenso, aos artistas da performance, que também engajam seus corpos em experiência, transmutando precariedade em potência de encontro a partir da formulação e prática de programas performativos. A reflexão em torno da prática da arte da performance no espaço urbano, tendo em vista toda a fricção e solidariedade que provoca para abertura de campos, geração de comunnitas, estimulação da imaginação política Pode ser endereçada a partir de algumas perguntas para prosseguir as questões até aqui desenvolvidas: como os programas performativos podem conviver com e converter os planos de mobilidade urbana? De quais modos, ou, dentro de quais programas, a performance, no sentido arte da palavra-ação, portanto nos sentidos político e estético, pode, nas ruas e nos transportes coletivos, tão demarcados pelo controle das instâncias do poder estatal, insurgir processos de subjetivação em lugares de fluxo contínuo e permanência transitória? Por

69 72 quais programas a performance pode desprogramar a mobilidade e fazer vibrar política no vai e vem das cidades-correria? Com essas perguntas em ação, proponho no capítulo seguinte Linha III uma relação entre o conceito de programas performativos e a leitura dos planos de mobilidade urbana como anti-programas performativos, partindo dos conceitos de plano presentes em textos de Espinosa, Deleuze e Guatarri. Para isso, discorro sobre performances de três artistas atuantes em espaços públicos. As peças descritas e analisadas são: A guardiã e Figuraça, de Flávia Naves (Rio de Janeiro, Brasil, 2014), Não compro lata velha e Brasil: o momento em que o copo está cheio e já não dá mais pra engolir: nosso caso é uma porta entreaberta, ambas de Eleonora Fabião (Rio de Janeiro, Brasil, 2014/2015) e La inclinación e Dios Union Libertad, de Cracky Rodriguez (San Salvador, El Salvador, 2015/2016).

70 73 Linha III Das baldeações: programas e anti-programas performativos Na transferência entre as Linhas II e III, disparei algumas perguntas para prosseguir a reflexão em torno das possíveis inter-relações entre arte da performance e mobilidade urbana. Em linhas gerais, tenho discutido que num grande centro urbano como a cidade do Rio de Janeiro, onde a mobilidade incessante produz passividade e indiferença, o direito de ir e vir é desincorporado de uma autonomia. Isto ocorre pois, na falta de tempo e de espaço, os transeuntes e passageiros, quase que treinados para serem dependentes da correria das ruas e do confinamento em trânsito dos transportes, são coreografados para não se afetarem pela diversidade em torno, encontrando-se protegidos por desengajamento (SENNETT, 1992, p. 129 apud CAIAFA, 2013, p. 30). Os mecanismos que preservam esse desengajamento, aos quais tenho me referido nesta dissertação como molduras comportamentais, são diversos e encontram-se articulados em ruas e transportes para massificar as subjetividades. À medida que disfarçam a passagem do tempo e as inoperâncias dos serviços de mobilidade, também embaçam a inevitável co-presença dos corpos, desengajando possibilidades de concidadania. Em contraponto a essa lógica sistematizadora de cidade, que estrategicamente resume os cidadãos às nomenclaturas de passante e usuário, a realização de performances em vias públicas pode estimular quebras de padronizações de comportamento e circulações de novos modos de relação, produção e percepção, movimentando conversas com a cidade e sobre a cidade. Mesmo que essas conversas não se concretizem em diálogo verbal entre artista e espectadores, a própria desaceleração dos transeuntes ou a troca de palavras que fazem entre si, apoiando, reprovando ou sinalizando uma tentativa de compreensão sobre o acontecimento artístico, revelam uma postura de posicionamento. Afinal, são próprios da arte da performance chamados que implicam não num ensaio psicológico de posicionamento, mas em tomadas de posição imediatas (pois) a convocação da performance é justamente esta: posicione-se já: aqui e agora (FABIÃO, 2009, p. 243). Convocando passantes e usuários de transportes como concidadãos, performances são provocadoras de dissenso em meio às estratégias de controle, uma vez que acentuam a presença compartilhada no espaço público e desencadeiam encontros. Outrossim, podem ainda potencializar o olhar e a escuta acerca dos paradoxos que compõem a mobilidade urbana e dos cerceamentos que acometem os corpos na organização da cidade. Investindo em práticas de alteridade, artistas da performance fazem circular em ruas e em transportes coletivos conforme afirmei na Linha II negociações éticas não somente para a experimentação estética, mas também para a cidade que

71 74 passa em movimento. Negociações éticas não somente para a experimentação estética, mas para e junto com a cidade que pode se reunir passageiramente em movimento. Negociações desencadeadas por programas que desprogramam as estratégias de cerceamento dos planos de mobilidade urbana, inserindo uma energética política no chão sempre movente da cidade parafraseando Lepecki (2011, p. 55) com a ousadia de iniciar o improvável. Através da prática de seus programas performativos, performers estimulam processos de subjetivação no fluxo contínuo da impermanência que constitui a imagem operante do espaço urbano. Enquanto normatizações de utilização e controle, esses planejamentos não se interessam em possibilitar experimentação, porque norteiam a circulação no sentido mais mecânico da palavra, evitando circuitos afetivos improváveis e preservando estandardizações que dificultam iniciativas políticas. Operam, deste modo, uma ação contrária ao movimento propulsor de abertura para encontros, relações e acordos suscitado pelos programas performativos. Por essa razão, prosseguindo o diálogo com o conceito de Eleonora Fabião, quero propor que os planos de mobilidade urbana funcionam como anti-programas performativos. Antes de desenvolver esta palavra-conceito e revisar a própria noção de plano para falar mais detidamente sobre o planejamento da cidade do Rio de Janeiro, gostaria de descrever trabalhos de três performers que atuam em espaços públicos: Eleonora Fabião, Flávia Naves e Crack Rodriguez. A escolha dos trabalhos reflete, principalmente, meu engajamento como espectador e meu desejo de afinidade estético-política com esses três artistas contemporâneos. Mesmo que eles não estejam diretamente interessados em discutir mobilidade urbana por meio da performance, seus trabalhos, tão particulares entre si, podem endereçar reflexões acerca das baldeações existentes entre programas e anti-programas, argumento que movimenta a presente Linha III. Além disso, a escolha se deu por conta das peças coincidirem com um aspecto presente em minha prática artística: a realização de performances em movimento. Eleonora Fabião: o corpo-ambulante engajando a cidade Eleonora Fabião se apresenta como uma artista que realiza ações. Performer, teórica da performance e professora, exerce estas atividades em interconexão, entendendo o conjunto performar-escrever-ensinar como dimensões de uma mesma prática artística. 42 Iniciando seu trabalho como performer na virada do milênio, atuando em galerias e espaços públicos, foi sobretudo a partir de 2008, com sua série Ações Cariocas, que passou a atuar frequentemente nas ruas de cidades como Rio de Janeiro, Fortaleza, Nova York, Berlim e Bogotá. Seus programas 42 Considerações presentes na página da artista no Prêmio Pipa, ao qual foi indicada em Acessar:

72 75 performativos afastam o perigo da coisa política desaparecer do mundo 43 ao estimularem práticas gregárias em meio ao caos e violência que têm desengajado os habitantes nas cidades. Consciente de que na rua como ela mesma tem afirmado em palestras e publicações regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes, Eleonora tem agido programas cujo interesse nevrálgico é estimular a propulsão de encontros na rua e com as ruas para, assim, pensar juntamente aos seus concidadãos qual a cidade onde desejam viver. Em suas iniciativas políticas no espaço urbano, dois dos fatores centrais em sua obra são a estética da precariedade e a amizade política, que se imbricam na operação de mudanças de valores de modo propositivo, vitalista e experimental para que corpo e performance continuem sempre nascendo, um por meio do outro. A cada ação. De acordo com o alcance de cada ação. A cada encontro. Por meio de encontros (FABIÃO, 2017, p. 44). A escolha de conversar com o trabalho de Eleonora Fabião ao longo desta dissertação é, para mim, como uma questão de consanguinidade: seu trabalho me moveu geograficamente de Recife até o Rio de Janeiro e tem vibratilizado meu corpo a também agir pela proposição de novos modos de cidade. Cada vez que desenvolvo um programa performativo e saio para as ruas e para os transportes coletivos, desejante por encontros vulneravelmente vibráteis, sinto mesmo que as palavras e gestos da artista seguem como carne em mim, estimulando o atrito e deslize do meu corpo com a cidade, orientando minhas negociações e agenciamentos. Sendo assim, optei por dois trabalhos que a performer realizou em 2014 e 2015, especialmente por conta da relação que mantêm com elementos que alimentam minha prática artística: o fluxo urbano, a relação com a palavra escrita e falada e a utilização de materiais precário-relacionais. Em Brasil: o momento em que o copo está cheio e já não dá mais pra engolir nosso caso é uma porta entreaberta, realizada nas ruas da Alfândega, Buenos Aires e Senhor dos Passos, trinca nervosa do maior centro comercial do estado fluminense, a Saara, a artista movimenta a nervura da cidade através do seguinte programa performativo: Encher um copo d água até o limite. Caminhar numa rua movimentada com o copo na mão, braço estendido, sem derramar uma gota. Se derramar, encher novamente até o limite e prosseguir (FABIÃO, 2015, p. 249). Este programa já dispara uma intenção de mexer com o valor das coisas do mundo, uma vez que a repetição de um gesto simultaneamente frágil e estranho, no meio do caos comercial e do aglomerado frenético, é como uma força cinético-precária que complica culturalmente a ordem habitual, promovendo deslocamento de valores de tempo, espaço e de utilização do próprio objeto, que vira uma extensão catalisadora da rua para o corpo ambulante da performer. Estamos falando de um gesto de concentração milimétrica em meio a um conglomerado de 600 lojas de comércio 43 Apropriação de frase da filósofa Hannah Arendt, cuja ideia-conceito iniciativa política é citada pela própria Fabião, quando elabora o conceito de Programa Performativo, conforme citado na Introdução desta dissertação.

73 76 oficial, inúmeras barracas de camelôs e uma circulação de 80 mil pessoas por dia 44 se esbarrando para consumir e transitar, incessantemente. Atravessando essa balbúrdia estabelecida, a mulher com copo cheio d água em linha reta é uma gota de superfluxo perceptivo, convocando para lidar com o paradoxo que é a sutileza acionada na dispersão tão característica de um centro comercial nas dimensões da Saara, onde fluxo e contrafluxo não são categorias estanques, pois a passagem de gente simplesmente É. Na caminhada reta e cuidadosa no meio do trânsito ininterrupto, a rua é quase uma corda bamba, de onde, porém, nunca se cai, pois a radicalidade do sutil está justamente na possibilidade de repetição anunciada no programa. Repetindo a ação a cada vez que uma gota é derramada, a performer parece mudar o próprio valor da noção de incessante: contrariando a lógica espetacular, tão arraigada na circulação urbana, Eleonora anula qualquer risco de leitura sacralizadora da ação quando, por exemplo, dá a água para um passante que pede para bebê-la. Ao vê-la continuadamente refazer um gesto que declara um gasto de tempo no espaço da procura e da oferta por excelência, os passantes são convocados extensivamente a uma tomada de posição, a qual pode ser expressa por um pedido de água ( posso beber? ), por um reconhecimento da repetição ( Lá vai a moça d água! ) ou por uma irrupção de violência que sinaliza a força dissensual da ação nas estruturas comportamentais ( Bruxa! ). No seu deslocamento propulsor de dissenso, Eleonora, com seu braço esticado segurando cautelosamente um copo de vidro, une estranheza e fragilidade como potência porosa para dizer às ruas e ouvir suas eventuais respostas. O copo d água, nesse fluxo, parece (pr)enunciar o tsunami político brasileiro anunciado no próprio título 45 do trabalho: metaforiza o estado de situação-limite que começava a se instaurar no país pós manifestações de 2013 e também adiciona virtuais futuros de uma crise política que desembocaria, em 2016, num tempestivo regresso. Dialogando com Deleuze a partir do conceito de virtuais e atuais, presente na obra Deleuze filosofia virtual, de Eric Alliez, é a própria performer quem teoriza sobre a capacidade do acontecimento performativo congregar, no presente, passado e futuro: não há atualidade fora das correntezas de passado e futuridade; não há atualidade fora dos circuitos de memórias, imaginações, visões e desejos 46 (FABIÃO, 2011, minha tradução). Ao frisar o teor político indicado no título do trabalho, não pretendo limitar a leitura da ação com uma supervalorização de discurso anti-poder hegemônico. Concordo com o pesquisador Pablo Assumpção Costa (2015, p. 265), o qual ressalta que na poética de Eleonora há sobretudo um investimento no acaso e na alegria do lúdico que dificulta qualquer sobredeterminação de seu 44 Dados consultados em: 45 O título do trabalho é uma apropriação de dois versos da canção Grito de Alerta, de Gonzaguinha. 46 Trecho original: There is no actuality outside of the currents of pastness and futurity; there is no actuality outside the circuits of memories, imaginations, visions and desires.

74 trabalho como filiado a um discurso antagônico da arte política. Costa ainda coliga Eleonora a Lygia Clarck e Hélio Oiticica, comentando que, como eles, a performer: 77 provavelmente se encontra à margem da arte de conteúdo explicitamente antagonista e mais associada ao exercício experimental de liberdade (expressão cunhada pelo crítico Mário Pedrosa) que historicamente no Brasil se volta ao corpo como tecido conectivo que alcança e reestrutura a relação com o outro e o mundo (idem). Ademais, há uma concretude na performance que afasta o perigo do teor metafórico fincarse somente no plano discursivo. O copo acoplado ao corpo pela mão que redoma e o redoma é o mesmo que na ponta de um braço esticado pode estar mais próximo do passante do que da própria artista. Ela, por seu turno, parece entregar o copo, oferecer a água, partilhar o problema, anunciar o futuro-equilibrista numa tempestade de virtuais e atuais em copo d água. O contínuo ambulante formado por corpos, copo, água e caminhada em linha reta constitui, assim, um tecido conectivo de discursividade com a rua. Este tipo de fazer político, portanto, é a própria concretude do corpo se imbricando com a rua numa potência entreaberta por um objeto precário que se por um lado corre o risco de ser destruído no primeiro esbarro, por outro catalisa dos passantes o olhar que envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 130), fazendo a artista tocar e ser tocada. Sendo assim, o copo de vidro transbordante é um objeto potencializado pela iniciativa política da performer, que desloca lógicas e engaja percepções, pois, como articulou Adrian Heathfield (2015, p. 323) ao descrever a ação que acompanhou de perto, basta que uma coisa mundana seja segurada de maneira diferente para que ela se torne algo de outro mundo. Parafraseando o autor, poderíamos também dizer: basta que uma coisa mundana seja segurada de maneira diferente para que ela sublinhe modos outros de conceber este próprio mundo. Nessa reinvenção mundana, a estética da precariedade tem sido um elemento-chave de sua prática artística. Tal caminho se reflete pela escolha de objetos como o copo e por seu intuito artístico de vibrar as noções de valor. Os objetos precários, nesse contexto, são, para ela, ferramentas de trabalho e mecanismos de encontro que disparam inversões: [ ] em vez de considerar a falta de recursos como uma fraqueza, como algo que deve ser evitado seguindo a lógica do capital, essas ações propõem uma inversão: valorizar a precariedade, abraçá-la, investigar seu peso temporal, sua força política, sua potência estética, sua força corpórea e sua energia filosófica 47 (FABIÃO, 2011, minha tradução). 47 Trecho original: [...] rather than considering the lack of resources as a weakness, as something to be avoided according to the logic of capital, these actions propose an inversion: to valorize precariousness, to embrace it, to investigate its temporal weight, its political force, aesthetic potency, corporeal strength, and philosophical energy (FABIÃO, 2011).

75 78 Essa operação temporal-política-estética-corporal-filosófica que é a precariedade não se restringe no trabalho da artista à escolha dos materiais, tendo em vista que estes, no fluxo contínuo de experimentação que é performar nas ruas, muscularizam com os demais elementos da ação programados e imprevisíveis uma abertura de espaços (FABIÃO, 2015, p. 14). No alargamento da cidade, a estética da precariedade pode ser alimento propulsor de colaborações para fazer do corpo um campo negociativo de aderência, amizade e interconexão o que também pode ser averiguado em outros trabalhos da artista como Não compro lata velha (2015). Neste trabalho, realizado em ruas dos bairros de Grajaú e Laranjeiras, a performer investe em encontros a partir do seguinte programa performativo: pegar emprestado espelhos com amigos. Amarrá-los nas laterais e espalhá-los pelo chão de uma kombi utilizada para compra e venda de ferro-velho. Sentar numa cadeira na caçamba com microfone e livros, acionar o alto-falante do veículo e circular lendo trechos escolhidos. Parar diante de prédios e convidar moradores para vir à janela ver e ouvir. (FABIÃO, 2015, p. 241). O programa sugere a cadeia negociativa inerente ao trabalho de Fabião, que articula matérias da cidade, humanas e não humanas, em prol de desarticular as logicidades cotidianas e estimular novas maneiras de socialização. Neste caso, o ciclo de negociação agrega como colaboradores do trabalho amigos da artista e seus espelhos, trabalhadores ambulantes e seu veículo, moradores e seu tempo para ver e ouvir a rua através da transposição de sentido de um contexto comunicacional compartilhado socialmente no cotidiano da cidade: a compra e venda de ferro-velho com suas características típicas a circulação motorizada e a voz amplificada do ambulante, que cria um refrão repetido em timbre metálico (FABIÃO, 2015, p. 242): compro lata velha, compro ferro velho, compro geladeira velha. Foi justamente a partir de sua experiência como ouvinte desses refrões que Eleonora elaborou o programa. Numa dada manhã a voz ambulante de Valmir Cândido de Lima adentrou suas janelas e a fez descer correndo para a rua, onde, abordando-o, negociou a colaboração para o trabalho. Após vários telefonemas, o vendedor/comprador aceitou alugar sua kombi e estender sua performatividade urbana para trabalhar junto com a artista. Circulando por áreas que coincidem com os trajetos de serviço do motorista, poemas de Arnaldo Antunes, Haroldo de Campos, Wislawa Szymborska e Valère Novarina foram enunciados kombi afora e casas adentro. Assim como os moradores, convocados para performarem o papel de ouvinte, são duplicados juntamente às suas varandas pelos espelhos dos amigos da performer, que também circulam ali virtualmente com ela. No chamamento para ver e ouvir, janelas e espelhos são como entrelaçadores do encontro. Se as janelas das casas sinalizam o limite entre público e privado que é ligeiramente rompido quando os moradores atendem ao convite da artista para ouvir os dizeres da rua, os

76 79 espelhos aproximam ainda mais os moradores da performer, constituindo um entrelaçamento que pode ser comparado ao que a psicanalista e crítica de arte Tânia Rivera (2015) intitula como operação poética, a disseminação. Para a autora, tal operação consiste no fato de que qualquer objeto do mundo, seja ele preexistente ou criado por mim, pode ser, portanto, semeado de corpo, ou melhor, de presença, de entre-presença, desde que eu injete nele um pouco de mim (RIVERA, 2015, p. 303). Colocando espelhos nas laterais e chão da kombi, Eleonora injeta nestes objetos (em conjunto com estes objetos) a presença virtual dos donos desses espelhos, sua própria presença e, claro, a entre-presença dos moradores que, refletidos pelos espelhos assim como estão o céu e o chão das ruas passam a constituir a obra como uma imagem da cidade em disseminação. Espelho, céu e chão, triplo firmamento precário numa ação em que palavra escrita, palavra falada, livros, poeira, trabalhadores, microfone, amplificador, sacadas, janelas, moradores, transeuntes e os demais sons e imagens da cidade são duplicados numa espécie de aninhamento visual-polifônico em que materiais, reflexos e concidadãos formam corpo com a cidade e na cidade. Nesse aninhamento de corpos, duplicações e vocalização, a leitura dos textos funciona como um espelhamento da palavra escrita, isto é, reflete seu conteúdo de modo ampliado, uma vez que a palavra proferida pela voz cria o que ela diz. Esta afirmação, do crítico literário Paul Zumthor (2001, p. 75), pode apontar reflexões sobre a importância da palavra no trabalho de Fabião, sobretudo em Não compro lata velha. O teórico, que investiga relações entre leitura e oralidade resgatando a produção da Idade Média, época em que a vocalização de textos nas ruas era um imperativo relacional, conceitua performance como uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora (ZUMTHOR, 2001, p. 222). Dentro desse viés literário e linguístico, na performance, esquematicamente, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição (idem). Quando a performer decide cobrir uma kombi com espelhos e, consequentemente, de fachadas, pessoas e outros índices de rua, a leitura de poemas congrega escritores, vocalizadora e ouvintes ao mesmo tempo em que atribui à situação do encontro virtuais de uma tradição das ruas que sobrevive em performances vocalizadas corpo a corpo como fazem os vendedores ambulantes em transportes coletivos. Movimentando uma vocalização de textos na cidade, a ação de Eleonora pode suscitar uma situacionalidade que se aproxima da tradição de arautos, menestréis, contadores, repentistas, anunciadores e ambulantes, corpos dissonantes que fazem do fato de suas ações a enunciação de palavras uma linguagem fática, isto é, um jogo de aproximação e de apelo (MALINOWSKI apud ZUMTHOR, 2001, p. 222).

77 80 Se o motor da kombi e o microfone amplificador acionam imediatamente a imagem do ambulante que garimpa ferro-velho, os espelhos, os poemas e, claro, a negação-afirmativa não compro lata velha convocam moradores a virem à janela, escutarem os poemas e também lidarem com a transmutação de um contexto cultural. Nesse ínterim, estabelece-se um jogo negociativo em que a imagem padronizada da kombi e do microfone aproximam os espectadores, ao passo que a mulher lendo poemas apela convidativamente a uma experiência extracotidiana, a um deslocamento de valores. Valor de uso do veículo kombi, que vira uma instalação performativa em movimento, refletindo e refratando corpos e casas, bem como valor de uso do próprio tempo: na sonoplastia habitual das ruas, com seus motores, buzinas, sirenes, fogos e tiros, a ambulante leitora de poemas desabitua os códigos, promovendo uma iniciativa política. Bom dia, ela cumprimenta. Não compro lata velha, não compro ferro-velho, não compro geladeira velha, repete vez ou outra o seu refrão metálico. Peço licença para entrar assim, dessa maneira, de voz, pela tua casa adentro, negocia convidativamente. Trago palavras para te trazer até a janela. Você que me escuta: vem ver?, arremata o encontro. No ciclo entre o anúncio e o convite, o fato da performer deter o microfone e ter sua voz amplificada, transmutando palavras escritas em hertz que invadem casas e recompõem a paisagem sonora da cidade, não impõe o perigo de uma monocórdia, pois estabelece-se uma contracena justamente desse modo, de voz. Poemas escritos transformam-se em palavras das ruas e os corpos nas sacadas, movidos pelo interesse às palavras e trazidos para mais perto do corpo da performer pelos espelhos, sinalizam a troca e, portanto, o diálogo. Quando aceitam o convite de Eleonora, juntam-se às ruas, às sacadas, à kombi, ao motor, aos trabalhadores, à performer e à sua voz amplificada: todos os elementos moventes de uma obra que se faz no ali e no agora. A palavra, na ação de Fabião, tem valor de movência: sua voz convoca e, assim, move os moradores aos parapeitos de suas janelas. Os amplificadores da kombi sinalizam o percurso da palavra falada na rua e para a rua, espaço de camadas sonoras ambulantes, onde tudo está sempre passando em movimento. Espelhos e amplificador igualmente espalham e geram encontros. A reunião desses materiais e gestos com a ressignificação do evento compra de lata velha parece sublinhar como Eleonora extrai as coisas das ruas e as devolve performatizadas, isto é, com seus valores em movimento. Vibrando na cidade um tecido conjuntivo imantado por vocalização e encontros precários, a performer estala aos nossos corpos condicionados a ser passantes, usuários, esbarrantes, apressados, esbaforidos, a coisidade impalávrel que é a rua acontecendo e proliferando palavras. As ações de Eleonora fazem da rua um espaço onde gente É. Movem as ruas para serem o lugar onde performance simplesmente É.

78 81 Brasil: o momento em que o copo está cheio e já não dá mais pra engolir nosso caso é uma porta entreaberta Foto: Felipe Ribeiro. Fonte: Não compro lata velha Foto: Adrian Heathfield. Fonte:

79 82 Flávia Naves: o corpo-figura desnormatizando a cidade Performer goiana radicada no Rio de Janeiro, Flávia Naves, que também é Caio, tem atuado em espaços públicos da cidade com o principal interesse de desarticular normatizações comportamentais através do procedimento que tem nomeado corpo-figura. Entendendo a potencialidade visual que o corpo pode adquirir para semear quebras de padronização, Naves tem elaborado e agido programas centrados na composição de Figuras que se deslocam nos espaços públicos. Segundo a performer: [ ] essas Figuras ousam provocar uma ruptura, ainda que momentânea, em leis e regras que normatizam os nossos corpos em sociedade, determinando como e quando podemos agir, de que forma devemos nos portar, como devemos nos vestir, insistindo em nos manter sob um regime de poder baseado no adestramento e na docilização dos corpos (NAVES, 2016, p. 84). Em 2014, contemplada com o prêmio FUNARTE Artes na Rua, a performer desenvolveu o projeto Inter-urbana: a trilogia das Figuras. Uma dessas Figuras foi nomeada de A GUARDyà : 48 descalça, com chifres, peças de couro, acessórios de cabeça, cajado com tocha de fogo no topo e um alargador na boca que ampliava seus lábios e deixava seus dentes sempre à mostra, a performer caminhava nas ruas de diferentes bairros do Rio de Janeiro acionando na paisagem urbana o imaginário de um mito africano ou indígena. O percurso da caminhada se completava quando a Figura chegava num local que precisava ser protegido, guardado, preservado em vigília por uma mulher cujo símbolo de poder é uma tocha de fogo numa cidade em que tiroteios e caveirões são constantes. A GUARDyà saiu às ruas três vezes: protegeu a entrada da favela Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul da cidade, depois que um bailarino foi assassinado por policiais num confronto que teve grande repercussão midiática; 49 além de ter caminhado pelo Centro da cidade até se posicionar em guarda à estátua de Zumbi dos Palmares, monumento dedicado ao mais histórico dos líderes negros, edificado na Praça Onze, local de baixa circulação pedestre por conta da insegurança. Na primeira saída, a Figura caminhou pelas ruas do bairro de Vila Isabel, na Zona Norte da cidade, até se posicionar de costas para o Morro dos Macacos. Trata-se de uma das áreas mais violentas do Rio de Janeiro, marcada por intensos tiroteios e megaoperações que reúnem Polícia Militar e Forças Armadas num genocídio à população pobre e negra que se camufla numa agenda de guerra ao tráfico. 48 A performer intitula o trabalho com o último à assim, maiúsculo. Ao que parece, uma referência à orixá YansÃ. 49

80 83 Caminhando pelas ruas do bairro, a performer desestabilizou a cotidianidade de homens sentados nos bares, pais passeando com crianças, moradores circulando com cachorros, transeuntes esperando por ônibus, feirantes e compradores. Sendo impossível ignorar a imagem que atravessava seus caminhos e adicionava às ruas uma nova camada de sentido, todos verbalizavam entre si, olhavam várias vezes para trás ou dirigiam palavras à própria performer. Se alguns homens comentavam sobre a quase nudez da mulher, outros transeuntes quiseram cumprimentá-la ou mesmo tocá-la, mas sua ação transmitia uma retidão que fazia jus ao quê de mítico revestindo seu corpo. Quando a performer chegou numa praça e acendeu a tocha, posicionando-se de costas para o Morro dos Macacos e formando uma paisagem com o conglomerado de casas e pessoas, bem como com os sons de comércio e de tiros, um grupo de crianças e adolescentes fez um círculo ao redor da Figura. Entre adjetivos que esboçavam, simultaneamente, curiosidade e estranheza, uma adulta tentou esclarecer a performance: hoje é dia de quê? De zumbi dos Palmares, responde um menino. Então, ela é uma guardiã, é uma performance, ela veio mostrar pra vocês e lembrar o dia de hoje. Vamos buscar a história?! Hoje é dia de quê?. Da consciência negra, respondeu um dos meninos negros todos eram negros. E nós somos o quê?, perguntou a mulher batendo fortemente na pele do braço. Um dos garotos replicou sobre a pele branca da performer e os cabelos loiros da interlocutora, que prosseguiu: Eu não sou nordestina e não danço forró e não sou loira? E vocês não me aceitam aqui? Então, pronto. Ela é maravilhosa, não precisa ter medo. Intacta, a performer preservava seu papel de guardiã, apenas escutando as conversas sobre si, protegendo figurativamente uma área não só escanteada como martirizada pelas políticas públicas da cidade. Em A GUARDyÃ, sublinhando uma noção de cuidado como foco da ação, Naves parece dar a ver o cinismo do Estado que se reveste num preceito de segurança: a cidade nunca pode parar para lamentar seus mortos, sobretudo os mortos que ela produz. Só desacelerados e talvez atravessados por outros tipos de imagens é que os cidadãos podem ver e escutar as calamidades do seu entorno e, quem sabe, confrontar o poder público que não lhe garante o devido cuidado. Promovendo esse dialogismo entre estruturas de poder e modos de cuidado, podemos perceber nas Figuras de Naves uma presença dupla da noção de poder: se por um lado suas vestes confrontam regimes de comportamento que adestram os corpos, por outro é inegável que a Figura se distancia dos passantes, exercendo ela própria uma figuração de poder, especialmente em A GUARDyÃ, que remete ao imaginário mítico com suas peças de coro, chifres e tocha. A meu ver, a Figura veste-se hiperbolicamente para se diferenciar dos demais corpos que, atraídos, podem se deslocar da monotonia cotidiana. Ademais, não seria coerente distanciar dos movimentos dissensuais gerados pelas performances a presença de estratégias de poder. Conforme aponta Michel Foucault (2007, p. 8), o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é

81 84 simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Evidentemente, trata-se de um tipo de produção de coisas, saberes e discursos que não está à disposição das castrações engendradas contra os corpos, mas de desautomatizações perceptivas que podem ativar novos modos relacionais na cidade. A performance urbana, ao criar paradoxos e gerar dissenso, vibratiliza a cidade e cuida da cidade, injetando-lhe questões e estimulando-lhe posicionamentos. Afinal, criar também é uma forma de cuidar, como afirma o pesquisador Cassiano Quilici (2015, p. 150), ao propor analogias entre a criação artística e as noções de cuidado. Teorizando sobre as dinâmicas arte-vida, o autor aborda a arte como modo de fomentar e cuidar de nossas relações com o mundo e conosco. Através desse pensamento, propõe que a arte pode operar uma transformação no cotidiano, o que significa: a descoberta de um agir que não é o mero esquecer-se das ocupações, o perder-se nos hábitos já cristalizados. Um agir renovado que começa na mudança de qualidade da própria percepção. Um perceber que não decodifica o mundo no sentido de sustentar o agir mecânico ou apenas funcional. Uma abertura que sustenta o momento de espanto e admiração diante daquilo que surge, que passa, que desaparece. Um olhar que não quer prender as coisas numa representação que as fixa, não evita a impermanência dos fenômenos e possibilita a apreensão poética dos acontecimentos. (QUILICI, 2015, p. 143). Caminhando em meio aos hábitos cristalizados das ruas, Flávia Naves escava aberturas por meio de estratégicas hipérboles visuais que catalisam para o seu corpo camadas de espanto e admiração por parte dos transeuntes, os quais podem ter suas apreensões perceptivas aguçadas criticamente quanto aos adestramentos comportamentais. Dentre esses adestramentos, poderíamos citar a própria aceitação da violência como algo cotidiano. Em A GUARDyÃ, o procedimento corpo-figura desmonta a própria feição cotidiana da performer, pois os adereços, especialmente no seu rosto, provocam uma transfiguração 50 que aciona a imaginação das ruas para decodificar o quê de coletividade assumido pela performer em seu corpo individual. Há, no procedimento, um deslocamento da sua rostidade. Segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 29), os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Em outros termos, os rostos funcionam como ressonadores comportamentais, uma vez que, como afirmam os filósofos, neutralizam a imagem em conformidade às significações estabelecidas. Contudo, não se deve tomar o rosto como sinônimo de cabeça, tendo em vista que: 50 Utilizo o termo transfiguração a partir do poeta Manoel de Barros, que no documentário Janela da Alma (de João Jardim e Walter Carvalho, 2001), afirma: O olho vê. A lembrança revê as coisas e a imaginação é a A imaginação é que transvê, que transfigura o mundo, faz outro mundo pro poeta e pro artista de modo geral. A transfiguração é a coisa mais importante para um artista.

82 85 [ ] a cabeça está compreendida no corpo, mas não o rosto. O rosto é uma superfície: traços, linhas, rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular; o rosto é um mapa, mesmo se aplicado sobre um volume, envolvendo-o, mesmo se cercando e margeando cavidades que não existem mais senão como buracos (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 31). Assim, poderíamos considerar que a cabeça estaria atrelada a uma ideia de massificação que, na lida cotidiana das cidades, tem, por exemplo, como imagem mais imediata os contingentes tratados como gado nos currais dos transportes coletivos. O rosto, por sua vez, pode operar, como no caso das figuras de Naves, um dissenso performativo, pois ele representa [ ] uma desterritorialização muito mais intensa, mesmo que mais lenta. Poder-se-ia dizer que é uma desterritorialização absoluta: deixa de ser relativa, porque faz sair a cabeça do estrato de organismo humano não menos que animal para conectá-la a outros estratos como os de significância ou de subjetivação (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p.34). Flávia, na composição de seu corpo-figura A GUARDyÃ, opera uma espécie de potência de rosto que gera um agenciamento-fissura na normatividade cotidiana por meio de um apelo à subjetivação ao invocar relações entre presente, história e imaginário. Para que a cidade se veja de um modo contrário ao que está acometida pelas padronizações de comportamento, que fazem circular no espaço urbano rostos-cabeças massificados no ir e vir imparável. Nesse ínterim, os adereços que compõem o corpo-figura da performer afastam os signos mecânicos, reterritorializando a paisagem do espaço urbano onde circula com seu rosto-corpo não uniforme. Ademais, é a própria performer quem argumenta que suas Figuras dialogam com um nível de potência desarticuladora: [ ] dependendo da imagem que fazem ou fazemos de nós, nos tornamos propagadores ou desarticuladores de processos de normatização. O mesmo se dá em nível de potência. Que Figura podemos criar para nós a fim de desarticular e não propagar processos normatizadores? A fim de aumentar e não diminuir nossa potência de ação? (NAVES, 2016, p. 86). Criando e se travestindo de Figuras, a performer circula na cidade como se experimentasse uma estética do urgente, transmutando em imagem o que a cidade não aguenta mais e, mais do que isso, o que os cidadãos são normatizados a não querer falar sobre. Para isso, faz de sua pele uma política figurativa a fim de aumentar uma potência de ação em quem, como ela, passa nas ruas. Em suas ações de caminhada, a performer tanto desfila friccionando as subjetividades de modo mais evidente, como em A GUARDyÃ, quanto pode deambular de modo mais sutil, querendo plasmarse com a cidade, como é o caso de Figuraça. Em Figuraça, programa performativo que Naves agiu durante um ano, a noção de corpo- Figura estendeu-se também para a interioridade de seu corpo. Quero dizer, não havia uma alegoria

83 86 em trânsito como na GUARDyÃ, mas um mosaico de figuras reunida num corpo que vivia cotidianamente a cidade. O trabalho consistiu em deambulações da performer pela zona Norte do Rio de Janeiro, fotografando, em ruas e transportes coletivos, trechos de corpos, porções de pele, lampejos de cores, fragmentos de texturas, enfim, pedaços de subjetividades aleatórias que se tornaram pulsão existencial para o devir todo mundo que a performer radicalmente vive desde então. Após fotografar os trechos de corpos que captavam seu engajamento perceptivo, Naves uniaos constituindo um mosaico que denominava Figuraça. Com o mosaico em mãos, uma figurinista era chamada para confeccionar as peças de roupa ou acessórios, de modo que a artista passasse um mês circulando nos espaços públicos vestida como Figuraça. Como uma ensaísta do cotidiano, experimentando a deriva como motor intuitivo e produtor de convicção, nada escapa ao olhar performativo de Naves: uma tatuagem com o símbolo do infinito no braço de alguém, a cor do vestido de outro alguém passando do outro lado da rua, o boné vermelho de um terceiro caminhando mais perto. Ao decidir caminhar com a convicção de ser todo mundo, como alguém que assume o privilégio de ser espectador, o corpo de Flávia passa a conter a cidade que a contém. Nessa agência perante o próprio corpo e a própria cidade, pele não significa camada de revestimento mais aparente. No trajeto construído entre ver, ler, fotografar e aglutinar seus concidadãos desconhecidos, passando a se vestir como eles, a ser como eles, a cravá-los na pele e, consequentemente, nas camadas menos aparentes, ela desvela a si própria, revestindo-se da complexa urbanidade que a circunda, como se estivesse imbrincando-se com a cidade, projetando o exterior das ruas na camada visível do seu corpo, ao passo que também movimenta suas camadas internas, modificando-as, pois, conforme pontua a pesquisadora Fernanda Bruno (1999, p. 101), o modo como o interior se projeta no exterior e vice-versa não é unicamente determinado pela natureza do corpo. Em outras palavras, trans-formando o seu corpo numa junção de frames da cidade, a performer leva aos limites a coligação entre dentro e fora, invocando-nos a entender que a interioridade e a exterioridade não são, pois, dimensões espaciais estáticas, mas domínios relativos à história das mediações onde as fronteiras entre o dentro e o fora não cessam de se alterar (BRUNO, 1999, p. 102). Alterando seu corpo a cada mosaico de outros corpos, a performer reveste-se para ser multidão. Gestos, cores, peças de roupa, tatuagens e objetos de transeuntes desconhecidos não são apenas travestimentos de uma figura, mas revestimentos de uma cidade impressos e fincados na pele da artista, que vira um campo vidente da alteração incessante entre as fronteiras do dentro e do fora. O sentido de pele transmuta-se, assim, em órgão maior de toda cidade. Camada coletiva mais aparente que pode se desdobrar numa diversidade profunda: metáfora tornada realidade visível e palpável no corpo-imagens de Flávia, que, no seu colecionismo de gente, utiliza a pele e as vestimentas como tecnologia para uma auto-refeitura.

84 87 O corpo-figuraça é, simultaneamente, um recorte etnográfico e uma poesia sobre a cidade. Corpo-ensaio na cidade, com a cidade e sobre a cidade. Desmontando o próprio revestimento, acolhendo sexualidades, escancarando as nossas normatividades, Naves faz do corpo uma cartografia de subjetividades, utilizando as figuras passantes que a afetam como próteses para ser. Esse movimento de se montar, remontar e trans-formar o provisório em carne, portanto em eterno enquanto vivo, ou seja, precariamente eterno, vira um contínuo. Ou, nas palavras do dramaturgo e pesquisador Diogo Liberano (2016, p. 14) que analisa a tragicidade presente em Figuraça faz do corpo um corpo-espaço pelo qual se passa o fluxo urbano, corpo-esponja e jamais ponto final de uma final chegada. Esse fluxo caminhante em que exterioridade e interioridade não param de se alterar, parece nos convidar a não desperdiçar gente, a reconhecer os movimentos ambulantes que nos afetam, a descobrir o que há de nós em nossos concidadãos. A reconhecer que as pessoas também são monumentos. Monumentos ligeiros, precários e provisórios que escrevem com os pés e sobretudo com suas figuras quem é a cidade anônima que se esbarra sem parar. Assim como Flávia reescreve a cartografia da cidade com a convicção entregue ao acaso, estou com este papel em mãos, sendo fisgado pelos passantes, meus concidadãos, que escrevem junto comigo nosso bem-comum que é a cidade. Uma senhora de blazer rosa passa por mim. No caminho inverso, uma mulher carrega uma sacola plástica de supermercado com o dedo mindinho da mão esquerda. Um homem passa mais depressa, carregando uma caixa de papelão. Para uma vez para descansar. Três mulheres cruzam a mesma calçada, todas com telefones celulares na orelha direita. Um homem de calça branca, com os braços cruzados e o olhar à frente, por minutos, está narrando uma espera. Não sei o desfecho, minha presença aqui é figurativa, agarro o privilégio de ser um espectador-cartógrafo. Mas sigo meu caminho com os braços cruzados. De repente quero experimentar ser uma pele-mosaico figurada por um blazer rosa, uma sacola plástica pendurada no dedo mindinho, um celular na orelha direita e uma calça comprida branca, parando vez ou outra para descansar o peso da caixa. Chego à beira do mar, mar que também é sinônimo de multidão. Adentro outro bairro e novas figuras saltam à vista, afetam a pele, injetam possibilidades de devires na minha eternidade com data para acabar: constituída, inevitavelmente, por um conjunto de imagens provisórias que, assim como a minha, escrevem a cidade.

85 88 A GUARDyÃ, foto de Carolina Calcavechia Flávia Naves, Mosaico da composição de FIGURAÇA #6 Acesso em:

86 89 Crack Rodriguez: arte como verbo histórico Inscrever no cotidiano imagens em movimento que alteram a escrita cotidiana da cidade também é uma característica presente no trabalho do artista salvadorenho Víctor Crack Rodríguez, que tornou-se famoso em seu país após comer uma célula de voto para discutir as relações entre fome e poder e, como consequência, ter sido processado pelo Estado sob acusação de fraude eleitoral. Crack Rodríguez, como assina seus trabalhos, tem realizado nas ruas o que denomina arte verbo : um fazer centrado em anexar-se ou pertencer ao presente e à história em sua linha do tempo, deixando de ser uma representação para ser uma apresentação como fato da vida cotidiana. 51 Por essa definição, podemos inferir o interesse do artista em acionar as questões políticas da vida cotidiana entendendo a ação artística como algo que atravessa a história, a qual, por sua vez, se faz no tempo presente da ação. Ação que virtualiza e atualiza o fato histórico no modo infinitivo por ser, como afirma o artista, verbo. Em La inclinacion 52 (2015), Crack circulou pelas ruas de um mercado popular de San Salvador crucificado 53 na lateral de uma caminhonete que transportava cabras. Era sexta-feira santa e ensolarada na periferia de uma das capitais mais católicas da América Latina. Se nas casas, repartições públicas, lojas e demais prédios o símbolo do Cristo crucificado estava na sua angulação vertical, historicamente preservada e cultuada, o performer horizontalizou um dos imaginários mais compartilhados socialmente, cruzando a cidade num calvário motorizado. Os passantes, habituados a curvarem o pescoço para cima e olharem o Redentor, agora tinham à sua frente, em angulação reta, um homem descalço, com calça marrom e sem camisas; rendido, móvel e abaixo dos chifres das cabras, suscetível a qualquer imolação sob a mesma altura. A declinação do corpo crucificado, transitando pela cidade horizontalmente, não faz desaparecer a iconoclasta verticalização do Cristo sacrificado, mas sublinha-a, deslocando seu sentido absoluto e inato, pois, ao cair, a supremacia cristã não é anulada: o que cai não desaparece necessariamente, as imagens estão lá, até mesmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 121). Ainda mais quando se trata do mais católico dos feriados, com todos os símbolos cristãos ainda mais viventes e visíveis. 51 Tradução a partir do trecho original de uma conversa que tive com o artista. Ao indagar qual termo entre performance e ação era mais preciso para se referir ao seu trabalho, Crack afirmou: creo que es mas exacto llamarle arte verbo por que trata de anexarse o pertencer al presente y la historia en su linea de tiempo. dejando de ser una representacion a na presentación como un hecho de la vida cotidiana. Para entender o posicionamento teórico do artista de forma pormenorizada, pode-se consultar: 52 Trecho disponível em: 53 Está evidente em La Inclinación a influência do artista estadunidense Chris Burden, que em abril de 1974 executou a performance Trans-Fixed, na qual saía do interior de uma garagem crucificado num fusca. Essa intertextualidade com uma obra realizada há mais de quarenta anos parece refletir a inter-relação entre performance e história anunciada no conceito de arte verbo.

87 90 Invertendo a lógica, mas não eliminando-a, Crack penetra o corpo da cidade com uma imagem em trânsito que narra uma intrusão performativa na crença estabilizada, inclinando os transeuntes a reagirem, isto é, a lidarem com a transposição perceptiva com a qual se deparam. Astutamente, o artista profana a mais sacralizada das imagens num mercado popular, delineando, desse modo, as relações entre dinheiro e fé. Utilizo o termo profanar a partir do conceito elaborado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Para ele, profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado (AGAMBEN, 2007, p. 71). Jogando com a percepção do público a partir de um símbolo imediatamente reconhecível, Crack Rodriguez desloca os valores de uso do cordeiro imolado, aproximando o sinal da cruz à altura dos olhos dos passantes, provocando, pois, uma restituição que dessacraliza, humaniza e provoca. Ao invertê-lo, o artista não está simplesmente se opondo ao símbolo religioso, mas acentuando suas possíveis incongruências e projetando uma torção perceptiva que torna o símbolo equidistante do espectador. Etimologicamente, o termo religião, segundo Agamben (2007, p. 66), carrega uma noção verticalizadora, porque religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a incredulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a negligencia. Poderíamos considerar que Crack negligencia as doutrinações do sagrado e, por isso mesmo, o desvela, horizontalizando a crucificação para revelar as ambiguidades que a imagem estabelecida possui. Ao comentar o trabalho de Crack Rodriguez tenho repetido constantemente a palavra imagem. Mas que sentido de imagem podemos associar à arte verbo do artista? Refiro-me ao que o filósofo e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman (2010, p. 172) chama de imagem crítica: uma imagem em crise, uma imagem que critica a imagem capaz portanto de um efeito, de uma eficácia teóricos, e por isso uma imagem que critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-los, mas para construí-lo. Levando os transeuntes a construírem e escreverem consigo uma imagem móvel, que mobiliza criticamente a leitura, Crack se imbrica à caminhonete com motor, condutores e cabras como um artefato político que verbaliza a história e o imaginário cultural de seu país. Este procedimento também se evidencia na ação La Trindad, também de Numa avenida transnacional, a melhor pavimentada do país, El Salvador, onde gangues e tráfico imperam e garantem-lhe o título de mais violento do mundo, 54 Crack agiu juntamente a um caminhão-pipa. Caminhando à frente do veículo e segurando a mangueira, despejou a água num 54 Fontes: ; e

88 91 exemplar da constituição do país, desmantelando-a ao longo da avenida de intenso fluxo. Em cima do caminhão, um colaborador balançava uma bandeira branca enquanto carros buzinavam enfurecidos e alguns cidadãos eram certamente assassinados país adentro. O título da obra é uma referência não à Santíssima Trindade, mas à trinca que constitui o lema cintilante na bandeira nacional e cravado no escudo militar: Dios, Unión, Libertad. Na estrada que une o país a nações vizinhas, o artista faz um campo de experimentação de liberdade exercendo um gesto de violência sutil, com seu tanque d água destruindo um símbolo de poder nacional. A água, nesse contrafluxo, espalha uma escala múltipla: lava o país, faz escorrer a violência do seu presente e escorrega os paradoxos de sua história. Por seu turno, a bandeira branca constitui um ponto mínimo de extrema ironia, que sela acordos entre carros congestionados e gangues atuantes entre os dois lados do asfalto, no país católico em que matarás é um mandamento diário. Colocando seu corpo em movimento, transformando-o num espaço de passagem para a história de seu país, quase como um projetor estampando nas ruas as contradições sociais e as contrações violentas de El Salvador, Crack Rodriguez parece levar aos limites a relação entre ação artística e história que defende no seu conceito de arte verbo, enfatizando a performatividade da história e a historicidade da performance. 55 Frame de La Inclinacion Fonte: 55 Citação de um fragmento de Eleonora Fabião, presente no texto History and Precariousness: In Search of a Performative Historiography In: Amelia Jones; Adrian Heathfield. (Org.). Perfom, Repeat, Record. 1ed. London and New York: Thames and Hudson, 2012, p No texto, o argumento central da autora é que a arte da performance, a qual, segundo ela, é uma prática paradoxa que desmancha separações estritas entre arte e não-arte, pode nos inspirar a repensar modos de historiografia.

89 92 La Trindad em exposição do coletivo The Fire Theory, do qual Crack Rodriguez faz parte. Fonte: Crack Rodriguez, Eleonora Fabião e Flávia Naves são artistas que enfatizam a performatividade das ruas, desmecanizando relações semânticas, expandindo noções de utilidade e fomentando a imaginação política. Suas ações operam uma transposição de cidade no sentido crítico e emancipatório que parecem típicos da arte da performance em espaços urbanos: há um movimento contínuo de abertura de janelas como me referi na Plataforma introdutória desta dissertação escavando outros modos de produção e relação, perdendo tempo para ganhar cidade. Esses deslocamentos nas molduras comportamentais do cotidiano podem ecoar o que Fabião (2009, p. 237) descreve como a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: desabituar, desmecanizar, escovar a contrapelo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial...

90 Entre programas e anti-programas: arte da performance em mobilidade urbana 93 A partir de seus programas performativos, artistas da performance escovam a cidade a contrapelo, vivenciando-a como campo de experimentação e disseminação de práticas que, se não anulam as sistematizações do controle urbano, abrem fissuras que complicam culturalmente parafraseando Eleonora Fabião o próprio sentido de cidade. De modo contrário, o planejamento urbano impõe, numa escala generalizada, o que é a cidade por meio de normatizações que mecanizam a mobilidade no espaço urbano. Dialogando com o conceito de programa performativo, que tem ao longo desta dissertação orientado minha leitura sobre as inter-relações entre performance e mobilidade, sugiro que os planos de mobilidade urbana funcionam como anti-programas performativos: compostos por enunciados de toda ordem (verbais, pictóricos, cromáticos ), controlam o transitar em sociedade, estipulam previamente preceitos de conduta e de utilização claramente articulados com estratégias de poder sobre os corpos e, muitas vezes, inculcam noções de pertencimento e cuidado para camuflar os cerceamentos que esgotam nosso agir social, nossa perform-atividade. Os enunciados dos anti-programas são impostos, introjetados, ativadores de passividade e diluidores relacionais e operam uma oposição formal com os programas performativos: enquanto os programas têm enunciados claros e concisos, sem adjetivos e com verbos no infinitivo, como conceitua Eleonora Fabião, os anti-programas circulam enunciados concisos, mas com verbos no imperativo 56 para conduzir uma organização: Deixe a esquerda livre, Mantenha-se à direita, É proibido sentar-se no chão do trem Esses enunciados que como falei não se limitam ao plano verbal podem exemplificar as considerações de Jacques Rancière (2009, p. 60) ao teorizar sobre os arranjos existentes entre os regimes político e estético. O filósofo vai falar, em outros termos, da manifestação de poderes contida na circulação de palavras nos meios sociais. Sobre tal aspecto, considera que: [ ] os enunciados se apropriam dos corpos e os desviam de sua destinação na medida em que não são corpos no sentido de organismos, mas quase-corpos, blocos de palavras circulando sem pai legítimo que os acompanhe até um destinatário autorizado. Por isso não produzem corpos coletivos. Antes, porém, introduzem nos corpos coletivos imaginárias linhas de fratura, de desincorporação (2009, p. 60). 56 Esta foi uma observação crucial da professora Eleonora Fabião na correção do ensaio que desenvolvi para sua disciplina. No trabalho, escrevi pela primeira vez sobre os anti-programas, mas ainda de modo nebuloso, chamando os planos de mobilidade duplamente de anti-programas e planos performadores. Ao utilizar esta última alcunha, acabei coligando genericamente o teor enunciativo dos planos de mobilidade ao dos programas performativos. Eleonora, então, frisou o modo imperativo do controle urbano como um contraponto ao modo indicativo, que se reflete no planejamento aberto à experimentação dos programas. Os programas performativos, assim como tenho pensando e experimentado, podem deslocar, na sua constante criação de corpos, a própria rigidez da noção enunciativa no espaço urbano.

91 94 Esses enunciados, que circulam como axiomáticos, desincorporam a coletividade, ou seja, retiram dos corpos transeuntes a dimensão gregária, anulando as subjetividades para reger a utilização dos espaços, camuflar o controle num ideário de organização, salientar a sensação de prestação de serviço e introjetar as ideias de bem comum e patrimônio: ações desincorporadoras que, a meu ver, caracterizam os planos de mobilidade urbana, fazendo-os funcionar como antiprogramas. Mas, que sentido teria o termo plano citado continuamente nesta dissertação? Gilles Deleuze (2002, p. 133), ao teorizar sobre a noção de corpo carnificada nos conceitos de Espinosa, sugere que a palavra plano, bem como a ideia de plano, tem carregado duas concepções, como diz, bem opostas. A primeira, o plano teológico, agrega toda organização que vem de cima e diz respeito a uma transcendência [ ] ou ainda organização de poder de uma sociedade. Esse tipo de plano, prossegue o filósofo, se refere sempre a formas e seus desenvolvimentos, a sujeitos e suas formações [ ] É, pois, um plano de organização e de desenvolvimento. A segunda concepção se refere ao plano de imanência, o qual: não dispõe de uma dimensão suplementar: o processo de composição deve ser captado por si mesmo, mediante aquilo que ele dá, naquilo que ele dá. É um plano de composição, e não de organização nem de desenvolvimento. [ ] Aqui, o plano será percebido como aquilo que ele nos faz perceber, passo a passo. (DELEUZE, 2002, p. 133). Tentando caminhar pelo meio da leitura deleuziana, podemos considerar que a noção de plano de mobilidade urbana reflete o caráter teológico do termo. Não apenas por, claramente, estar vinculado a uma organização de poderes na circulação urbana (quem planeja para quem transitar? Como e por onde transitar? Quem pode transitar? Quem pode planejar?), mas sobretudo por assujeitar os corpos às suas formatações de fluxo. Obedecendo estritamente como e por onde transitar, o cidadão assume os papéis que lhe cabem na passagem pela cidade, a pé ou via transportes coletivos: transeunte e usuário, títulos que escondem o esgotamento de possibilidades de relação no e com o espaço público. Em contraponto performativo a essa lógica teológica, desvinculando-se do desenvolvimento organizacional imposto pelos planos de mobilidade e injetando iniciativas políticas e modos de relação-produção extracotidianos, performers fermentam um plano de imanência, estimulando o espaço urbano e seus passantes a desenvolverem conjuntamente novas percepções. Performances realizadas em ruas e transportes coletivos em contextos de mobilidade urbana investem num agenciamento político que não objetiva simplesmente estruturar um sistema a ser partilhado, internalizado e repetido, como operam os anti-programas. Objetiva, pelo contrário, que performer e passantes negociem e construam incontáveis proposições: Como e por onde quero transitar? Como posso transitar? Como posso expressar meu corpo no corpo a corpo com a cidade? Como quero que

92 95 a cidade seja para transitar? Ou, para citar o projeto político da artista Eleonora Fabião, que cidade quero construir para viver? Como construir a cidade onde desejo viver?. Deleuze também desenvolve o sentido de plano em parceria com Guattari, no texto Máquina de Guerra : [ ]Tanto nas ciências nômades como nas ciências régias, encontraremos a existência de um plano, mas que de modo algum é o mesmo. Ao plano traçado diretamente sobre o solo do companheiro gótico opõe-se o plano métrico traçado sobre papel do arquiteto fora do canteiro. Ao plano de consistência ou de composição opõe-se um outro plano, que é de organização e de formação. Ao talhe das pedras por esquadrejamento opõe-se o talhe por painéis, que implica a ereção de um modelo a reproduzir (1997, p. 33). Associando o sentido da palavra plano expressa pelos filósofos à ideia de planos de mobilidade urbana, poderíamos considerá-los como extratos que trazem preceitos de organização e formatação. Sem querer engessar o movimento natural das palavras, sugiro que os planos de mobilidade, os anti-programas, pertencentes às ciências régias, organizam e formatam o espaço urbano, ao passo que os programas performativos, cuja formulação e prática produzem ciência na experimentação nomádica, conferem consistência às práticas artísticas em composição na cidade. A diferença elementar nesse extrato de coexistência é que os anti-programas, enquanto sistema formalizador, tentam conter os signos. Mas os programas vibram a necessidade dos signos retomarem a sua função de criar modos de presença do que está ausente e, para isso, fazem-se necessárias externalidades, algo que o sistema formal não alcança, já que se faz passar por completo e consistente (GADELHA, CAFEZEIRO e CHAITIN, 2014, p. 6), uma vez que [ ] algo sempre foge para as zonas de incerteza, por mais que os poderes pretendam assenhorear-se dos saberes condição imanente ao funcionamento do capitalismo (IDEM, IBIDEM, p. 12). Programas performativos, enunciados corpóreos-linguísticos que geram corpo-cidade, também podem promover a insurgência do que está presente mas opaco, eclodindo uma união de internalidades e externalidades através da produção de encontros, relações, conversas, movimentos Através da insurgência de modos outros de presença, fazendo-se valer das zonas de incerteza como motores de experimentação, porque convergem imediato em experimento; e põem em xeque a própria consistência do controle urbano, ao evidenciar seus mecanismos. Os anti-programas performativos, nesse movimento desincorporador e desengajante, coincidem com a própria instauração de cidade enquanto conceito articulador para governar a vida urbana. A cidade, de acordo com o filósofo Michel de Certeau (2007, p. 172), foi instaurada pelo discurso utópico e urbanístico. Utópico, pois a nomeação cidade, quase como um sujeito indeterminado absoluto, cria a necessidade de superar e articular as contradições nascidas da aglomeração urbana (idem). Ademais, a cidade, à maneira de um nome próprio, oferece [...] a

93 96 capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas Nesse lugar organizado por operações especulativas e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação (CERTEAU, 2007, p. 173). Gerindo a circulação social e eliminando ações desviantes, as instâncias de poder disseminam anti-programas performativos sob a tarjeta de planejamento urbano. Embora Certeau não utilize o termo plano de mobilidade, suas palavras podem exemplificá-lo quando analisa que a cidade é uma instância definida por uma tríplice operação: 1. a produção de um espaço próprio: a organização racional deve, portanto, recalcar todas as poluições físicas, mentais ou políticas que a comprometeriam; 2. estabelecer um não-tempo ou um sistema sincrônico, para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições: estratégicas científicas unívocas, possibilitadas pela redução de todos os dados, devem substituir as táticas dos usuários que astuciosamente jogam com as ocasiões e que, por esses acontecimentos-armadilhas, lapsos da visibilidade, reintroduzem por toda parte as opacidades da história; 3. enfim, a criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade... A tríplice operação pode arrematar o dissenso que sugiro entre os programas e antiprogramas: os primeiros constituem o campo que atua com poluições políticas através da ação de performers que astuciosamente jogam com as ocasiões, produzindo liminaridades espaçotemporais. Programas performativos, em linhas gerais, agem acontecimentos-armadilhas que conferem visibilidade às opacidades do sistema social, político, cultural, histórico; resistindo e aderindo aos anti-programas numa pulsação entre tensão e fluidez, adequabilidade e aceitabilidade, atrito e deslize: vibratilidade que negocia terrenos para a experimentação. Ao contrapor programas performativos e planos de mobilidade urbana, nomeando estes como anti-programas performativos, não pretendo estabelecer uma antonímia genérica. Antes, programas e anti-programas coexistem em termos de retroalimentação, assim como controle e dissenso. Ademais, por serem opostos é que justamente não se excluem, mas convivem conflituosamente, revelando a presença do que lhe é contrário. Quero dizer: os anti-programas tentam conter os programas, mas não podem esgotá-los. Assim como percebo, a experimentação de programas performativos se distancia desse interesse deliberado de negar, opor, contrariar, porque quer justamente esgarçar as padronizações, salientando suas inoperâncias e sobressaltando outras possibilidades de lidar com o espaço, outras possibilidades de ser com o espaço da cidade. Em linhas gerais, a experimentação de programas performativos em espaços públicos não simplesmente guerreia contra as sistematizações da cidade, mas também investe em desmecanizações e na expansão semântica da cidade. Esse movimento de esgarçar padronizações e expandir significados

94 97 pode ocorrer em múltiplas escalas, a depender das escolhas estéticas e projetos políticos de cada artista: variedade que acolhe apostas em energéticas de sutileza a destruição. O que talvez há de comum nessas múltiplas proposições é o gesto de dizer, redizer, desdizer e convocar modos de dizer coletivamente o que quer e o que pode a cidade. Na proposição de agenciamentos corpo a corpo com a cidade, performances urbanas podem investir em coletividade, aspecto que parece não condizer com o projeto de cidade em vigência nas grandes metrópoles e centros urbanos e isto se evidencia na mobilidade urbana. Segundo o geógrafo Milton Santos (2006, p. 222): a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as ideias. Tudo voa. Daí a ideia de desterritorialização. Desterritorialização é, frequentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização. O excesso de movimento na cidade, aparelhado pelos planos de mobilidade, acabam acentuando um paradoxo que incide, como se refere Milton Santos, num processo desterritorializante que acentua estranhamento. Mais adiante, comentando sobre a noção de copresença no espaço urbano, que foi amplamente desenvolvida por teóricos como Erving Goffman (cuja noção de performance foi citada na Plataforma de Acesso desta dissertação), o geógrafo discute o espaço da cidade como uma rede de vizinhança complexa, na qual a interdependência é práxis precisa que constitui uma mediação inevitável para o exercício dos papéis específicos de cada qual [ ]. Nas cidades, esse fenômeno é ainda mais evidente, já que pessoas desconhecidas entre si trabalham conjuntamente para alcançar, malgrado elas, resultados coletivos (SANTOS, 2006, p ). Se estendermos esse engendramento da cidade como uma malha coletiva em prol de resultados comuns ao funcionamento dos transportes coletivos, por exemplo, uma antítese parece se diagramar: o planejamento da mobilidade, ao reduzir o cidadão ao papel de usuário, tenta inibir manifestações dialógicas que podem levar pessoas desconhecidas entre si, partilhando do mesmo espaço da cidade num confinamento em trânsito, a praticarem o lugar como fala coletiva. Nesse ponto, me parece, localiza-se a força propulsora da experimentação de performances nesses ambientes de passagem: mexer na própria noção de cidade, resgatar, mesmo que seja por instantes e precariamente, a sensação da cidade como corpo coletivo. A mobilidade urbana, da forma como está sendo operacionalizada em centros urbanos como o Rio de Janeiro, garante que a cidade seja corpo coletivo no que tange somente a produtividade maquínica da geração de capital, como pontuou Milton Santos. Há em operação, dentro dessa lógica, um direito de ir e vir que só transfere contingentes de lugares, sem que se cuide de indivíduos nessa transposição.

95 98 As considerações do geógrafo podem corroborar com o que tenho dito sobre a domesticação arquitetada pelos anti-programas performativos: acostumar os corpos a aceitarem a utilização apenas transitória dos espaços públicos, a correria desmedida e o excesso de contingente, pois não se pode gastar tempo na cadeia produtiva da cidade. Em contraponto a essa lógica desterritorializante, cujo combustível é a circulação frenética e incessante, o geógrafo também analisa o fator velocidade para comentar que no futuro das cidades o tempo comandante será o de uma lentidão : Quem, na cidade, tem mobilidade e pode percorrê-la e esquadrinhá-la acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens, frequentemente prefabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. Os homens lentos, para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e ir descobrindo as fabulações. (SANTOS, 2006, p. 220). Milton Santos adjetiva como lentos especialmente os mais pobres, isto é, aqueles com excesso limitado aos recursos da cidade. Por serem diferentes, avalia o geógrafo, os pobres abrem um debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já presentes [ ] encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são passivos, como todas as demais pessoas. É na esfera comunicacional que eles, diferentemente das classes ditas superiores, são fortemente ativos. (SANTOS, 2006, p. 221). Se mantivermos o termo no seu sentido mais direto, o de pobreza financeira, podemos adjetivar os agentes lentos como repletos de uma disciplina criativa e reinventora: basta olharmos para os vendedores ambulantes abrindo debates ruidosos quando infringem as leis e fazem dos transportes coletivos espaços para circular a técnica do seu ofício com a finalidade de sobreviverem. Deslocando do conceito essa lógica puramente econômica, podemos também designar como lentos aqueles que refutam o estado cotidiano das coisas ao praticarem o espaço urbano, reinventando a cidade e disseminando diálogos fortemente ativos. Desse modo, é possível também atrelar a qualidade de lentidão conceituada pelo geógrafo aos performers que atuam na urbanidade, tendo em vista que seus trabalhos, ao engajarem outros modos de produção, relação e percepção, não apoiam deliberadamente a lógica espetaculosa da cidade. 57 Afinal, como afirmam as pesquisadoras Denise Espírito Santo e Júlia Lotufo, performances em contexto urbano, enquanto ações coletivas, atos de reinvenção do que está dado, 57 Evidentemente, não se excluem dessa consideração trabalhos em performance que encontram justamente em escalas mais espetaculares mecanismos para desmecanizar o controle urbano. Um exemplo, dentre tantos, pode ser a própria performance La Trindad, de Crack Rodriguez, já descrita nesta Linha.

96 99 de ruptura espaço-temporal, criações de novas ambiências, de investigação do corpo em suas diferentes interfaces, retomam e aprofundam o sentido da cidade enquanto lugar de experiência. (ESPÍRITO SANTO; LOTUFO, 2014, p. 80). Contrariamente às performances urbanas, [ ] a mobilidade pode significar uma forma de interdição e desestruturação da liberdade, em especial daquela liberdade que se manifesta como autonomia coletiva na produção do espaço (KAPP, 2012, p. 32), sobretudo quando o poder público impõe mudanças sem consulta popular que privilegiam interesses de mercado e setores específicos da cidade. Quando isso ocorre, a mobilidade urbana, além de funcionar como um projeto de alienação como defende a arquiteta Silke Kapp, já citada na Linha I funciona como projeto de segregação social, conforme indicarão os autores articulados na próxima Linha. Este caráter excludente da mobilidade pode ser associado ao projeto legado olímpico, que alterou o planejamento da cidade do Rio de Janeiro em prol dos Jogos Olímpicos de 2016.

97 100 LINHA IV: Notas sobre o lê gado olímpico O plano de mobilidade urbana da cidade do Rio de Janeiro compreende como sistema de transportes públicos : dois aeroportos internacionais, linhas de ônibus municipais e intermunicipais, barcas e porto, linhas de BRT, ramais de trem, três linhas de metrô, duas linhas de VLT, além do Teleférico do Alemão. 58 Em vigor atualmente está o que a prefeitura intitula por Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro, que, a partir de 2016, com as implementações urbanas do chamado legado olímpico, passou a orientar os investimentos públicos em transporte por dez anos. 59 Essa malha de transportes tem uma gerência público-privada, que se divide entre a administração da Prefeitura e de iniciativas privadas o metrô, por exemplo, foi entregue à iniciativa privada em regime de concessão em abril de 1998 (CAIAFA, 2013, p. 23). Atualmente, o metrô é administrado pela Invepar, que, como já mencionei na Linha I, também administra a avenida expressa Linha Amarela e o VLT. O Veículo Leve sobre Trilhos foi, junto com a Transolímpica e a construção da Linha IV do metrô, a principal reforma urbanística ligada à mobilidade urbana operacionalizada no período dos Jogos Olímpicos Rio Ao menos é a mais evidente dessas reformas, uma vez que modificou arquitetura e circulação no centro da cidade. O legado olímpico, amplamente difundido pela gestão do prefeito Eduardo Paes (PMDB) como slogan para o futuro da cidade, implementou as reformas supracitadas e expandiu o projeto de segregação social que já caracterizava a mobilidade urbana carioca. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik (2016) defende que houve na concretização desse projeto uma disparidade entre investimentos e prioridades. Ela coloca em pauta, por exemplo, os oito bilhões de reais que foram retirados do fundo de garantia dos servidores do Estado para a reestruturação da Zona Portuária. Se a reforma da área histórica do centro da cidade modernizou, por um lado, uma região outrora inóspita, acrescentando-lhe áreas de lazer e circulação, por outro lado a maior concentração de investimentos foi direcionada para a construção de torres empresariais que certamente não refletem um bem comum para os habitantes da cidade. A arquiteta ainda considera que os acordões entre capital público e privado ficaram ainda mais visíveis nas reformas do plano de mobilidade: a expansão dos corredores de BRT, exclusivamente para facilitar o acesso aos locais dos Jogos Olímpicos, concentrados na região da Barra da Tijuca, bairro abastado na Zona Oeste da cidade, não sinaliza um investimento na 58 Fonte: 59 Fonte:

98 101 mobilidade da cidade, mas na frente de expansão imobiliária, como ela diz, da Barra da Tijuca. Atestando sua tese, Raquel Rolnik contrapõe a ampliação dos corredores de transporte de massa na Barra com a região da Baixada Fluminense, que não entrou na rota do legado: quem circula pela Avenida Brasil, diariamente congestionada e carente de políticas públicas de transporte, vê explicitamente que as Olimpíadas não passaram por aquela parte da cidade, onde não há um trem modernoso como o VLT, mas placas acrílicas pintadas por crianças ao longo da via expressa, separando a favela do asfalto para um suposto isolamento acústico. Tal isolamento, argumentado pelos governantes como estratégia de cuidado para os moradores é evidentemente falacioso, pois os vidros só protegem acusticamente os automóveis dos tiros que, na favela, seguem matando as próprias crianças que os pintaram. Essa dualidade escancarada entre as reais necessidades da cidade e o destino dos investimentos impossibilita, segundo a autora, utilizarmos o termo legado. Quando mencionei acima que o legado olímpico tornou ainda mais hiperbólica a segregação entre os corredores urbanos da cidade, quis me referir às já explícitas políticas de distinção social via mobilidade. O disfarce mais evidente incide, sobretudo, no funcionamento do metrô: a linha 2, que liga a periferia à Zona Sul (Pavuna a Botafogo) simplesmente não funciona nos fins de semana. Funciona, mas pela metade, o que obriga seus usuários a fazerem uma baldeação a mais aos sábados e domingos, dias em que o tempo de espera se alarga. É como se a INVEPAR e a prefeitura dissessem em tom alto e empoeirado: nos dias em que são úteis os moradores da periferia podem vir à Zona Sul, mas não são bem-vindos para o lazer do fim de semana. A segregação via mobilidade, tão evidente no Rio de Janeiro, pode exemplificar o que a pesquisadora Denise Espírito Santo (2017), em diálogo com Milton Santos, 60 tem chamado de racismo ambiental. Trata-se de um termo em construção, mas que, no entanto, aponta para os episódios que cercam as transformações urbanísticas da cidade do Rio de Janeiro no presente em função de eventos internacionais que aprofundam o apartheid social (Fifa 2014 e Olimpíadas 2016), contribuindo em algumas situações para a explosão da violência em áreas periferizadas da cidade. A autora ainda descreve que o racismo ambiental é uma herança histórica, relacionada às transformações urbanísticas da capital fluminense desde o início do século XX, era do sempre citado Bota Abaixo, executado pelo Prefeito Pereira Passos. Neste período, continua a autora: eventos como a abertura da Avenida Central, o desmonte do Morro do Castelo, a abertura das novas conexões viárias para bairros até então distantes do centro da cidade, como Botafogo, Gávea e outros repercutiram no deslocamento das populações mais pobres para regiões que configurariam novos territórios de africanidades ou do emergente operariado carioca; essas localidades viriam a redesenhar os espaços sociais e de intensa produção econômica e cultural da cidade do Rio de Janeiro (ESPÍRITO SANTO, 2017). 60 Na construção do conceito, a autora também tem se inspirado nas performances urbanas da Cia. Étnica de dança, dirigida pela cineasta Carmen Luz.

99 102 Portanto, como expressa Espírito Santo, a mobilidade urbana carioca cultiva historicamente um projeto de distinção social que ganhou mais evidência nas mudanças operacionalizadas para as Olimpíadas, principalmente em projetos de alteração sem consulta popular que alienam a população, tendo em vista que alienar é tornar estrangeiro e impotente (KAPP, 2012, p. 38). Alienação que já se faz presente na própria edificação da mobilidade em grandes centros urbanos, tendo em vista que é, de acordo com a antropóloga Janice Caiafa (2013, p. 29), prototípico das cidades um movimento, um trânsito na emergência da cidade que vão constituí-la como lugar de circulação e produzir um espaço em constante movimento. Nesse vai e vem compulsivo, gera-se um nomadismo propriamente urbano em que mesmo os nativos se tornam, em alguma medida, estrangeiros por se exporem à diversidade incessantemente renovada no espaço da cidade (Idem, ibidem). No caso do Rio de Janeiro, seus nativos se tornaram ainda mais estrangeiros e impotentes, repito, por conta do legado olímpico. Exemplo contundente disso são as chamadas Troncal, linhas de ônibus que surgiram em substituição de mais de 50 linhas extintas em virtude de um projeto denominado racionalização : palavra que a prefeitura disseminou para ocultar aquele que, tendo em vista o histórico de apartheid via mobilidade na cidade, foi o principal intuito do projeto: a higienização de bairros da Zona Sul como preparação para os Jogos Olímpicos. Com as mudanças, moradores da Zona Norte e outras regiões periféricas da cidade tiveram o acesso direto à Zona Sul cortados pelas linhas troncais, as quais, ligando o Centro à Zona Sul, passaram a funcionar como segunda ou até terceira condução obrigatória. Na implementação do projeto estiveram em jogo, coligados, argumentos governamentais e empresariais. A prefeitura defendeu publicamente a racionalização com termos como eficiência, descongestionamento, fluidez e regularidade, tronco semântico que rapidamente contrastou não só com o cenário caótico instaurado pelas reformas estruturais que não ficaram prontas mesmo um ano após as Olimpíadas, mas também com as denúncias de demora e desconforto sinalizadas pelos usuários menos de um semestre após o projeto. 61 Em seu diagnóstico, a Prefeitura do Rio também defendeu, mesmo que nas entrelinhas, os interesses das empresas privadas que detêm as concessões públicas dos ônibus. O principal argumento é de que muitas linhas faziam percursos semelhantes e circulavam vazias, o que, segundo o governo, prejudicava o tráfego e desorganizava o sistema. 61 Fonte:

100 103 O secretário municipal de transportes da época, deputado Rafael Picciani, cujo sobrenome atualmente desvela um legado familiar de corrupção para a cidade, 62 chegou a afirmar: Seguiremos buscando uma melhor utilização das vias e um serviço de melhor qualidade para os usuários que passam a contar com mais opções de trajetos, serviços e integrações no deslocamento pela cidade. Argumento que corroborava com as notas da Prefeitura, que oficialmente publicava que a reorganização das linhas de ônibus via racionalização acabaria com a sobreposição dos trajetos e a disputa por passageiros nos pontos. Além disso, o sistema não terá uma grande quantidade de coletivos fazendo trajetos semelhantes e circulando abaixo da capacidade. 63 Os argumentos expostos, como se percebe, claramente defendiam os interesses empresariais ao justificarem a extinção de tantas linhas pelo fato dos coletivos circularem vazios e seguirem os mesmos percursos. Ademais, a própria palavra racionalização já soava antitética às promessas de ampliação de serviços, integrações e trajetos. Esses deslizes não se restringiram ao plano vocabular: além da ineficácia estrutural do projeto de racionalização (a nova gestão, por exemplo, já quer acabar com as linhas Troncal apenas dois anos após a implementação) 64, as reformas da mobilidade urbana impostas à população desde a preparação dos megaeventos esportivos, com todas os reajustes de tarifa, licitações homéricas e acordões, desembocaram, em 2017, na CPI dos ônibus, 65 acontecimento explicitador de que para além da alienação e da segregação social, a mobilidade urbana do Rio de Janeiro tem sido um projeto de corrupção. Mas voltemos às ineficácias e crimes salientados discretamente no plano vocabular. Voltemos às linhas Troncal. Elas começaram a circular no segundo semestre de 2015, justamente na época em que vim pela primeira vez à cidade para fazer a seleção de Mestrado do PPGAC- UFRJ. Sem utilizar celular e realizando meus trajetos pela cidade no boca a boca com os transeuntes minha primeira estratégia cartográfica, digamos, para conhecer esta cidade fui surpreendido com indicações de linhas inexistentes, além de desabafos de moradores e até mesmo motoristas e cobradores que não sabiam mais informar os itinerários. Uma senhora, na Lapa, certa vez me disse: antes tínhamos opções, mas agora você tem que procurar um ônibus Troncal. É uma direção, um lugar da cidade, Troncal? perguntei. Nem eu que sou daqui sei. Troncal, assim, parecia sinônimo de transtorno e se misturava na paisagem urbana aos entulhos pré-olímpicos e também às escassas placas de orientação de trânsito via ônibus. Quando iniciei o Mestrado e passei a morar no Rio de Janeiro, em 2016, tornando-me então um estrangeiro 62 Fonte: 63 Fontes dos dados: e 64 Fonte: 65 Para informações pormenorizadas, consultar:

101 104 nativo, percebi que o Troncal seguia como um percalço, não só itinerário, mas semântico. Afinal, se não é um lugar, o que significaria a palavra Troncal? Para friccionar mais indagações, formulei a palestra-performance que descrevo a seguir. Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro Programa: Em estações, paradas e no interior de transportes coletivos, palestrar sobre a origem etimológica da palavra troncal, termo utilizado para nomear, a partir de 2015, novas linhas de ônibus que foram implementadas em decorrência da extinção de outras 50, como parte do projeto urbanístico para a realização dos Jogos Olímpicos Rio Vestir traje social que tipifique a imagem de um palestrante. Utilizar régua e flipchart ou um conjunto de cartazes soltos, pedindo ajuda para que passageiros e transeuntes segurem as folhas. Palestrando primeiramente na Estação Central do Brasil, 66 também experimentei a performance em calçadas e paradas de ônibus do Centro e de Botafogo, além de corredores de ônibus e de metrô. As palestras, que duravam aproximadamente 8 minutos, eram constituídas pelo cumprimento de abertura e texto que transcrevo adiante: Peço licença para incomodar o silêncio da sua espera ou viagem. Se alguém se incomodar com a altura da minha voz, é só sinalizar que eu paro. Mas se apenas uma pessoa se interessar pela palestra, é só sinalizar que eu me aproximo um pouco mais. Agradeço muito se puderem e se quiserem me ouvir por alguns instantes. Saudações às ilustres e aos ilustres usuárias e usuários dos transportes da cidade do Rio de Janeiro! Estou aqui representando a Blefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente a Paes Palhão Mobilidade e Comunicação Limitadas, uma empresa que se interessa em desvendar alguns fenômenos relativos ao uso da língua portuguesa nas cidades do Brasil. O principal objetivo desta palestra é esclarecer um fenômeno linguístico que vem angustiando os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo os usuários dos transportes coletivos: TRONCAL, a palavra que vem dominando o cotidiano carioca. 66 A primeira realização de Troncal integrou o vídeo Piloto para um trem transcultural, filmado pelo cineasta italiano Michele Cinque, com produção de Cecília Dinardi e curadoria dos professores Alessandra Vanucci e Charles Feitosa. O vídeo, que documenta ações performativas no cotidiano de superlotação dos trens do Rio de Janeiro, foi realizado no âmbito do projeto Lab Creative, patrocinado pelo Festival Multiplicidade e pelo People s palace projects. Assista em:

102 105 O que significa a palavra TRONCAL? Alguém aqui saberia e/ou poderia me responder? Mas suponho que todos estejam bastante familiarizados com a existência dessa palavra, afinal todos têm utilizado ônibus nomeados por TRONCAL. Pois, bem, vim aqui para dar-lhes a informação sobre a origem dessa palavra. Para isso, precisamos revisar como se dá a formação de palavras na língua portuguesa. Dentre os inúmeros processos de formação de palavras, aquele que nos interessa é a derivação. Como a palavra já aciona, deriv-ação é a ação de derivar, ou seja, formar palavras a partir de outras. Há três partes principais para a formação de palavras por derivação: nós temos o radical, que corresponde a palavra primitiva, originária, e nós temos os afixos. O prefixo, que é adicionado antes do radical; e o sufixo, que é acrescentado após o radical. Ficou claro? Vai ficar ainda mais claro quando analisarmos a palavra troncal. Em troncal nós temos tronc-, que é o radical, oriundo do latim primitivo, significando tronco. Tronco, como nós sabemos, é a parte que espalha todos os galhos e sustenta toda a copa, possibilitando a comunicação entre as partes da árvore. Troncal, nesse sentido, é adotado pela Blefeitura do Rio de Janeiro para representar um sistema de transportes que consegue articular toda a cidade. Vejamos um exemplo: Troncal corresponde ao tronco do Rio de Janeiro No caso, são 10 troncos, 10 troncais, porque estamos na cidade farta, maravilhosa e olímpica, a cidade que recebe os principais eventos econômicos, sociais e culturais do planeta. Mas será que isso corresponde ao uso real da palavra no Rio? Para ficar ainda mais evidente esta explicação e o uso da palavra no Rio de Janeiro, vamos analisar o sufixo -al, o qual também vem do latim primitivo, de -allis, que carrega o significado de coletividade (como em grupal) ou ainda características climáticas como ocorre em tropical. Porém, não posso negar-lhes a informação de que -al também está presente em vários termos que trazem em si uma carga semântica bastante negativa, isto é, palavras que têm um sentido pesado, nebuloso. Exemplos: mal, banal, ilegal, imoral, boçal, sacal, curral. É neste tronco, nesta família de palavras que troncal está vinculada aqui no Rio de Janeiro. Vejamos um exemplo que comprova essa familiaridade: Um prefeito boçal impôs uma mudança sacal, fingindo ser banal, que nos trouxe um baita mal. Seria o troncal imoral? Percebam que -al está presente em todos esses termos exemplificando o significado de Troncal. Como um projeto de radical racionalização, o Troncal vem ganhando força nas ruas do Rio de Janeiro, de modo que passa a modificar outras palavras. Os verbos ocultar e camuflar, por

103 106 exemplo, vão, modificados pelo uso, ganhando as formas de ocultal e camuflal. Vou explicar o porquê: o Troncal, hoje a entidade de maior destaque no transporte coletivo carioca, existe para ocultal ou camuflal como vocês preferirem o sumiço de algumas desaparecidas desta cidade. Neste momento, agradecendo a presença e a escuta dos senhores e senhoras e quebrando um pouco a formalidade de meu trabalho, gostaria que fizéssemos um minuto de silêncio por essas desaparecidas, as quais faço questão de nomear: 119, 121, 123, 125, 126, 127, 128, 132, 136, 143, 154, 155, 157, 161, 162, 170, 172, 173, 177, 178, 180, 183, 184, 190 (não é a polícia), 305, 314, 317, 318, 332, 354, 360, 382, 405, 420, 421, 423, 425, 438, 501, 502, 503, 504, 505, 511, 512, 535, 569, 570, 573, 574 e 957, ufal! Mais de 50 linhas de ônibus desaparecidas e trocadas, muitas delas, pelo troncal. Ou seja, todos nós, nesta cidade, mandados para o troncal. Trata-se de um troncal cinquental, nesta cidade tropical! Antes de me despedir, quero deixar de antemão algumas informações. Já existem alguns projetos em trâmite para expansão do uso da palavra troncal. Estejam atentos para a futura alteração dos nomes de alguns serviços públicos da cidade do Rio de Janeiro: o Teatro Municipal, por exemplo, não demora muito, será chamado de Teatro Troncal; a Central de Atendimento da Blefeitura, não demora muito, assumirá, definitivamente, o nome de Troncal de Atendimento. Além disso, dada a influência que esta cidade, Rio de Janeiro, exerce sobre o país, alguns linguistas já preveem que em 2025, ou seja, 10 anos após a aparição do troncal, o Brasil ganhará mundialmente a alcunha de país troncal. Eu peço que, gentilmente, repassem essas informações e me despeço deixando um novo lema possível para nossa cidade: Blefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: o seu direito de ir e vir mandados para o troncal! As reações dos passageiros, transeuntes e até trabalhadores da mobilidade urbana foram das mais diversas. Houve quem acreditasse piamente que eu era um enviado da Prefeitura. Outros, claro, identificavam o teor parodístico e liam a performance como protesto. Essas falas, que transcrevo reunidas abaixo, demonstram o quanto a mobilidade urbana da cidade parece desgarrada de um teor de concidadania, na medida em que a informação pertinente ao projeto urbano é negligenciada: Esse negócio de troncal é só para racionalizar quem não mora na Zona Sul, né? Isso sim! Toma aqui 5 reais para beber água e fazer mais palestras. Desculpa, mas chegou o meu ponto. Como posso ouvir o final? Mas, se você é da Prefeitura, por quê o segurança te expulsou da Central? Agora vou ter que ir contigo até a calçada e chegar atrasada em casa! Só saio daqui quando

104 107 aprender o que danado é troncal! Poxa, cara! Finalmente vocês da Prefeitura vieram aos ônibus explicar isso tudo. Tá achando que é fácil ser trocador e nem saber explicar o próprio nome do ônibus?! Esse negócio de Troncal complicou até pra gente. Vocês da Prefeitura consultaram quem? Bem, eu só posso responder pela Blefeitura. Ele é meu vizinho! Agora eu sei o que ele faz da vida. De onde é essa empresa? Paes Palhão?! Não posso mais segurar os cartazes, meu ônibus chegou Ah! Eu posso esperar pelo próximo. Sobe na calçada, o motorista quase te atropelou de propósito! Aqui no metrô não pode fazer isso. Isso? Conversar? Protestar! Mas não é um protesto. Isso e isso. Isso ou isso? Eu não sei mais andar na minha cidade, eles arrancaram a cidade da gente. Eu queria saber por quê que eles meteram esse negócio de troncal e a civilização não sabe o significado original?! Em 2017, a cidade, que estava troncal, passou a ser Universal

105 108 Frames do vídeo Piloto para um trem transcultural, fotos de Michele Cinque. Transporte Olímpico Assim como o Troncal, as dualidades em trânsito pelo VLT também impulsionaram minha prática cartográfica-performativa. Durante uma reunião de orientação, precisamente no fim do primeiro semestre de 2016, às vésperas das Olimpíadas, a professora Eleonora sugeriu que eu não desperdiçasse na pesquisa a oportunidade de falar sobre os Jogos, tendo em vista todas as alterações relativas à mobilidade urbana. Naquele ponto, na verdade, minha pesquisa de dissertação estava focada exclusivamente nos transportes coletivos. Relatei resumidamente para Eleonora as experimentações da performance Troncal e confessei o desejo de fazer uma ação referente ao VLT. Descrevi minha experiência como passageiro do trem, ressaltando o fator velocidade como o principal assunto dos comentários dos demais passageiros e transeuntes pela cidade. A baixa velocidade do trem, que segue um protocolo mundial, tendo em vista sua proximidade às calçadas, parece, no Rio de Janeiro, ser triplicada. A execução do VLT, que custou mais de um bilhão de reais, não diminuiu o número de outros transportes coletivos e a circulação no Centro da cidade ficou ainda mais caótica, sendo preciso que motocicletas guiem o trem nos trilhos, buzinando para evitar que pedestres sejam atropelados. 67 Se eu for andando depressa do lado, ainda chego mais 67 A frequência das motocicletas diminuiu consideravelmente em 2017, mas ainda é comum ouvir as buzinas estridentes do trem para os pedestres que cruzam o trilho a todo momento. Pedestres que, em sua maioria, nem utilizam o serviço do trem. Segundo pesquisa veiculada pela Folha de São Paulo, após um ano de sua inauguração, o maior número de usuários do VLT se refere a executivos que utilizam o trem para almoçar e depois voltar para o trabalho. Além dos

106 109 rápido, brinquei para Eleonora, que me disparou uma proposição: você poderia bater corrida com o VLT. Assim se originou a performance Transporte Olímpico, desenvolvida a partir da proposição de Eleonora Fabião, que também me presenteou com o título do trabalho. Programa: Vestindo uma roupa de atividade física, utilizar a estrutura de uma parada de VLT como barra de treinamento. Alongar e aquecer o corpo numa sequência de exercícios realizada no ponto, entre passantes, árvores, placas e usuários do trem. Posicionar-se ao lado do veículo, na calçada, e apostar uma corrida com ele. Correr junto com o VLT, parando e retomando a corrida conforme as paragens e retomadas do veículo. Ultrapassar e ser ultrapassado. Duração: 650 metros e mais alguns minutos Trajando short curto, par de tênis e camisa vermelha de proteção UV, estou utilizando a área da Estação Cinelândia do VLT como academia. Após uma sequência de exercícios, como polichinelos, alongo meu corpo nas barras de ferro e vidro; no chão, flexões de marinheiro, que são cadenciadas pelo sino de um dos trens prestes a seguir; árvores como apoio para esticar os membros do corpo; corridas rápidas entre transeuntes e futuros passageiros; meio-fio da parada como estepe. Toda essa ginástica está sendo mirada por seguranças do Centro Cultural da Justiça Federal, passantes, turistas, policiais do Centro Presente, ciclistas, trabalhadores de carga e vendedores de pipoca e picolé. A trilha sonora, além de toda a profusão de vozes que compõe a Cinelândia e dos piiiiii e blem blem do VLT, é um funk punkadão que, de alguma banca de jornal, grita e vai e vai e vai e vai! Ô, amigão, só evitar de fazer isso aí, tá? Adverte o funcionário do VLT depois que fiz o último exercício: flexões nos trilhos. Agacho-me ao chão, ao lado do trem, em posição de largada. Uma garota aperta o botão para embarcar. Agora não dá mais, diz uma passageira dentro do veículo. Pontualidade britânica! Exclama outra. O VLT parte e inicio minha corrida. Dentro do transporte, as pessoas comentam a ação. Olha lá! Ele tá correndo com o VLT. Tá indo rápido, olha lá! (Próxima parada: Carioca. Desembarque pelo lado direito). Ah, ele não pega! (Next stop: Carioca. Exit on the right). É cada coisa, viu? Parece doido. E ele tá tranquilo, ó, í. Vai pra maratona! Veja só! Todas essas conversas trafegam sob velocidade média de 15 km/h. Do lado de fora, não posso escutar o que dizem, porém vejo e vivo a engrenagem da cidade. Enquanto sigo à risca as paradas e executivos, o veículo é bastante utilizado para conexão entre o Centro da cidade e o Aeroporto Santos Dumont. Esses dados demonstram, a meu ver, o legado em tráfego via transporte: a seleção de público na cidade. Fonte dos dados:

107 110 acelerações do veículo, disputo o pouco espaço da calçada, mantendo-me atento para não atropelar ninguém. Meu Deus do céu Quem tiver na rua vai pensar que ele é maluco! Em vez de empregar essa energia toda em coisa mais útil, né? Quem tiver na rua vai dizer: ih, sai da frente, vem um maluco aí! Ele vai correr com o trem? Ele tá apostando corrida com o trem, é isso mesmo! Aposto que ele vai ficar é tonto na rua. Mas ele ganha? Duvido! O shortinho dele tá demais! Mas é fácil mesmo, ele para toda hora! É o trânsito, né? Tem hora que ele fica paraaaado. E também pelo semáforo! Ele vai ficar mais magrinho ainda! Ih quero ver se ele vai atravessar a Presidente Vargas! O motoqueiro da Invepar que guia o VLT começa a buzinar e sorrir: bora! Bora! A condutora prende o sorriso, mas solta a buzina. Policiais e ambulantes dominam a calçada, me empurrando para a beira do trilho. Ao passo que uma passageira ironiza: se morar em Bangu é ótimo, porque ele já vai pela Avenida Brasil, né? Fazendo exercício, é uma beleza! Olha, excelente! Meu Deus do céu! Esse Rio de Janeiro... Olha lá! Ele já cansado e tá mandando parar. Gente do céu... (Estamos indo para a 7 de setembro. Desembarque pelo lado direito. We are going to the 7 de setembro. Exit on the right). Aceno para o motoqueiro. Bem doido, né? Ai, já valeu pelo dia! Ele deve ser de alguma maratona. Isso é maluquice! Ó, lá, ele lá na frente! Ele ainda chega primeiro que o VLT. Cadê ele? Eu, hein, tá doido?! Mas ele consegue acompanhar, hein? Mas nem sempre ele tá passando, às vezes ele tá ficando. Mas é isso aí que ele quer, acompanhar. Atenção! A partir de 05/09/16: usuário sujeito à multa no valor de R$ 170, 00 (cento e setenta reais) pelo não pagamento de passagem no VLT, diz uma placa de advertência em uma das paradas do VLT. Transporte público não deve dá lucro, me diz uma frase pichada num fiteiro da Cinelândia assim que termino a ação.

108 111 Frames do vídeo Transporte Olímpico, filmado por Maria Palmeiro. Trecho disponível em: htps://vimeo.com/ Transporte Olímpico #2: revezamento Em 2017, no intuito de discutir os disparates que acompanham o termo legado olímpico e entendendo o VLT como a obra mais aparente desse projeto, formulei uma versão revezamento para a corrida solo, convocando meus amigos Andrêas Gatto, Gunnar Borges e Maria Palmeiro, que gentilmente aceitaram colaborar neste trabalho. Programa: Quatro performers, vestidos como atletas, utilizam a área de uma das paradas do VLT como academia de ginástica. Na parte da frente de suas camisas está inscrito, como folha de identificação de maratona, Lê gado olímpico. Nas costas de cada um, com fonte tipográfica dos Jogos Olímpicos, estão descritos alguns dos crimes olímpicos cometidos pelo Estado: 1) Operação Hashtag: Valdir Pereira da Rocha, morto por linchamento; 2) Ciclovia Tim Maia: 44 milhões, 20 metros, 2 mortos; 3) Investimentos: 40 bilhões, 11 operários mortos; 4) Cidade olímpica: 17 dias de jogos, 31 mortos, 95 baleados.

109 112 Após os exercícios, três performers embarcam no VLT, validando o cartão de tarifa. O quarto corre do lado de fora, disputando com o trem. A cada estação, um performer desembarca para correr e o anterior embarca. Seguem nesse revezamento, sempre validando seus cartões de passagem. Duração: aproximadamente 3 km e alguns minutos. Desde quando vocês fazem esse protesto? (aproximou-se uma funcionária do VLT, enquanto alongávamos nossos corpos na barra de ferro e vidro do ponto). Protesto?! Só vamos correr. Vocês são atletas? Nós somos performers. Ah Olha, só cuidado para não quebrar o vidro, está bem? Aquelas duas barras ali, nas rampas do final do ponto, foram quebradas na última manifestação. O pessoal corre da polícia quebrando tudo. Quando me posicionei ao lado do VLT para apostar a corrida, os demais performers embarcaram no veículo, disparando a confusão da funcionária: Ué?! Mas vocês não vão correr? Por que estão embarcando no VLT? Só você vai correr? Não deu tempo para responder, simplesmente corri. Ah! você consegue pegar na maior moleza, gritou um homem, na calçada, ao me ver acelerar ao lado do VLT. Dois mortos? Mas foi bem mais que isso, hein? Disse uma passageira ao ler a camisa de Gunnar. É maratona fora de época? Perguntou um ambulante ao Andrêas. O legado não pode parar? Perguntou um passageiro a Maria, ao vê-la reembarcar no trem. - O lê gado não pode parar.

110 113 Transporte Olímpico: revezamento. Fotos de Thiago Lacaz para o livro Por uma mobilidade performativa (2017).

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113 116 Estação de Transferência III: Pontos de Intermitência No fluxo contínuo entre as Linhas III e IV, propus que os planos de mobilidade urbana, como anti-programas performativos que são, sistematizam a cidade como um campo de controle, onde molduras comportamentais minimizam possibilidades de concidadania. Em meio a essas sistematizações, a mobilidade urbana pode funcionar como um projeto de distinção social aspecto suscitado por Denise Espírito Santo em diálogo Milton Santos e examinado acima nas notas sobre o lê gado olímpico. Em contrafluxo a essas lógicas, artistas da performance agem como provocadores de dissenso, negociando aberturas nos espaços da cidade, vivenciando-a como campo de experimentação. Nesse movimento imbricatório entre arte da performance e mobilidade urbana, é possível associar a ação de performers no espaço urbano à metáfora que o filósofo Georges Didi- Huberman (2011, p. 127) constrói sobre os vaga-lumes: [ ] O valor da experiência caiu de cotação, mas cabe somente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à nova beleza de uma coreografia, de uma invenção de formas. Não assume a imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência de vaga-lume, a mesma potência, cada vez que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver? (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 127). Na cidade, cenário da impermanência constante e da circulação imparável, artistas da performance agenciam imagens em movimento que podem funcionar como lampejos de sobrevivência da coisa política em trânsito na cidade. Lampejos que provocam desaceleração, perguntas, palavras, imagens, conversas e toda sorte de (re)ações no chão do urbano contemporâneo, que é perpetrado por violência, consumo e pressa. Enquanto o planejamento urbano confere aos corpos, em filas de espera ou em compartimentos em trânsito, a imagem de um gado passivamente deslocado pelas esteiras de asfalto das cidades, artistas da performance podem iluminar pontos de intermitência, mobilizando um caráter de multidão. O controle urbano desincorpora a pluralidade própria à coletividade, ou seja, moldura os corpos para que permaneçam como um coro ordenado e obediente, tomando de assalto o direito de ir e vir, transmutando-o numa maquinaria de mobilidade em que a massa é a composição córica de ordem. Performances urbanas, por outro lado, não guiam para manutenção de hábitos e lógicas plenas, mas motorizam a coletividade fazendo eclodir práticas urbanas de concidadania. No fluxo entre controle e dissenso, anti-programas e programas performativos, sistematizações e experimentações, talvez possamos analisar a circulação urbana por meio de uma perspectiva córica para além da coreográfica. Para isso, a seguir, na Linha V, irei propor uma leitura

114 dos conceitos de Massa e Multidão (NEGRI e HARDT, 2012) como coros em trânsito na pólis contemporânea. 117

115 118 Linha V Massa e m u l t i d ã o: coros em performance na pólis contemporânea Na área de transferência entre as linhas IV e V, comentei como a mobilidade urbana pode massificar a pluralidade adjacente à cidade ao enquadrar os transeuntes em preceitos comportamentais que engessam sua circulação como uma massa córica. Por outro lado, performances urbanas, ao investirem em práticas gregárias e dissensuais, podem funcionar como potencializadoras de multidão. Através desta proposição, levando em consideração as ruas e os transportes coletivos como escopo de observação e campo de experimentação ao longo desta dissertação, quero sugerir que a movimentação urbana se dá, paralelamente ao aspecto coreográfico, alternando entre polícia controladora e política disruptiva, sob uma dimensão córica. De saída, podemos considerar que há na circulação dos corpos na pólis contemporânea pulsando entre as normatizações e as insurgências de novos usos do espaço desenhados por experimentações diversas agenciamentos que instauram dois comportamentos cinético-políticos fundamentais no vai e vem das cidades: a massa e a multidão. Antes de embarcarmos propriamente na leitura dos conceitos de massa e multidão sob uma perspectiva córica, cabe reiterar, em linhas gerais, como a própria disposição arquitetônica da cidade fomenta chão para o movimento controlado e para as práticas desviantes, o que pode ser fundamentado nas ideias de estriado e liso, conforme propostas por Deleuze e Guattari. O estriamento, segundo os filósofos, é uma característica capital do espaço sedentário, que [ ] estriado, por muros, cercados e caminhos entre os cercados, é radicalmente oposto ao espaço nômade, o qual [...] é liso, marcado apenas por traços que se apagam e se deslocam com o trajeto (pois) o nômade se distribui num espaço liso, ele ocupa, habita, mantém esse espaço, e aí reside seu princípio territorial (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 43). Partindo dessas definições, podemos considerar que em ruas e em transportes há cerc(e)amentos dos mais variados que controlam a movimentação na cidade conforme já delineado nas Linhas anteriores e restringem a ideia de circulação ao trânsito permanente que, por seu turno, garante à cidade sua engrenagem veloz e produtiva. Esta abordagem, que descreve o estriamento do espaço urbano e sua consequente produção de espaço sedentário, não é estanque: Deleuze e Guattari (1997) advertem, por exemplo, que é inoperante estabelecer definições estagnadas ao analisar os espaços, pois liso e estriado ocorrem continuadamente e simultaneamente, por vezes complementarmente, de acordo com diversos e sucessivos movimentos. Nesse sentido, o estriado pode ser transmutado em liso, bem como a lisura de um espaço pode ser reconvertida em

116 119 estriamento. Sem esquecer, é claro, da ilusória mobilidade autônoma dos projetos urbanísticos que, estriados, dão a ilusão de liso. Ora, se o planejamento da mobilidade inculca aos corpos uma suposta autonomia em espaços articuladamente estriados como as ruas e os transportes, concomitantemente ocorrem na cidade ações desviantes, dissensuais que resistem aos traçados e coreografias planejadas. Há, portanto, iniciativas nomádicas que cartografam o urbano, transitando, habitando, ocupando e, mais do que isso, reinventando modos de trânsito, habitação e ocupação. Iniciativas motorizadas por uma vontade de liso, que, por seu turno, ignora as estrias, alisando-as. Neste ponto, estrategicamente na última Linha de proposição teórica desta pesquisa, retomo os agentes nomádicos (cartográficos, corpográficos) citados na Plataforma de Acesso sem Catracas a fim de desembocar na leitura de massa e multidão como coros: ciclistas, skatistas, carroceiros, vendedores ambulantes, pregadores, pedintes, músicos, circenses e artistas da performance. 68 Cada qual com suas respectivas especificidades de circulação e sobrevivência, vibram performatividade urbana em ruas e transportes coletivos. Atritando e deslizando seus corpos na cidade ou colocando em pauta negociações com outros transeuntes, esses agentes solavancam expressões dissonantes e, por isso, trazem à tona a polissemia das singularidades. Em outros termos, não só se distinguem da movimentação em massa produzida pelo estriamento, alisando a rigidez retilínea do controle, como também podem despertar irrupções de multidão, convocando transeuntes e passageiros a diluírem conjuntamente a postura uníssona. Esquematicamente, teríamos lado a lado na circulação urbana uma massa correlata a um coro uníssono, apolíneo, concentrado; e possibilidades de multidão em relação sinonímica a um coro dissonante, dionisíaco, acentrado. Mas, afinal, que sentidos de coralidade, massa e multidão estariam em cena nesta leitura sobre a mobilidade urbana? Nietzsche (1999), em "O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e pessimismo", construindo um apanhado crítico da história da arte a partir da teorização sobre o gênero dramático grego em comparação às produções de seu tempo, relaciona a origem da tragédia com o coro. Primeiramente, o filósofo expõe que é crucial estabelecer que o "contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco" (p. 27). Resumidamente, ele aponta que na figura dos dois deuses da arte reside, em constantes contraposição e complementaridade, modos de construção estética que se verificam, dentre outros campos, na revisão do coro enquanto emparelhamento da origem trágica. Ao teor apolíneo, vincularia-se uma ideia de figuração onírica e centramento. Já na "lírica dionisíaca do coro" aspectos como mobilidade e dinâmica do discurso operariam um caráter 68 Evidentemente, outras ações e outros agentes podem ser relacionados conforme o escopo de observação e análise que se pretenda.

117 120 mais plural. O coro, portanto, seria da ordem do dionisíaco, sendo "domesticado" no decorrer do tempo por forças políticas específicas. Segundo o filósofo, foram recorrentes as acepções políticas que liam o coro como "espectador ideal" que deveria "representar o povo em face da região principesca da cena" (1999, p. 52). Quando resumido a uma representação do povo, a ideia de coro assumia uma posição uniforme, o que, para Nietzsche, atesta uma concepção do controle político. Desviando-se dessa abordagem, o filósofo recorre aos postulados de A. W. Schlegel, o qual "nos aconselha a encarar o coro, em certa medida, como a suma e o extrato da multidão de espectadores, como o 'espectador ideal'. (apud NIETZSCHE, 1999, p. 52). Afastando o risco de inalcance atrelado ao termo "ideal", o filósofo acrescenta a essa ideia a noção do coro como "vedor do mundo, visionário da cena" (IDEM, p. 58), estendendo aos espectadores da tragédia a função de coro: ser agente múltiplo que vê e vive a história, não apenas representado por um agrupamento, mas refletido numa "coureta" de vozes múltiplas. A proposição nietzcheana a respeito das "abordagens" apolínea e dionisíaca que poderiam ser atribuídas ao coro, pode corroborar para estabelecer uma tessitura associativa entre a semântica da palavra coro e os conceitos de massa e de multidão. Antes, porém, faz-se necessário escolher uma ancoragem teórica desses termos, levando em consideração que eles aglutinam inúmeras conceituações, geralmente inseridas numa tradição de estudos marxistas, através dos quais diversos autores teorizam sobre a cadeia produtiva do capital em consonância a um campo morfossintático vasto: de trabalho a exploração, de movimentos a migrações. Aqui, recorro aos sentidos de massa e de multidão desenvolvidos por Antonio Negri, individualmente, e também em parceria com Michael Hardt, transportando-os para relações com a mobilidade urbana. Primeiramente, o conceito de massa, coligado a um sentido de exploração, existe como multiplicação indefinida dos indivíduos, representando, portanto, um conceito de medida [...] construído pela política econômica do trabalho com esta finalidade. Nesse sentido, a massa é o correlato do capital (NEGRI, 2004, p. 16). Podemos apreender da ideia de massa, assim, uma imagem de corpos em amontoamento transitório com fins de produção, como um conjunto sem organização clara caracterizado pela mecanicidade. 69 Negri (2004, p. 18) fortalece esta leitura quando localiza o termo Massa no mesmo tronco semântico de povo e plebe, palavras, expõe ele, que têm sido frequentemente empregadas para nomear uma força social irracional e passiva, violenta e perigosa que, justamente por isto, é 69 Transponho aqui observação da professora Carmem Gadelha ao corrigir o artigo que produzi para sua disciplina O trágico e a cena contemporânea (PPGAC-UFRJ, ), no qual comecei a elaborar as questões discutidas nesta Linha V: Essa organização para fins de disciplina de trabalho e produtividade não faz da massa um organismo consciente de si; mas ela pode tornar-se, ao forjar seu projeto de organização proletária. Apesar de grande interesse por esse desdobramento do tema, aqui não pretendo desenvolver a discussão de massa como um conceito da tradição das teorias trabalhistas, mas transportá-lo para pensar a mobilidade urbana.

118 121 facilmente manipulável. Ademais, como afirma Peter Pál Pelbart (2015, p. 23), a massa é homogênea, compacta, segue um líder que a representa, tem um único rumo, uma única palavra de ordem. Entrecruzando esses dois pensamentos, podemos identificar um exemplo concreto de massa no modo como se organiza a coralidade que se move nas ruas e nos transportes coletivos: amontoamento de corpos indiferentes uns aos outros, disputando espaços em trânsito numa para falar em termos lepeckianos passividade hiperativa, cuja correria obediente têm figurado como retrato imediato da pólis contemporânea, o meio urbano. Se a massa é, como foi dito, um conceito de medida, visto que configura uma multiplicação indefinida dos indivíduos, desse modo, relativa à unidade passiva, por outro lado a multidão constitui um conceito de classe, porque está continuadamente em movimento e é constantemente produtiva de singularidades que se encontram em cooperação para além do mensurável (NEGRI, 2004, p. 16). A multidão, por conseguinte, é algo organizado mas sem centro definidor, ou seja, constitui um ator social ativo, uma multiplicidade que age (idem, ibid.), confluindo como uma potência de auto-organização em práticas de dialogismo, negociação e experimentação. Nessa confluência, o nome da multidão é, a um só tempo, sujeito e produto da prática coletiva (NEGRI, 2004, p. 20), formando uma carne produtiva comum da multidão, como defendem Hardt e Negri (2012, p. 247), carne que pode encontrar outro modo de composição do corpo político global a partir da simbiose entre as produções do comum e da subjetividade. Assim como Hardt e Negri recorrem às origens dos termos para verificar suas ancoragens teóricas, o sociólogo italiano Paolo Virno revisa os postulados de Espinosa e Thomas Hobbes para verificar como o termo multidão foi rejeitado ao longo dos séculos em termos de governança. Em sua concepção de Estado, Hobbes difundia que a multidão seria contrária à noção de povo e, por isso, à vitalidade do Estado, já que não se dobraria a uma obediência geral, mas preservaria sua diversidade e autonomia. Categoricamente, Hobbes (1642) conclamava: Os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, são a multidão contra o povo (apud VIRNO, 2003, p. 5). Contrário a este pensamento, Espinosa (apud VIRNO, 2003, p. 4) expunha que: a multidão representa uma pluralidade que persiste como tal na cena pública, na ação coletiva, na atenção dos assuntos comuns, sem convergir no Uno, sem evaporar-se em um movimento centrípeto. A multidão é a forma de existência política e social dos muitos enquanto muitos: forma permanente, não episódica nem intersticial. (VIRNO, 2003, p. 4) Enquanto modo de ser dos muitos, a multidão, para Virno, pode ser o conceito renorteador para a analisar a multiplicidade do contexto político contemporâneo, uma vez que implica no significado de pluralidade, que é, literalmente, o ser-muitos, uma forma duradoura de existência social e política, contraposta à unidade coesiva do povo. Pois bem, a multidão consiste em uma rede de indivíduos; os muitos são numerosas singularidades (VIRNO, 2003, p. 44, grifos originais).

119 122 Por meio de um diálogo entre os conceitos até aqui dispostos, poderíamos considerar que as numerosas singularidades agrupadas pela ideia de multidão encontrariam terreno comum nas irrupções de outros modos de produção, de circulação, de relação, manifestando, assim, traços da organicidade da carne-multidão, como falam Negri e Hardt. Essa carne, agrupamento efetivo de corpos em potência de agir, configura, para os autores, uma característica capital da multidão, já que se trata de uma carne desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político. Ainda que forme um corpo, 70 eles prosseguem, a multidão continuará sempre a e necessariamente a ser uma composição plural, e nunca se tornará um todo unitário dividido por órgãos hierárquicos (NEGRI e HARDT, 2012, p. 248). Já a massa, por seu turno, transita devidamente coreografada pelos mecanismos de controle social, que orquestram a produção de uma homogeneização do movente, limitadora e anuladora da complexa heterogeneidade dos corpos. Em termos gerais, a multidão nega a massa, porque nossas diferenças não podem ser reduzidas a um corpo social unitário (NEGRI e HARDT, 2012, p. 255), a um coro uníssono, acrescento. Um conceito e uma prática de multidão, grosso modo, nos impele a performar o dissenso, provocando irrupções de lisuras nos estriados meios sociais, deslocando hábitos e refazendo sentidos, ou, para utilizar termo caro aos autores, monstrificando o consenso, porque trabalha com a possibilidade sempre presente capaz de destruir a ordem natural da autoridade em todos os terrenos (Idem). Essa possibilidade de destruição é fertilizada pela comunhão entre diferenças. Enquanto a massa é disciplinada para diluir as diferenças, a multidão é uma força disruptiva dos paradigmas disciplinadores, porque, como afirma a teórica Carmem Gadelha (2016), abriga a multiplicidade o que não se trata de pluralidade numérica, mas de potência de diferença, uma vez que é criada em situações sociais colaborativas (NEGRI e HARDT, 2012, p. 286), sendo essencialmente uma produção do comum e em comum. Colocando ainda em outros termos, a multidão, por ser coro dissonante, força dionisíaca acentrada, abriga um conjunto de singularidades que fomenta a própria práxis coletiva, agregando possibilidades de resgate da expressão polifônica dos corpos o que certamente não nos livra de atitudes fascistas, 71 vide o Brasil contemporâneo ao passo que a produção de comportamento de 70 Os autores utilizam a acepção de corpo em congruência à suscitada por Espinosa, que descreve um corpo humano como uma multidão de multidões. Isto é: os homens podem agir em comum como um corpo único (NEGRI e HARDT, 2012) ou, merleau-pontinamente falando, como uma carne social, como um elemento de puro potencial que ascende o indivíduo ao estatuto de ser social, em devir coletivo, mantendo, portanto, a singularidade da expressão subjetiva. 71 Esta observação é embasada no pensamento de Carmem Gadelha (2011), que, ao estabelecer analogias entre o trágico e a contemporaneidade, expõe: a multidão pode identificar-se ao mal, se capturada pelos neofascismos. Mas sua sensibilidade percebe diferentes possibilidades de lutas, sem elos com a democracia representativa [ ] indeterminação que tem consistência trágica (GADELHA, 2011, p. 4).

120 123 Massa, se assim pudermos considerar, mantém a neutralização das (in)diferenças em hábitos de uniformização, porque condiz à captura de subjetividades. A partir dessas considerações, podemos, conforme estou me propondo à experimentação teórica, analisar aspectos da mobilidade urbana através dessas duas instâncias córicas, que são a massa e a multidão. Coros que não se excluem no trânsito contemporâneo, mas alternam-se, uma vez que a mobilidade funciona como um diagrama interseccionando consensuais preceitos de circulação e desviantes motores de experimentação. Neste diagrama, o elemento massa corresponde aos preceitos moduladores dos corpos, do espaço e do tempo, pois seu conceito reflete o projeto moderno o mesmo da ilusão da automobilidade tão intrínseco aos planejamentos urbanos. Esse ponto coincidente do planejamento urbano e do conceito de massa como projetos do modernismo que ainda ressoam no fluxo contemporâneo pode ser corroborado pelo aspecto delineado por Antonio Negri (2004, p. 15): [ ] o pensamento da modernidade opera de uma maneira bipolar: abstraindo, por um lado, a multiplicidade das singularidades, unificando-a transcendentalmente no conceito de povo, e dissolvendo, por outro lado, o conjunto de singularidades (que constitui a multidão), para formar uma massa de indivíduos. Assim, a massa confere à movimentação urbana um sentido de blocamento, amontoamento em esteira que é estéril de subjetividades, articulado pela produção uníssona, ao passo que a multidão confere à palavra movimento um significado coletivo, sendo articuladora de outros possíveis agenciamentos. Considerando a massa um modelo de coro uníssono e a multidão uma formação de coro dissonante nas práticas de circulação contemporânea, é possível alinharmos uma relação desses coros com o sentido mais autêntico do termo coralidade, o trágico? Para uma possível vinculação, podemos recorrer ao que teorizam Carmem Gadelha, Izabel Cafezeiro e Virgínia Chaitin (2014, p. 13): [ ] a multidão é rizoma e devir, transitando pelas redes para produzir uma comunicação de afetos que a façam pular para o espaço das ruas e das vicissitudes históricas de Seattle à Primavera Árabe e os Black Blocs brasileiros: coro de bacantes, com suas máscaras, figurinos e percursos na cidade, a desafiar a estética clássica. As autoras, comparando a complexidade das grandes manifestações políticas contemporâneas com a dissonância característica do coro dionisíaco, descrevem a multidão como o coro rizomático e em devir, isto é, articuladamente espraiado e sempre em processo, nunca atingindo uma completude. A multidão age, então, como coro de bacantes, da ordem do dionisíaco, sendo coro pluriforme e multi-vocálico que, com indumentária e percursos múltiplos, conservava na

121 124 pólis grega a impossibilidade de enquadramento pela ordenação de sentidos um dos aspectos cruciais, talvez, do trágico (NIETZSCHE, 1999). Pela via contrária transita a massa, pois, agindo semelhante à composição de um coro uníssono obedece um critério ordenado que almeja anular a multiplicidade da pólis contemporânea. Anulação, a meu ver, de completude impossível, porque sua ação contraria a própria contemporaneidade, sendo diluída pelas infindáveis ações que escavam a passividade motorizada pelos planos estriados, trazendo à baila as ranhuras do urbano contemporâneo para promover outras formas de dança que se sustentam à parte e às vistas dos requisitos impostos. Por ações me refiro, de modo geral, às já citadas práticas de dissenso que, a partir de iniciativas políticas-e-estéticas, em ruas e em transportes coletivos, os dois palcos principais dos planos de mobilidade, eclodem da massa córica como uma multidão em trânsito. De modo particular, gostaria de imbricar os conceitos discorridos na reflexão de ações performativas que se configuram nas ruas sob o formato de coro, habitualmente identificadas pelos transeuntes como protestos. Um exemplo de performance em coro é Rosa Púrpura, da artista Berna Reale. Na performance, ela aborda a questão da violência sexual através da imagem de um coro de 51 mulheres (ela e 50 estudantes secundaristas de Belém do Pará) que, marchando em ritmo militar, trajam saia rosa e boca de boneca inflável. Outro exemplo é a performance Cegos, do Desvio Coletivo, rede de criadores em artes da cena que desde 2011 desenvolve espetáculos, instalações, intervenções urbanas e performances. Em Cegos, que já foi realizada em diversas cidades do Brasil e do mundo, performers em coro, em trajes sociais, caminham pelas ruas das cidades com os olhos vendados e os corpos integralmente cobertos por argila. Transitando pelas ruas dos centros financeiros e políticos das cidades, geralmente se dirigem a algum prédio que simboliza o poder. Desde 2016, o Desvio Coletivo também tem denunciado, através da performance Cegos, iniciativas fascistas e desmontes operados contra o regime democrático brasileiro. 72 Performances realizadas em coro como as supracitadas descoreografam a massa caminhante nas ruas: se há uma uniformidade nos trajes e gestos dos performers, é justamente esse caráter uníssono que desvirtua a coralidade-correria dos transeuntes, os quais, desacelerando os passos e ativando seu campo perceptivo, também podem se desprender da massa córica e expressar dissonância de multidão. Tendo essas ideias em mente, descrevo a seguir a performance Massa Ré, cujo programa convida um grupo de performers a agir como um coro em contrafluxo nas ruas da cidade como paráfrase do momento histórico em curso no país. 72 Os trabalhos dos artistas podem ser conferidos respectivamente em: e

122 125 Massa Ré A morte do ex-presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, é anunciada. Estou sentado no chão de uma praça, em silêncio, com amigos e desconhecidos. Um agrupamento de brasileiros, vestindo roupas nas cores verde e amarela, vem correndo de costas comemorando a notícia. Não temos tempo para levantar. Somos pisoteados pela massa. No chão, sobram nossos corpos desconjuntados e fragmentos em pano e papel com as cores da bandeira nacional. Acordei com a quentura de um coturno pressionando meu rosto. Mês de março, apenas o início de Naquela altura, várias brasileiras e brasileiros, em diversas partes do país incluindo um bebê em São Paulo e uma vira-lata na cidade do Rio de Janeiro haviam sido agredidos por simplesmente trajarem a cor vermelha e caminharem pelas ruas. O ex-presidente foi conduzido coercitivamente para depor: prisão televisionada com ares de final de campeonato futebolístico, no país do futebol em ano olímpico. O Congresso Nacional encaminhou os protocolos para a abertura do processo de impeachment contra a Presidenta da República, Dilma Rousseff, democraticamente reeleita por mais de 54 milhões de votos. O resto da história estamos vivendo. Resolvi iniciar a descrição do trabalho deste modo, intercalando meu sonho e os acontecimentos que marcavam o país, que marcavam nossos corpos, já que, inevitavelmente, o sonho era um contínuo da realidade, imagem superlativa e duplicativa dos acontecimentos em curso, escrita figurativa onde os pensamentos são transformados em imagens, resguardando uma aptidão para a encenação (FREUD apud DERRIDA, 2002, p. 163). Após o sonho, meu corpo entrou em abstinência de sono: era impossível ignorar a imagem da massa de brasileiros correndo fervorosa de costas. Impossível, pois, além de estar, naquela altura, estudando sobre o caminhar como prática estética, 73 minha sensação era de que o sonho traduzia em imagens a história em marcha no país, com toda a onda fascista ganhando força e número nas ruas, além de todos os desmontes orquestrados contra a democracia: aspectos que, resguardadas as especificidades históricas de cada época, aproximam 2016 de 1964 comparação que tem fomentado uma série de debates num país em que o termo golpe voltou a ser explorado. Toda essa profusão de atuais e virtuais entre onirismo e realidade, imagem e palavra, estética e caminhar, entre a história contada e o agora vivido, revelava uma aptidão para encenação e me impulsionou à formulação do seguinte programa performativo: 73 Especialmente a obra Walkscapes, do arquiteto italiano Francesco Careri (2002), já citada na Introdução deste trabalho. O autor, em diálogo com Deleuze e Guttari, traça um paralelo entre lisura e estriamento, abordando práticas de sedentarismo e nomadismo a partir de um resgate histórico dos modos de produção agrícola até os movimentos estéticos que utilizam a prática de caminhadas como programa artístico, a exemplo da Internacional Situacionista na primeira metade do século XX.

123 126 Um grupo de brasileiros, trajando camisas brancas com as inscrições 2016 (frente) e 1964 (costas) em preto, caminha lentamente, silenciosamente e de costas pelas ruas da cidade com as mãos espalmadas para baixo. Os pontos de início e término da caminhada são preestabelecidos em consonância a fatos históricos. Ao formular o programa, enfatizei primeiramente na imagem da caminhada coletiva de costas e na inscrição dos dois momentos históricos nas camisas, mas o gesto coligado ao traje logo fez surdir uma questão de ordem semântica: um grupo caminhar de costas no contexto Brasil/2016, com inúmeras pessoas e organizações pedindo, por exemplo, o retorno de uma ditadura militar, pode, predominantemente, suscitar apoio ou concordância a um golpe de estado? A dubiedade não me parecia necessariamente negativa, mas havia a necessidade de incorporar outros elementos para fomentar os posicionamentos da experiência estética. Além de conscientemente evitar as cores vermelho, verde e amarelo, escolhi o gesto das mãos espalmadas para baixo como o detalhe capital de dissonância na ação. O gesto, presente em inúmeras obras da história da arte, bem como no modelo anatômico do Oriente, saltou ao meu pensamento, para além deste imaginário, a partir do modo como cotidianamente viramos as mãos para frente, abrindo palmas e dedos, para demonstrar dúvida ou estupefação. Geralmente, o gesto é acompanhado por expressões faciais e/ou atos de fala como não sei o que está acontecendo e o que está acontecendo?!. Percebi uma recorrência desse gesto no meu corpo e nos corpos de pessoas próximas a cada vez em que se lia ou se ouvia a respeito dos protestos pela volta de uma ditadura militar, de violações cometidas nas ruas contra pessoas trajando roupas vermelhas, de prisões coercitivas, de pedidos de impedimento presidencial, enfim, de acontecimentos que acometiam nos corpos um gesto responsivo de estranhamento. Esse caráter responsivo do gesto foi acentuado pela ideia de formar uma angulação entre os dedos que apontam para o chão onde se pisa e o pulso inarredável ao corpo que caminha: como se o gesto, constituinte do e no corpo que anda para trás, pronunciasse: estou sendo empurrado para trás, mas estou resistindo. Massa Ré 74 surge, assim, como um programa elaborado para ser agido em coro e nas ruas no intuito de, a partir de uma postura aparentemente uníssona, tentar agregar a voz pluralmente dissonante nas ruas e das ruas, vibrando possíveis manifestações dos passantes num momento histórico de profusa e aguda divisão ideológica no país. Desse modo, as escolhas gestuais e visuais da ação flertam com o termo resistência, [ ] no sentido de oposição e de 74 O título da ação foi sugerido por Diogo Liberano, diretor da Companhia de Teatro Inominável, quando apresentei o programa como proposta de ação coletiva ao grupo de estudos em teatro e performance (PTI) aberto pela companhia a artistas-pesquisadores atuantes na cidade do Rio de Janeiro como uma das ações do edital de ocupação que pleitearam no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF RJ, 2016).

124 127 fôlego (pois) é preciso muito fôlego para que a ação seja propositiva e não reativa (FABIÃO e ABREU, 2016, p Termo inserido). Foi preciso muito fôlego, isto é, resistência a toda sorte de confrontos, como também aderência radical ao programa nas três 75 realizações de Massa Ré em 2016 para que a ação propusesse primordialmente diálogos em vez de embates, para que fosse propositiva e não reativa, parafrásica e não parodística. 76 A primeira delas ocorreu no dia 1º de abril de 2016, como ação Modo de #03, do grupo de estudos PTI da Companhia Teatro Inominável. 77 A escolha da data se deu, em grupo, pela incidência histórica: dia em que o golpe militar de 1964 completou 52 anos. O percurso que programei, obedecendo a consonância histórica orientada pelo programa, teve: como ponto de partida a Praça da Cinelândia, local onde ocorrem, de modo geral, diversos protestos na cidade e onde ocorreram, de modo particular, manifestações contra o golpe jurídico-midiático de 2016; e como ponto de chegada a Central do Brasil, local onde o ex-presidente João Goulart professou, no dia 13 de março de 1964, para 200 mil pessoas, um discurso 78 que, dias depois, foi deturpado pelos militares e veiculado pela mídia como comunista, gerando reações como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade e ocasionando, por fim, o golpe em 1º de Abril daquele ano. 79 O percurso programado para a caminhada de costas simbolizou, portanto, uma ponte entre as duas épocas históricas. Durante as três horas de duração da primeira realização do programa, as mãos espalmadas para baixo rapidamente viraram uma estratégia de cuidado para além do gesto estético: os tropeços ocasionados pelos tantos buracos e desníveis das calçadas não viravam quedas graças às mãos dos performers que, em cadeia no sentido contrário, cuidavam de si, apalpando-se. O ritmo da caminhada foi outra questão negociada em ato: andar de costas significa ver, 75 Uma quarta ação do programa foi realizada em Recife, no fim do primeiro semestre de 2016, quando um grupo de artistas, tendo acesso às imagens da ação no Rio de Janeiro, me contatou no intuito de solicitar autorização para agir o programa. Neste ensaio, escolho me deter às três realizações ocorridas no Rio de Janeiro, já que participei efetivamente como performer. 76 Paráfrase e paródia são aqui citados em acordo com a proposição conceitual de Afonso Romano de Sant Anna (2002), o qual, em linhas gerais, distingue paráfrase de paródia considerando que a primeira não subverte totalmente o sentido original, mas constitui um procedimento intertextual (artístico, proponho) de expansão semântica, conservando o pré-texto. Massa Ré, assim como defendo o programa, não tem o intuito de parodiar o contexto político do Brasil, mas, através de uma caminhada na contramão, sem cores partidárias nas vestimentas e com dubiedade gestual, tentar provocar conversas diversas nas ruas sobre nossa situação histórico-política. A própria dualidade receptiva instaurada pelo movimento de andar de costas evidencia o aspecto de paráfrase: ocorre através de uma ação dissensual em via pública. 77 Performaram comigo Massa Ré 1 : Ana Paula Penna, André Rodrigues, Andrêas Gatto, Carla Souza, Chris Ayumi, Diogo Liberano, Flávia Naves, Francisco Costa, Gleisse Paixão, Hugo Grativol, Joanna Poppe, Lúx Nègre, Márcio Machado, Maria Baderna, Mayara Yamada, Regina Medeiros, Thaís Barros e Virgínia Maria. 78 O discurso pode ser lido na íntegra em: 79 Manifestação ocorrida na capital de São Paulo cinco dias após o discurso de Jango na Central do Brasil, foi apoiada pelos militares e teve como pauta a destituição do então Presidente e, por consequência, do regime de governo. Detalhes podem ser conferidos em: pelaliberdade- em- 19-de-marco-de

125 128 irremediável e detalhadamente, tudo que é a cidade que diariamente e apressadamente deixamos para trás. Do céu aos inúmeros corpos deitados no chão; dos monumentos às fezes de gente; das rachaduras ao concreto armado. Imagens que, por vezes, acometiam aos corpos dos performers uma lentidão ainda maior que a programada, sendo necessário um entendimento rítmico para que nenhum componente do coro ficasse para frente. Essas estratégias foram fundamentais para as demais realizações da ação. Muitos transeuntes das ruas do centro carioca esboçaram diversas reações, constituindo uma rede dialogicamente dissonante. Ainda na Cinelândia, um morador de rua se ergueu do chão às lágrimas dizendo que aquilo não iria se perpetuar, pois não haveria golpe, ao passo que outro transeunte, caminhando no contrafluxo da performance-contrafluxo, indagou: quantos sanduíches de mortadela o governo está doando para vocês fazerem isso, seus petralhas?! Vários passantes perguntavam o significado da ação, alguns querendo entender o porquê do andar de costas, outros questionando o motivo das datas grafitadas nas camisas; outros se detendo às possíveis razões das mãos espalmadas. Nesse trânsito de perguntas sem respostas, uma vez que o programa da ação frisava o silêncio dos performers durante a caminhada, uma transeunte foi mais enfática: por favor, me falem alguma coisa! Digam qualquer coisa. Vocês já me fizeram parar, não é justo eu ir embora sem entender. Como vou chegar em casa bem desse jeito?! Enquanto nós, continuando a caminhada, só vimos seu rosto e suas perguntas sumirem quando desistiu e se uniu aos tantos corpos que, compondo as ruas, eram vistos pelos nossos olhos em zoom out. Com nossa ausência de respostas e com nosso bloco de passagem, manchando o urbano em horário de pico, muitos transeuntes tentaram elucidar entre si, traduzindo nosso ato de corpo em atos de fala que, por seu turno, revelavam traços de formação cultural, posicionamentos ideológicos sobre a história de nosso país ou mesmo aspectos do imaginário coletivo que foram vibrados pelos gestos. Eles estão representando o próprio Brasil, não percebe? Estamos em 2016, é o ano de andar pra trás, por isso o Mas, o que houve mesmo em 1964? 1964 foi o ano do golpe militar não foi um ano de golpe, esses livros de história foram escritos por comunistas foi o ano da revolução militar, quando eles tentaram salvar o país das investidas comunistas, mas não deu certo, né? O que significa dezesseis-meia-quatro? Por que estão fazendo isso hoje? Hoje se comemora o quê? Fora Dilma!!! Olha, um tributo a Michael Jackson! E essas mãos aí para frente, hein? É samba, é? A gente num tá no país do samba? Pois bora sambar! (disse um passante, no comércio popular da Saara, literalmente sambando).

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127 130 Massa Ré #1. Fotos de Francisco Costa Numa segunda experimentação, 80 no dia 07 de setembro de 2016, a caminhada de duas horas, da Praça da Cinelândia até o Museu do Amanhã, atravessou parte do percurso reservado para o desfile militar. Ocorreu precisamente uma semana após a instituição de Michel Temer no cargo executivo. Os meses de intervalo em relação à primeira experimentação trouxeram à tona, por conta da rapidez com que se transformou o quadro político do país, uma participação mais ativa dos passantes. Um ciclista, enrolado com uma bandeira da campanha presidencial de Dilma Rousseff, parou seu trajeto para assistir nossa ida de costas, aproximando-se algumas vezes a cada vez que nos distanciávamos mais. Até o ponto em que seguiu, fazendo sumir demoradamente aos nossos olhos seu corpo, sua bicicleta e o nome da Presidenta cintilando na bandeira vermelha. Outros ciclistas, estes policiais fardados do Centro Presente, com amplo espaço de passagem na avenida, subiram na calçada onde a Massa Ré caminhava e calculadamente bateram com os guidões de suas bicicletas em nossos corpos. Um policial militar nos olhou e fez sinal da cruz três vezes dentro de sua viatura. Dois homens, com os braços cruzados, olharam diretamente para a menina de 4 anos de idade que participava da ação nos ombros do seu pai, dizendo: deixa o Bolsonaro vir, que ele vai dá um jeito nesse pessoal. Várias pessoas, ao longo do percurso, paravam para assistir e conversavam sobre golpe de estado e ditadura militar. Outras questionavam os significados do protesto, chegando uma transeunte a afirmar que, para representar bem o Brasil, deveríamos todos caminhar de costas até cair num bueiro. Participantes de protestos contra o atual governo aplaudiam a ação, gritando Fora Temer ou se juntando ao coro em massa ré. Militares das forças armadas, armados com fuzis, nos olharam atentamente. Um deles, que parecia ser o comandante, ordenou que dois soldados nos orientassem a subir na melhor calçada. Certos diálogos se mantiveram semelhantes em relação à primeira realização: se poucas pessoas ainda perguntavam o sentido de 1964 nas camisas, muitas diziam que éramos desocupados, como um cobrador de ônibus que, de dentro do seu trabalho, ofereceu os pratos de sua casa para que lavássemos. Essa perda de tempo, contestada por tantos transeuntes e acusada aos performers, é um sinal de perturbação no sensível, tendo em vista que a partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela ocupação define competências ou incompetências para o 80 Performaram comigo Massa Ré 2 : Ana Kemper, Inês Palmeiro, Jan Macedo, Jojo Rodrigues, Maria Acselrad, Maria Baderna, Maria Luisa Mendes, Maria Palmeiro, Nathália Mello, Otávio Leonidio, Patricia Kirilos Naegale, Renata Caldas, Vanessa Matos e Yanna Bello.

128 131 comum (RANCIÈRE, 2009, p. 16). O retraimento dos passantes, ademais, é engrenador da emergência do discurso performativo da ação eclodir no espaço urbano justamente sob a forma de perguntas e conversas, que, através do coro andando de costas, pode evocar diálogos referentes ao momento político compartilhado (inserido no comum, na partilha do sensível) e estremecido pelo acontecimento estético-político (a realização da performance). No fim do trajeto, nos deparamos com centenas de pessoas ocupando a Praça Mauá, onde fica o Museu do Amanhã. Havia um palco enorme com uma banda gospel entoando canções e professando frases sobre a importância da família brasileira. Ficamos ali parados por um tempo, respirando e reacostumando o corpo para caminhar de frente. Ao nosso lado, observando extensivamente cada um dos nossos corpos, um policial militar cuja tarjeta anunciava seu nome: Michel.

129 132 Massa Ré #2, fotos de Ique Gazzola No dia 19 de novembro de 2016, em terceira 81 experimentação do programa, caminhamos durante uma hora e quarenta minutos da Cinelândia até a Praça da República (Campo de Santana). A reação de ordenar que procurássemos uma ocupação prosseguiu, sobretudo por parte de trabalhadores ocupados no momento simultâneo à passagem da Massa. Também se mantiveram expressões de apoio, com transeuntes conversando sobre os rumos políticos do país ou caminhando um pouco de costas conosco, além de um ciclista que bateu nas palmas abertas de algumas das performers, como se estivesse cumprimentando-as. Essas respostas, contudo, foram mais contidas em relação a gritos de desocupados!, que bando de otários! e dedos girando ao lado das cabeças, acusando, sem palavras, nossa loucura. Na Lapa, um morador de rua foi mais enérgico: isso é macumba! Isso é macumba! Gritava, esbravejando o corpo compulsivamente. Em um dos bares, uma pergunta em particular determinou pós-conversas entre os participantes da ação: um homem, sentado com a família, indagou: mas, afinal, o que vocês apoiam? Eu não consigo entender se são contra ou se querem Ao seu lado, antes que devolvêssemos a pergunta ( o que você acha que é? ), uma mulher, sem expressão de dubiedade, disse: está claro que eles apoiam o Lula e a Dilma, é só olhar pra eles. 81 Os performers-colaboradores de Massa Ré 3 foram: Ana Kemper, Camille Mello, Clarice Rito Plotkowski, Fernanda Canavêz, Flavia Oliveira, Lucas Fontes, Luiza Leite, Maria Baderna, Renata Caldas e Samara Lacerda.

130 133 Essa dubiedade, marca da execução do programa nas ruas, tendo em vista os múltiplos e dissonantes verbos expressos pelos transeuntes, talvez seja consequência da inversão em zoom out que a performance injeta à lógica do gesto mais quotidiano (AGAMBEN, 2008, p. 10) que é o caminhar: gesto comum da marca civilizatória nas sociedades, o que apreende uma perspectiva historicista engendrada por um noção topográfica e militar da força que marcha à frente, que detém a inteligência do movimento, concentra suas forças, determina o sentido da evolução histórica e escolhe as orientações políticas subjetivas (RANCIÈRE, 2009, p. 43). Massa Ré pode desvirtuar, assim, a forma própria da construção subjetiva da circulação urbana, profanando a expressão absoluta e primeira da ordem e do progresso: o andar de frente. Performance e(m) tragicidade: Gota e o coro-multidão A analogia entre os conceitos de massa e multidão com as ideias de coro apolíneo e dionisíaco se fez acima, em breves linhas, pelo entendimento da massa como uniformização e neutralização das diferenças e da multidão como práxis coletiva, conjunto de singularidades que constitui a multivocalidade da realidade social. Essa esquematização pode, pela inter-relação vocabular que sugere, indicar um diálogo entre tragicidade e performance. Gadelha, Cafezeiro e Chaitin (2014, p. 2), ao tensionarem relações entre arte e matemática a partir de uma leitura sobre o trágico, consideram que tanto o artista quanto o matemático veem revigorada e reafirmada sua instalação no terreno da não-computabilidade, da incerteza, da indecidibilidade, da incompletude (BADIOU, 1994), da aleatoriedade, da irredutibilidade. Não me parece inusitado considerar, ancorado na proposição das autoras, bem como na inter-relação entre conceitos teóricos e práticas artísticas esboçada na presente Linha V, que é justamente nessas negações que resida uma relação contundente entre o urbano contemporâneo e a tragicidade, entre o trágico e a arte da performance. São nessas negações que a performance se afirma, são a essas negações que a performance se afina ao recusar a lógica algorítmica através de programas que transmutam o incerto e o imprevisível em terrenos inesgotáveis de experimentação. São também nessas negações, resguardadas as especificidades de cada ação (intervenções políticas e outras ações dissidentes em espaços de mobilidade urbana, incluindo ações performativas), que a prática de uma coralidade dissonante pode propor outras maneiras de fazer a circulação na cidade e pela cidade, instaurando agenciamentos que não se adéquam às normatizações, mas provocam vibrações, desarranjando a solidez da produção córica de massa em investimentos de multidão. Seria possível, então, considerar que o trágico e a performance partilham dos mesmos índices circunstanciais? Gadelha (2013, p. 33) defende que a performance situa-se no problema

131 134 [...] do trágico, que pode ser compreendido como processo e potência de reengendramento. Embora a autora esteja falando mais detidamente em relação ao teatro contemporâneo, frisa a também presença de elementos trágicos na arte da performance. A performance, enquanto atritadora de normatizações e produtora do dissenso, opera reengendramentos no consensual, pois negocia processos e potencializa encontros por meio de agenciamentos. 82 Uma vez que as práticas artísticas são maneiras de fazer que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade (RANCIÈRE, 2009, p. 17), ações performativas em espaços e eventos de trânsito urbano, podem tornar visíveis outros modos de agir na cidade, bem como deixar mais visíveis ineficácias das maneiras de fazer estagnadas e respaldadas pelos mecanismos coreográficos de controle, como é o caso dos planos de mobilidade urbana. A performance Massa Ré, descrita anteriormente em consonância aos conceitos articulados, pode exemplificar o agenciamento de introduzir outras maneiras de fazer no espaço urbano ao experimentar a caminhada no contrafluxo como abertura dissensual. Massa Ré claramente assume o coro como forma de execução, mas, para além disso, abarca a carne da multidão ao potencializar a diferença circulante nas ruas. Isto se verifica não só pelas formas de trânsito pedestre como também pelos diversificados discursos que a performance acaba projetando na cidade a partir da intervenção dos passantes, os quais fazem coro junto, apoiando ou discordando. Esse abarcamento das diferenças que constitui a carne da multidão como consideram os já citados Negri e Hardt (2012) é sinal da democracia da multidão, que tem, possivelmente, posição análoga ao da sociedade grega pré-polis. Nos dois casos, os trânsitos singular/múltiplo, eu/nós configuram o bando dionisíaco. As diferenças operam, tragicamente, no comum e no corpo coletivo, rebelde, extático. (GADELHA, CAFEZEIRO e CHAITIN, 2014, p. 13). Através do pensamento dos autores, percebemos que da multidão fazem parte entrecruzamentos entre indivíduo e coletivo, singularidade e multiplicidade, que no chão performativo da cidade se movem não apenas em ações visualmente coletivas (vide performances como Massa Ré e as citadas Rosa Púrpura e Cegos ), mas em ações que como tenho defendido ao mencionar os desvios de ambulantes, pedintes. produzem corpo coletivo ao congregarem vozes múltiplas. Tendo em vista que ações aparentemente individuais podem confluir uma multiplicidade de vozes e que os trânsitos singular/múltiplo, eu/nós integram o conceito de 82 Não podemos nos esquecer que os agenciamentos e reengendramentos, enquanto potências do dissenso, podem ser reapropriados por consensos às vezes bem retrógrados, como afirma Carmem Gadelha, que complementa: Basta ver o caso de algumas obras-primas como as de Van Gogh, cuja força de dissenso é em parte reapropriada pelo mercado de arte, as instituições, os consensos. Como obra de arte, com todas as dificuldades que esta ideia tem, a performance está sujeita a essas injunções. Os Parangolés de Hélio Oiticica são um exemplo; é triste vê-los intocáveis e pendurados em paredes. Restam as narrativas que mobilizam e refazem seu ser parangolé. (Comentário atribuído na correção do ensaio que escrevi para sua disciplina).

132 135 multidão, gostaria de finalizar esta Linha e também esta dissertação com a performance Gota. Trata-se de uma ação que tem me encaminhado para pensar na concretização do corpo como transporte de coletividade(s), através do tráfego em conjunto a um objeto precário-relacional cujo conteúdo pode registrar um colecionismo de encontros nas ruas e materializar, liquidamente, a transformação do corpo que o carrega. Tenho performado Gota em ruas e galerias a partir do seguinte programa, o qual também nomeio nascente : Um balde de plástico vermelho made in Brazil com capacidade para 13,6 litros e data de validade indeterminada é o objeto precário-relacional que norteia uma quase deriva, uma caminhada-busca por quem estiver bebendo água ou trabalhando com água. A caminhada só se completa quando o recipiente estiver transbordante com as águas doadas pelos transeuntes, gota a gota, com as próprias mãos. Toda a água coletada é revertida em ações de lavagem, de escrita e de exposição oral. Este programa nasceu no âmbito do projeto Desilha, disciplina orientada pelos professores Livia Flores e Ronald Duarte, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ. A cada semana, os professores indicavam uma palavra como motor de experimentação e a performance foi ativada através do substantivo Gota d água, disparado em aula no primeiro semestre de 2016, bem no meio de todos os disparates políticos já mencionados em Massa Ré. Desde então, tenho performado Gota entendendo como curso das águas as etapas indicadas no programa: lavagem, escrita e exposição oral. Quando desejo lavar algo na cidade ou da cidade, caminho nas ruas à procura de quem quer que esteja com água para que o recipiente seja preenchido. Essas lavagens geram narrativas 83 que prosseguem o fluxo da performance ao serem expostas oralmente em ruas e em galerias, ou seja, em espaços de passagem. Quando a água é revertida em ação de exposição oral, 84 o recipiente não precisa estar transbordante: saio de casa (ou de onde esteja hospedado) até o local de exposição a pé ou de ônibus. A quantidade de águas coletadas nesse trajeto é o suficiente do dia, é o agrupamento de singularidade que o dia deu e que carrego junto ao corpo para agir na leitura do texto. Cada página lida é afogada dentro do balde, misturando-se ao líquido coletivo que, ao término, é bebido por mim. Nesse ciclo de coleta, lavagem e escrita que orientam a cartografia de Gota, penso que as águas coletadas, com todos os discursos, origens, sotaques, impressões digitais, salivas, dentre 83 Na primeira experimentação da performance, a coleta de água foi revertida para lavar um símbolo nacional em praça pública, ocasião em que até cachaça e cocaína pararam dentro do balde. O texto pode ser conferido em: Também já conduzi, a convite da professora Dinah Cesare, uma coleta coletiva com graduandos em artes visuais da EBA/UFRJ. Na ocasião, recolhemos águas de transeuntes do Rio para lavarmos, com as palmas de nossas mãos e as solas de nossos pés, as escadarias da Candelária. 84 Além de galerias e mostras do Rio de Janeiro, recentemente performei Gota em Curitiba, recolhendo águas nas mediações do bairro do Juvevê, onde também expus oralmente a narrativa que será apresentada abaixo. A leitura ocorreu no mesmo local em que um homossexual sofreu um ataque com ácido em maio de O ácido, que queimou rosto, braços, peito, abdômen e destruiu um olho da vítima, foi jogado após a sentença: toma aí, seu viado.

133 136 outros índices de encontro que se misturam no balde, são materiais entrecruzando-se na multidão, cruzando multidão com multidão. São como nossos corpos que mestiçam-se, hibridizam-se e se transformam; são como ondas do mar em perene movimento, em perpétua transformação recíproca (NEGRI, 2004, p ). Além da multidão expressa pelo meu próprio corpo em ação performativa, o balde que carrego junto ao corpo é como um transportador de multidão, cujas águas reúnem um coro dissonante. Sendo assim, gostaria que a leitora se unisse a esse agrupamento líquido e, se possível, lesse a narrativa que segue em voz alta. Peço também que esteja acompanhada de água. Em copo ou em garrafa, pouca ou muita, gotas ou litros. Com o recipiente com água ao alcance da vista e das mãos, peço que inicie a leitura a partir deste leito : Gota é um substantivo feminino da língua portuguesa que designa uma pequena porção de líquido que, ao escorrer, tem forma de glóbulo ou, na linguagem popular, forma de pingo. Gota também é o nome de uma doença, sem cura ou tratamento definitivo, caracterizada por uma artrite inflamatória provocada por uma concentração de ácido úrico nas articulações, sobretudo nas articulações do pé, as articulações do caminhar. Gota serena é como a fase de alívio dessa doença passou a ser chamada no Nordeste brasileiro e acabou se aglutinando à língua como uma expressão de intensidade. Gota d água também é uma expressão de intensidade fincada na língua portuguesa falada em todo o Brasil, que indica um esgotamento de paciência, uma situação-limite. Gota serena e gota d água são expressões populares extraídas de ditados populares que nunca serão obsoletos, desde que o Nordeste permaneça falando, desde que a música e a peça de Chico Buarque, um sudestino, continuem sendo escutadas, lidas, encenadas. Gota serena e gota d água, portanto, indicam a capacidade de perpetuação linguística, de permanência dos ditados populares. Mas vitalidade semelhante à dos ditados populares, possuem os discursos de ódio.

134 137 Gota, foto de Wilton Montenegro Agora, passado o leito, nossas águas entram em curso. Peço, então, que olhe o horário local de sua cidade, a hora e os minutos com exatidão. Com a hora em vista, entenda que o horário de São Paulo, Curitiba e Brasília, para citar alguns exemplos, são correlatos ao do Rio de Janeiro. Em Recife e em Ananindeua, no Pará, também para citar alguns exemplos, é uma hora a menos, pois não há horário de verão. Em Brasília, no Rio, em Recife, em Ananindeua ou em qualquer outro município do país, resguardando a virtualidade temporal imposta pelo fuso horário para mais ou para menos, alguma Lésbica, algum Gay, algum ou alguma Bissexual, alguma Travesti, alguma pessoa Trans ou qualquer outro dissidente de gênero e sexualidade certamente, estatisticamente, já foi morto hoje no país; ou assim o será até que termine este dia, esta leitura, esta hora. Vamos voltar horas e águas até o mês de julho de Quinta-feira, 07 de julho, UFRJ, campus da Praia Vermelha. Pouco depois das 15 horas, um viado decide transitar pela universidade portando um balde de plástico vermelho, made in Brazil, com data de validade indeterminada e capacidade para pouco mais de 13 litros. No sábado, 02 de julho, 120 horas antes, outro viado foi assassinado no campus da Cidade Universitária, na Ilha do Fundão. Pouco mais de 150 horas antes de sua morte, no banheiro masculino da Escola de Comunicação ECO, Campus Praia Vermelha, havia a seguinte pichação: morte às bichas da ECO. No dia 06 de julho, isto é, 96 horas após o

135 138 assassinato, em outro banheiro masculino, dessa vez localizado num contêiner do Campus Praia Vermelha, próximo ao campinho de futebol, uma nova pichação: viado bom é viado morto, com a resposta de complementação: e vc continua vivo? Voltemos ao dia 07 de julho e ao balde vermelho. Com esfregão e água sanitária na bolsa, resolvi agir pela segunda vez a performance Gota. O objetivo era preencher o balde somente com um pouco da água potável, da água mineral e pessoal de cada estudante, funcionário, professor ou visitante da UFRJ que eu encontrasse no trajeto entre o banheiro masculino da ECO e o banheiro masculino do Contêiner. A água coletada deveria ser doada, gota a gota, por cada membro da comunidade acadêmica, com suas próprias mãos. O objetivo era remover a pichação VIADO BOM É VIADO MORTO e a resposta de complementação e você continua vivo? com todas as águas, salivas, origens, profissões, impressões digitais, discursos e vozes que coubessem em 13 litros. Logo nas primeiras abordagens, vi que era necessário explicar o motivo do inesperado pedido quase que imediatamente. No meio da rua as pessoas doam água sem questionamentos e com, no máximo, testas e vozes franzidas. Na universidade, ao contrário, o pedido requer explicação, porque o discurso é científico e a ação deve revelar metodologia, objetivos gerais e específicos e, por vezes, hipóteses norteadoras. Diferente da rua, aliás, a performance Gota necessitava de uma explicação para além do pedido: era imperativo que cada transeunte da UFRJ soubesse sobre a pichação, era preciso trocar uns segundos ou minutos de conversa sobre a pichação em comemoração a um assassinato. Ademais, era preciso deixar que cada encontro se manifestasse e criasse um rastro em forma de líquido, de estranhamento, de empatia, de conversa que continua depois que o corpo com balde vermelho some de vista, que o corpus da coleta de dados em balde vermelho some de vista. Primeiramente me dirigi ao campinho, era necessário ler com os próprios olhos a pichação. Por coincidência, não por acaso, somente por acaso, parei um estudante para pedir informação a respeito do ódio e da localização. Ah, eu te levo lá. Fui eu que fotografei e postei no facebook. Foi lá que você viu? Não, uma desconhecida me abordou ontem relatando sobre. Saí de lá e fui até o banheiro da ECO, local de partida para a coleta de 13,6 litros de água pessoal, como eu pedia. Coleta que durou quase duas horas. A cada pedido, após a exposição do fato, do ódio, do medo, da ação que ali fazíamos juntos, eu, os alunos, os seguranças, os professores, os funcionários, os participantes de um congresso internacional de ciências sociais, para todos eu complementava: não precisa ser toda água, o quanto você puder e quiser doar. (Um adendo: puder e quiser é dueto verbal que aprendi com os pedintes e ambulantes que performam em transportes coletivos. O quanto puder e o quanto quiser Esses dois verbos ditos assim, juntos, é argumentação quase infalível. É metodologia performativa das ruas).

136 139 Ainda no Campinho, após localizar as frases pichadas na porta da quarta cabine do Banheiro masculino do térreo, localizado a aproximadamente 620 horas de Belém do Pará, a 614 horas e 24 minutos de Ananindeua, a 4 horas e 18 minutos da Ilha do Fundão e a menos de 5 minutos do banheiro da ECO, abordei dois garotos que treinavam numa barra de ferro e pedi um pouco de suas águas. Onde tá isso? Quando foi isso? Olha, eu vou trazer spray amanhã e pintar por cima. Bem, eu vou lavar, nós vamos lavar e você pinta lá, mas não vai ser mais por cima. Vai ser por cima da nossa lavagem, pode ser? Em seguida, uma professora caminhava conversando com cinco alunos, era a única do grupo com água ao alcance da minha vista. Pedi licença. Ela atendeu e, como uma deixa, os alunos se despediram. Pedi água. Meu Deus do céu Isso tem a ver com o menino que morreu no Fundão? Que foi morto, respondi. Ele era gay? Eu estou por fora Gay, negro, cotista, militante e de Ananindeua, no Pará. Meu Deus! Isso tá no contêiner? Eu dou aula lá... Só de pensar que pode ter sido um aluno meu Disse ela, despejando toda a sua água no balde. Ei!, ela, antes de abrir o carro. Oi!, eu, antes de dobrar a esquina. Eu vou falar sobre isso amanhã em todas as minhas aulas, certo? Eu prometo. De volta à ECO, na frente dos banheiros, uma aluna me ouviu silenciosamente e me doou silenciosamente. Outra falou que não era possível e derramou toda a água da garrafa que acabara de encher no bebedouro. Na xérox do Itamar, apenas ele tinha uma garrafinha de água. Me doou alguns dedos, achando muito engraçado aquilo que eu fazia. Virei à direita, no corredor que daria de volta à entrada do prédio, entrei numa sala de estudos. Pedi licença e pedi água às quatro alunas. Todas doaram. Mais adiante, numa sala perto da diretoria, interpelei três professores de comunicação. Um deles doou e pediu que eu passasse meu contato, para descrever a ação em alguma página de algum projeto de algum setor da ECO. Não respondi nem sim nem não, tampouco deixei o meu nome. Uma professora manteve a testa franzida todo o tempo, pediu para entender 3 vezes e disse: aqui no final do corredor tem um banheiro, lá tem torneira. Essa água não serve. Eu ainda precisava encontrar uns 10 litros e meio e me despedi. Na portaria, um aluno me ouviu, mas não tinha água. Um funcionário levantou a vista pra mim uma, duas vezes e voltou os olhos para o celular. Não sei se tinha água. Na saída da ECO, alguns alunos estavam pintando uma faixa EDUCAÇÃO SEM TEMER ; um deles conseguiu me ouvir. Na guarita, a segurança preferiu não se arriscar, disse que era novata e, por isso, não sabia se poderia doar a água. Ah, espera, meu colega tá chegando, ele é antigo aqui, quem enche as garrafas é ele. Ela repassou meu pedido, eu reiterei. Minha água pessoal? Você quer minha água pessoal? Como assim? Água pessoal? Você quer o meu xixi?! Não, ele quer a água da tua garrafinha. É, moço, para limpar VIADO BOM É VIADO MORTO,

137 140 que tá escrito num banheiro do Campus, repeti. Ah, bota aí um pouco pra ele. Ela, finalmente, se sentiu autorizada e me doou a água. Dois alunos sentados no meio-fio. Não tinham água, mas, com a mão no peito, quase coreograficamente, agradeceram. No Cópia Café, uma reunião de orientação e muitas águas. Era inevitável, eu tinha que interromper. Todos doaram e a reunião tomou outro rumo, o professor passou a falar sobre uma organização fascista universitária. Capaz de você cruzar com quem escreveu isso, hein? Toma cuidado. Participei da conversa, mas ao lado, bem do lado, dois alunos com uma garrafinha cada um. Oi, pode me doar um pouco da sua água para Olha, mas aqui do lado tem essa torneira, cê viu? Assim vai terminar mais rápido. Mas eu não quero água da torneira, nem quero terminar mais rápido. Ah, entendi. Água da torneira quebra a parada simbólica, né? Pô, tomaí, maluco!. Diretório Central Estudantil. Pessoas almoçando ou pagando a refeição. Ninguém tinha água dentro das bolsas. Ao menos todos disseram que não tinham. Uma estudante foi mais enfática: se eu tivesse, derramaria toda. Um quinteto de rapazes, todos com mochila, ouviram atentamente minha explicação, sem nenhum balançar de cabeça ou testa franzida. Pô, a gente não tem, cara. De frente ao prédio de psicologia, havia um grupo de congressistas estrangeiros. A garota me doou o último gole da garrafa. Um deles me surpreendeu: não tenho água, mas quero contribuir com minha água pessoal, como você diz, pode ser? Claro. Ele juntou uma porção de saliva na boca e depositou o cuspe no balde. Agradeci. Olha, há vários europeus ali. Vai lá. Todo mundo tem água e vai gostar de participar. Estamos no intervalo do Congresso, me orientou o amigo dele, acho que britânico. Obrigado, mas prefiro seguir agora e coletar de brasileiros. Deixo que vocês contem a história. Entendo. Boa sorte. Eu sinto muito, disse ele. Eu também, respondi. Alguns centímetros depois, duas alunas brasileiras. Pedi água. Me explica. É que só notei que você tá recolhendo água, é isso? Pra quê?. Discorri sobre a ação, ela atendeu, derramando um pouco de água: Claro, mas eu quero dizer que eu sou cristã. Eu sou cristã. Acho um absurdo essas coisas, eu defendo discurso de ódio, o direto de cada um escolher ser o que quer, independente do que eu ache dessa escolha, desde que a pessoa não desrespeite ninguém por sua escolha. Entre atos falhos curiosos por parte dela e umas provocações por parte minha, achei aquela água um tanto turva, mas não fazia parte da ação julgar e nunca, é claro, recusar. Afinal, como já havia me ensinado a rua: não se nega receber água de ninguém. Mais adiante um grupo. Ele vai jogar na gente, cuidado! Sílvio Santos quem te mandou, foi? Você estuda na ECO, né? Isso parece coisa de quem estuda arte e só tem curso de arte aqui na ECO, disseram, entre risos e doações. Interrompi duas conversas distintas, juntando dois grupos próximos para falar de uma vez só. Quem tinha deu, quem não tinha lamentou não ter, lamentou a morte, lamentou a pichação. Outro grupo questionou: Vocês já comunicaram às coordenações?

138 141 Não apenas adorei, como respeitei o plural e disse que nós ainda não havíamos feito isso até aquele momento, mas que relataríamos e não apenas na Universidade. Não apenas na Universidade. Depois um grupo com seis pessoas. Ouviram e, em silêncio, sem nenhuma expressão facial que indicasse concordância ou retração, doaram, sendo que em cadeia. Um doava, olhava para o lado, como se incentivando ou autorizando o outro a doar também. Não sei exatamente qual verbo dirigia aquelas águas, mas o balde já pesava cerca de 8 litros. Posteriormente, uma estudante levantou o dedo indicador para a direita, direcionando meu olhar. DIEGO VIEIRA MACHADO, PRESENTE. Dizia um cartaz. Balancei a cabeça. Olhamos um para o outro, por cinco segundos. Segui. Cruzaram meu caminho os cinco rapazes que estavam com mochilas. Agora todos com água, cada um com uma garrafinha. Nos olhamos. Eu com o balde, eles com as águas. Eles passaram. Eu segui. Área dos fiteiros e restaurantes ou sujinho, como falam os estudantes. Um grupo com três rapazes conversava sobre tsunami. Pedi uma gotinha d água. Só tem um gole, serve assim mesmo?. Ô se serve!. Um grupo com quatro meninas e um menino. Ele, com a garrafa na mão, exclamou: ai, minha água com gás Serve igual, mas é só se puder e se quiser, viu, não tem problema não doar, frisei. Não, toma um pouquinho só. É que essa água é mais cara, né? Uma amiga dele interrompeu, mas sem olhar para mim: não entendo porque ele não pega da torneira. Ei, cê sabe que lá no banheiro do contêiner tem várias pias com torneiras, né? Aham. Tem cinco torneiras lá, respondi. Então, disse ela. Então, respondi, prosseguindo. Duas garotas quase correram. Calma. Ufa, a gente pensou que você que ia jogar todo o balde na gente. Vai saber! Achou que era uma pegadinha? Mas não tá na época de trote, disse uma delas, recebendo da outra a resposta: sei lá, a gente tá entre a ECO e o Pinel, vai saber. Elas doaram e eu fiz questão de me localizar: não sou do Pinel, mas sou da ECO, sim, com um agradecimento menos líquido. De volta ao campinho, já completando a ação, uma segurança me ouviu, doou e professou: viado bom é viado bem vivo, perto de mim, me ouvindo, conversando comigo desde pequena, indo pra balada comigo dançar. Aff, meu Deus, até quando? É mulher, é negro, é LGBT Olha, vou passar o rádio pra minha colega do contêiner ficar de olho. Sorri (na verdade gargalhei, derrubei umas gotas sem querer), agradeci e segui. Na cantina, uma garota, longe da bolsa, pediu ao amigo: abre o bolso da direita e dá aí pra ele, amigo. Aqui não tá, não. É no bolso da esquerda, então, ela disse, para a minha preferência. Ele derramou um gole. Não, amigo, a água toda. Toda? Mas é claro! No final do percurso, encontrei dois participantes do mesmo congresso de ciências sociais. Ela não tinha água, ele tinha uma garrafa de 1 litro e meio intacta. Doou metade e completou os 13,6 litros do meu balde, dizendo: que coisa antagônica! Você tá me dizendo que uma pessoa homossexual, bi, trans ou travesti é assassinada a cada 24 horas no Brasil? Que contraditório, ontem

139 142 mesmo eu estava na Lapa: tantas travestis! Pensei que elas estavam seguras. Acho que não, respondi. A amiga interveio: Diego é aquele estampado ali na avenida, numa grafitagem? Não, aquele era outro aluno. Que foi assassinado num assalto no ponto de ônibus. Naquele ponto de ônibus? OMG! Mas podemos nos sentir seguros lá agora?. Espero que sim, vocês e eu. Um silêncio se fez presente e eu fiz a palavra voltar: olha, mas bem-vindos ao Rio de Janeiro. Em seguida perguntaram de onde eu vinha. De Recife. É que nem aqui?. Falei sobre as muitas semelhanças e muitas as diferenças entre Rio e Recife, mas fiz questão de dizer que lá, como cá, pessoas podem ser agredidas e mortas diariamente por conta da sexualidade ou do gênero. Onde vocês vivem não?. Bem, acontece, mas não assim, não ouvimos muito. Sou da Suíça, disse ela. Ele apenas disse que era do Reino Unido, engolindo saliva na sequência, acho que por conta do Brexit. Me despedi e saí andando com cuidado, mas algumas gotas ficaram pelo chão (elas sempre ficam, na verdade). Banheiro masculino do contêiner, quarto box. Com os 13,6 litros de águas e 10 mililitros de água sanitária, eliminei com um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete golpes de esfregão a frase VIADO BOM É VIADO MORTO e sua complementação E VC CONTINUA VIVO? pichadas num banheiro da maior universidade pública brasileira, a mesma em que um aluno foi assassinado em suas dependências. No final, quando despachava a água restante, uma segurança interrompeu: recebi o rádio da minha amiga. Conseguiu? Entra. Tem ninguém além de mim. Que absurdo a gente tem que ficar mais de olho nisso. Eu vou ficar, viu? É que no feminino nunca aparece uma coisa assim, graças a Deus, isso é coisa de banheiro masculino. Entre gotas d água e gotas serenas, entre ditados populares e discursos de ódio que podem igualmente se perpetuar na língua, esta ação, que só tem sentido se for de fluxo, continua num ciclo de coleta, lavagem e escrita que não cessa neste compartilhamento oral, mas prossegue em forma de disparadores: quantos encontros cabem em pouco mais de 13 litros de água? Quantas mãos pesam um balde com cerca de 13 litros de água? Quantas mãos lavam com quase 13 litros de água? Quantas vozes escrevem um texto de aproximadamente 13 litros? Quantos discursos dão conta de lavar um discurso de ódio com 13 litros? Em quantas horas se aglutinam línguas, origens, trabalhos e salivas em mais ou menos 13 litros de água-texto? Os 13,6 litros de água que compõem este texto são dedicados e endereçados ao estudante Diego Vieira Machado e ao gay, à lésbica, a/ao bissexual, à travesti, à pessoa trans ou qualquer outro dissidente de gênero e sexualidade que, com certeza, respeitadas as diferenças de fuso horário, foi morto hoje em alguma das cidades brasileiras ou que o será até que se conclua este dia, esta leitura, esta hora. A Diego, a elxs, a nós, vítimas em potencial, com toda a potência de nossas gotas. Quanto a água que a acompanhou, peço que a engula ou que a despache.

140 143 Gota, foto de Miro Spinelli. No chão que pavimentou esta Linha, a derradeira da dissertação, os conceitos de massa e multidão foram apresentados como duas vertentes cinético-políticas da movimentação nas cidades, sendo a mobilidade lida, portanto, sob uma perspectiva córica para além da coreográfica discutida na Linha I. Se a ideia de massa é correlata a uma coralidade uníssona e pode ser traduzida pelos contingentes em trânsito pela cidade, seguindo o fluxo como gado obediente nas ruas e nos transportes coletivos, a multidão, coro dissonante, reúne singularidades múltiplas e multiplicidades singularidades, entrecruzando os trânsitos entre eu e nós. Essa polissemia de movimentos, que pode estabelecer multidão e coro dionisíaco como um par sinonímico, foi exemplificada através das descrições de Massa Ré e Gota. Se na primeira a noção córica se evidencia como traço propriamente estético (um coro andando de costas), na segunda a dissonância é uma produção coletiva materializada em água. Essa tentativa de abarcamento de dissonantes vozes talvez coincida com um traço da performance urbana em seu movimento propulsor de multidão: que os

141 concidadãos sejam agentes múltiplos que veem e vivem a cidade como o coro vedor de que falava Nietzsche. Coro produtor da cidade que o move e que ajuda a mover, sendo, portanto, multidão. 144

142 145 Confluente-afluente Ao longo do trajeto desta dissertação, nós estivemos você, eu, colaboradores, transeuntes, passageiros, trabalhadores de transportes coletivos, teóricos, artistas e materiais como um bando imbricado na indissociabilidade contínua entre teoria e prática, na intersecção constante entre arte da performance e mobilidade urbana. A pé, correndo, andando de costas, transitando dentro de ônibus, trens, metrôs e até num carrinho de compras, urdimos pensamentos de áreas diversas performance, dança, teatro, linguística, filosofia, antropologia, arquitetura, sociologia, psicanálise, geografia para transitarmos entre os papéis de pedestre, espectador, cartógrafo, escritor, leitor e performers, conforme desejei e continuo desejando, juntos. Na Plataforma de acesso sem catracas, precisei conduzir rápidas paragens em Recife e em Lisboa para resgatar o início do meu interesse pela performance a partir da observação de pedintes, religiosos, vendedores ambulantes e artistas transformando transportes coletivos em espaços performativos. Em seguida, já inseridos no cenário urbano da cidade do Rio de Janeiro, conhecemos os dois conceitos basilares para a prática teórica e a teoria prática que se desdobraram nesta pesquisa: cartografia (corpo vibrátil) e programa performativo, acrescentando aos performers de transportes coletivos outros corpógrafos: ciclistas, skatistas, carroceiros e, claro, os artistas da performance. Então, na Linha I, considerando as ruas e os transportes coletivos como espaços de trânsito nesta dissertação, nos debruçamos sobre as primeiras, verificando como as instâncias de poder público projetam disposições coreográficas rotineiras para controlar a mobilidade do espaço urbano. Nesse curso, discutimos a mobilidade como um projeto de dominação do tempo e do espaço, extensivamente, e averiguamos como na vigente ilusória automobilidade uma autonomia pode ser cartografada especialmente pelos carroceiros e carregadores: aspecto que ecoou nas peças Pago 4 e 10 e Pago 4 e 30. Na Linha II, os conceitos de coreo-polícia e coreo-polícia, de André Lepecki, já introduzidos no meio da rua durante a Linha I, foram fundamentais para embarcarmos nos transportes e entendermos como controle e dissenso se retroalimentam nesses espaços que, simultaneamente, impõem molduras comportamentais do macropoder e convivem com práticas dissensuais de implementação micropolítica. Nesse movimento de convivência com as regras e conivência com os desvios, através da peça Estação Adílio apostamos que performances em transportes coletivos podem movimentar negociações éticas para a experimentação estética e, claro, para a cidade que se reúne passageiramente e em movimento.

143 146 Adiante, na Linha III, abrimos todas as janelas do nosso ônibus, realizamos baldeações entre trens ou ficamos sentados em calçadas da cidade para acompanhar trabalhos de outros artistas contemporâneos Eleonora Fabião, Flávia Naves e Crack Rodriguez que, além de alimentarem minha prática, conduziram para a formulação do conceito de anti-programas performativos. Nesse ponto, percebemos que os programas performativos, conforme conceituação de Eleonora Fabião, motorizam a experimentação e abrem janelas para práticas gregárias de concidadania, ao passo que os anti-programas, por meio de enunciados verbais e projeções visuais e arquitetônicas, preservam molduras comportamentais, impondo o paradoxo de uma circulação urbana quadrada. Apesar da antonímia explícita no prefixo, frisamos que, apesar das disputas em jogo, programas e anti-programas não se anulam, mas coexistem em retroalimentação, como controle e dissenso. Posteriormente, na Linha IV, conversamos, dentre outros autores, com Denise Espírito Santo e Milton Santos para entendermos a mobilidade urbana como projeto de segregação social, lendo para isso o legado olímpico do Rio de Janeiro, temática que ressoou nas peças Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro e Transporte Olímpico. Por fim, apostamos que, se por seu turno os planos de mobilidade urbana, como anti-programas que são, coreografam uma massa córica, a experimentação de programas performativos em espaços urbanos pode motorizar a multidão. Assim chegamos à Linha V, na qual, resgatando os corpógrafos já citados nas Linhas anteriores, lançamos uma leitura da movimentação nas cidades sob uma perspectiva córica para além da coreográfica. Para tal, os conceitos de massa e multidão foram lidos como coros apolíneo e dionisíaco numa roda de conversa que reuniu Nietzsche, Negri, Hardt, Virno e Gadelha num mesmo vagão. Além, é claro, da ideia de coralidade expressa de diferentes modos em duas peças: um agrupamento de performers caminhando em contrafluxo e sendo coro dissonante em relação aos transeuntes da cidade ( Massa Ré ); e as singularidades dos passantes entrecruzando-se em suas doações de águas, materializando liquidamente uma multidão transportada num balde vermelho ( Gota ). Passeando por todas essas Linhas, realizando baldeações, esperando em filas de embarque e atravessando estações de transferência, nosso percurso, cartografado por uma inter-relação entre arte da performance e mobilidade urbana, foi orientado pela ideia de vulnerabilidade vibrátil. Este substantivo duplo, que pode reunir sob um escopo gregário todas as práticas lidas e experimentadas ao longo desta dissertação, articula substancialmente a perspectiva de performance aqui adotada em relação à mobilidade urbana: experimentação em que a textura sensível dos corpos atua na partilha do sensível dos espaços públicos, implementando negociações que podem congregar alteridades e fazer vibrar nossos territórios comuns de existência, contornando o quanto se suporta, nessa prática

144 147 cartográfica-corpográfica-performativa, o lançar-se à circulação imparável de afetos e à constante dialogicidade que pulsa no território urbano. Prosseguindo neste caminho, alimentado e vibratilizado pelos pensamentos que costuram esta dissertação e por toda sorte e beleza de encontros que o Mestrado me proporcionou, desejo dar continuidade a esta pesquisa investigando um aspecto de ligação entre performance e mobilidade urbana presente nas entrelinhas deste trabalho: uma das possíveis propriedades da performance urbana, a concatenação inevitável entre oralidade e ação. No meio do espaço urbano, tão sistematizado por palavras escritas, avisos sonoros e projeções visuais e arquitetônicas que orquestram conjuntamente o controle dos corpos, ações performativas podem implementar uma prática gregária corpo a corpo. Nesse movimento de congregação, salienta-se a inevitável co-presença entre passantes e passageiros, acendendo faíscas de concidadania. Colocando em pauta a atividade do ouvido em pé de igualdade à atividade do olhar, parafraseando Benjamin, a performance urbana pode centralizar a vocalização, isto é, um compartilhamento oral que conflua a contracena nas ruas. A esta confluência gregária, desejo, por hora, nomear dramacentrismo. Para isso, terei que revisar toda uma tradição teórica impregnada aos radicais e, quem sabe, descobrir outros modos de palavreá-los, possivelmente assim, em conjunto. Uma primeira ação para desenvolver o conceito pode ser o programa Imbric-ações, através do qual desejo criar performances em duo com vendedores ambulantes, carroceiros, pedintes afluindo pelos espaços públicos nossos corpos e vozes, nossos fazeres cartográficoperformativos. Talvez uma premissa teórica seja inter-relacionar a ideia de uma estética da precariedade, conforme suscitada por Eleonora Fabião, com o conceito de precariado, proposto por teóricos como Paolo Virno. Mas isso é mesmo chão para uma sexta Linha, que poderá intercruzar-se ao longo desta cidade ou estabelecer conexões interurbanas. Por hora, a matéria é puro mistério. Mistério que já vibratiliza o desejo de entrecruzar as vulnerabilidades eu/nós, o que talvez já se expressa na escrita desta aba, confluente-afluente, unindo, em primeira pessoa do plural, você e eu.

145 Gota, foto de Francisco Costa. 148

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