Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
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- Rita Alcaide
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1 TOPONÍMIA DA AMAZÔNIA OCIDENTAL BRASILEIRA: MARCAS DA CULTURA DOS PRIMEIROS DESBRAVADORES NA NOMENCLATURA GEOGRÁFICA ACREANA Alexandre Melo de Sousa (UFAC) RESUMO O objetivo principal deste artigo é discutir alguns aspectos referentes à toponímia dos seringais e colocações acreanas, num enfoque etnolinguístico. Priorizase investigar os nomes que tiveram como fator de influência motivacional a realidade sócio-histórico-cultural do grupo humano que nomeou o espaço, embora não se deixe de pontuar, ainda que panoramicamente, os designativos motivados por fatores físicos. 1. Considerações iniciais No presente artigo objetiva-se discutir alguns aspectos referentes à toponímia dos seringais e colocações acreanas, num enfoque etnolinguístico. Prioriza-se investigar os nomes que tiveram como fator de influência motivacional a realidade sócio-histórico-cultural do grupo humano que nomeou o espaço, embora não se deixe de pontuar, ainda que panoramicamente, os designativos motivados por fatores físicos. Pretende-se, num âmbito geral, verificar de que forma ocorre a inter-relação língua homem cultura no ato de nomear os referidos acidentes humanos. Quando nos propomos estudar a cultura e/ou o conjunto de valores de uma sociedade temos, antes de tudo, que fazer um estudo centrado na língua já que é através dela que são revelados os pensamentos e os costumes dos diferentes grupos humanos. A língua traduz toda uma cultura, traduz todo um universo peculiar com suas implicações psicológicas e filosóficas que é preciso alcançar para enriquecimento da experiência (BORBA, 1984, p. 07). Exemplo disso é o estudo dos designativos escolhidos pelos grupos sociais para nomear o espaço e os elementos físico-geográficos que os cercam. A Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
2 disciplina que se ocupa do estudo de nomes próprios de lugares é a toponímia. Cabe à toponímia estudar a procedência da significação dos nomes dos lugares, levando em consideração aspectos geohistóricos, socioeconômicos e antropolinguísticos que tenham influenciado sua escolha. Portanto, o campo de investigação toponímica não se limita ao aspecto linguístico ou etimológico. 2. O conceito: ciência toponímica Ao designar um lugar com um nome, estabelece-se uma relação binômica, ou seja, uma conexão entre o acidente geográfico (o rio, o igarapé, o município, o seringal etc.) e o nome atribuído a ele, em que as partes formam um todo representativo. Nesse ato de nomeação, diferentes fatores interferem (influenciam, motivam) na escolha do denominativo, tanto de ordem físico-ambiental (as características do próprio acidente), quanto de ordem antropocultural (a cosmovisão do grupo humano). Como disciplina, a toponímia estuda os nomes próprios de lugares (os nomes geográficos) denominados de topônimos. Os especialistas nessa área têm apresentado diferentes conceituações para o referida ramo onomástico. Rostaing (1961 p. 07), por exemplo, conceitua a toponímia como uma ciência cuja finalidade é investigar a significação e a origem dos nomes de lugares e também de estudar suas transformações. Salazar-Quijada (1985, p. 18), por sua vez, concebe a toponímia como o ramo da onomástica, que se ocupa do estudo integral, no espaço e no tempo, dos aspectos: geo-históricos, socioeconômicos e antropolinguísticos que permitiram e permitem que um nome de um lugar se origine e subsista. E Dick (1990, p. 36), por sua vez, define a toponímia como um imenso complexo linguocultural, em que dados das demais ciências se interseccionam necessariamente e não exclusivamente. Para ela, apesar desse caráter eclético da disciplina, que parece inicialmente se chocar com o pensamento de Charles Rostaing, que via na linguística o princípio essencial da toponímia, não há contradi- 136 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
3 ção entre as duas posições. A toponímia, em sua feição intrínseca, deve ser considerada como um fato do sistema das línguas humanas. 3. Topônimo: aspectos formais e funcionais Como foi dito anteriormente, a toponímia possui como eixo central de seus estudos o signo toponímico (nome próprio de lugar), que é o signo linguístico na função de indicador ou identificador de um espaço (acidente) geográfico. Nessa função, segundo Dick (1980, p. 290), o topônimo representa uma projeção aproximativa do real, tornando clara a natureza semântica (ou transparência) de seu significado. Segundo Isquerdo (1997, p. 33), contudo, a busca da motivação no signo toponímico não é tão simples. A pesquisadora reconhece essa complexidade afirmando que: [...] a diversidade de influências culturais na formação étnica da população, como também, as especificidades físicas de cada região tornam dificultosa toda tentativa de explicação das fontes geradoras dos nomes de lugares e de acidentes geográficos. Em vista disso, o esclarecimento da origem de determinados topônimos fica na dependência da recuperação, não raras vezes, de fatores extralinguísticos como as características geossocioeconômicas de uma região e, consequentemente, as marcas étnicas e sociais da população habitante em tal espaço físico-cultural. Sousa (2007a, p. 36), apoiado em Dick (1992), acrescenta que a motivação toponímica possui um duplo aspecto que transparece em dois momentos: primeiramente, na intencionalidade do denominador ao selecionar o nome, na qual concorreriam circunstâncias de ordem objetiva ou subjetiva, e em seguida na origem semântica da nomeação, no significado intrínseco a ela, que se revela de modo transparente ou opaco, apontando para as mais diversas origens. Assim, considerando-se o nome próprio [de lugar] como fato da língua (como um signo linguístico que identifica e guarda uma significação precisa de aspectos físicos ou antropoculturais), o estudo toponomástico servirá como fonte de conhecimento da língua falada numa dada região e como recuperação de fatos físico-geográficos e/ou sócio-históricoculturais, em parte ou em sua totalidade, por que passaram os povos que habitaram, temporária ou definitivamente a região pesquisada (Sousa, 2007a, p. 36). Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
4 Desse modo, no ato de nomeação, mecanismo influenciado externa ou subjetivamente, deixa transparecer nos topônimos pistas semânticas das mais diferentes procedências, tornando perceptível um estreito vínculo entre o objeto denominado e seu denominador. 4. Categorias taxionômicas: motivação semântica O sintagma toponímico (ou topônimo) apresenta-se em formas e funções variadas. Estruturalmente, de acordo com Dick (1990, p. 10), o topônimo compreende dois elementos: o termo (elemento) genérico e o termo (elemento) específico. O primeiro corresponde ao nome do próprio acidente geográfico que será denominado; e o segundo, corresponde ao elemento que identifica; singulariza o acidente. Por exemplo, no sintagma Seringal Alagoas : Seringal é o termo genérico e Alagoas, o específico. O aspecto funcional do sintagma toponímico, por sua vez, constitui sua principal característica. Em Dick (1990, p. 367), são a- presentados os princípios teóricos de análise toponímica e uma discussão sobre dois planos de investigação o diacrônico e o sincrônico considerando que a investigação no âmbito do segundo plano, permite o exame das séries motivadoras, que conduziram à elaboração das taxes toponímicas, vinculadas, de modo genérico, aos campos físico e antropocultural. Em outra obra, Dick (1992), a pesquisadora apresenta uma reformulação do modelo de classificação taxionômica para os topônimos o primeiro modelo foi apresentado em Dick (1975), contemplando 27 (vinte e sete) taxes: 11 (onze) relacionadas com o ambiente físico taxionomias de natureza física, e 16 (dezesseis) relacionadas com os aspectos sócio-histórico-culturais que envolvem o homem taxionomias de natureza antropocultural. As referidas categorias taxionômicas são descritas e exemplificadas a seguir: 4.1. Taxionomias de natureza física (a) Astropotopônimos: topônimos relativos aos corpos celestes em geral. Ex. Cruzeiro do Sul (AC); 138 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
5 (b) Cardinotopônimos: topônimos relativos às posições geográficas em geral. Ex. Avenida Leste-Oeste (CE); (c) Cromotopônimos: topônimos relativos à escala cromática. Ex. Igarapé Preto (AC); (d) Dimensiotopônimos: topônimos relativos às dimensões dos acidentes geográficos. Barra Longa (MG); (e) Fitotopônimos: topônimos relativos aos vegetais. Ex. Flores (PE); (f) Geomorfotopônimos: topônimos relativos às formas topográficas. Ex. Morros (MA); (g) Hidrotopônimos: topônimos relativos a acidentes hidrográficos em geral. Ex. Cachoeirinha (RS); (h) Litotopônimos: topônimos relativos aos minerais ao à constituição do solo. Ex. Areia (PB); (i) Meteorotopônimos: topônimos relativos a fenômenos atmosféricos. Ex. Chuvisca (RS); (j) Morfotopônimos: topônimos relativos às formas geométricas. Ex. Volta Redonda (RJ); (l) Zootopônimo: topônimos referentes aos animais. Ex. Cascavel (CE) 4.2. Taxionomias de natureza antropocultural (a) Animotopônimos (ou nootopônimos): topônimos relativos à vida psíquica, à cultura espiritual. Ex. Vitória (ES); (b) Antropotopônimos: topônimos relativos aos nomes próprios individuais. Ex. Barbosa (SP); (c) Axiotopônimos: topônimos relativos aos títulos e dignidades que acompanham nomes próprios individuais. Ex. Coronel Ezequiel (RN); (d) Corotopônimos: topônimos relativos a nomes de cidades, Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
6 países, estados, regiões e continentes. Ex. Seringal Quixadá (AC); (e) Cronotopônimos: topônimos relativos aos indicadores cronológicos representados pelos adjetivos novo(a), velho(a). Ex. Nova Aurora (GO); (f) Ecotopônimos: topônimos relativos às habitações em geral. Ex. Chalé (MG); (g) Ergotopônimos: topônimos relativos aos elementos da cultura material. Ex. Jangada (MT); (h) Etnotopônimos: topônimos relativos aos elementos étnicos isolados ou não (povos, tribos, castas). Ex. Capixaba (AC); (i) Dirrematopônimos: topônimos constituídos de frases ou enunciados linguísticos. Ex. Passa e Fica (RN); (j) Hierotopônimos: topônimos relativos a nomes sagrados de crenças diversas, a efemérides religiosas, às associações religiosas e aos locais de culto. Ex. Capela (AL). Essa categoria subdivide-se em: (i) Hagiotopônimos: nomes de santos ou santas do hagiológio católico romano. Ex. Santa Luzia (BA) (ii) Mitotopônimos: entidades mitológicas. Ex. Exu (PE); (l) Historiotopônimos: topônimos relativos aos movimentos de cunho histórico, a seus membros e às datas comemorativas. Ex. Plácido de Castro (AC); (m) Hodotopônimos: topônimos relativos às vias de comunicação urbana ou rural. Ex. Ponte Alta (SC); (n) Numerotopônimos: topônimos relativos aos adjetivos numerais. Ex. Dois vizinhos (PR); (o) Poliotopônimos: topônimos relativos pelos vocábulos vila, aldeia, cidade, povoação, arraial. Ex. Vila Nova do Mamoré (RO); (p) Sociotopônimos: topônimos relativos ás atividades profissionais, aos locais de trabalho e aos pontos de encontro da comunidade, aglomerados humanos. Ex. Pracinha (SP); (q) Somatopônimos: topônimos relativos metaforicamente ás partes do corpo humano ou animal. Ex. Braço do Trombudo (SC). 140 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
7 Vale assinalar, ainda, as contribuições que outros pesquisadores brasileiros oferecem à proposta classificatória de Dick (1992). Isquerdo (1996), por exemplo, propõe uma subclassificação para a taxe dos animotopônimos: animotopônimos eufóricos (marca uma impressão agradável, otimista, ex. Seringal Alegria) e animotopônimos disfóricos (marca uma impressão desagradável, ex. Seringal Solidão). Lima (1998), por sua vez, apresenta uma subdivisão para os hagiotopônimos: hagiotopônimos autênticos (nomes de inspiração religiosa, ex. Colocação São Mateus) e hagiotopônimos aparentes (nomes de inspiração política, ex. Rio São Luiz homenagem a um padre). Já em Francisquini (1998), encontra-se o acréscimo das seguintes taxes: acronimotopônimos (topônimos formados por siglas), estamatotopônimos (topônimos relacionados aos sentidos, ex. Seringal Vista Alegre), grafematopônimos (topônimos formados por letras do alfabeto, ex. Avenida D), higietopônimos (topônimos relativos à saúde, à higiene, ao estado de bem estar físico, ex.) e necrotopônimos (topônimos relativos ao que é ou está morto, à restos mortais, ex. Colocação Cova da Onça). 5. História e cultura acreana Contar os episódios que formam a história acreana é contar a história do descobrimento da hevea brasilienses a seringueira. Nenhum outro elemento pode simbolizar melhor a formação humana e territorial do Acre: foi a partir do produto extraído dessa árvore o látex que contingentes, cada vez maiores, de imigrantes foram o- cupando a região, para o trabalho de extração e comércio do ouro branco, e, no contato com os povos indígenas (habitantes originários da região), formaram o homem acreano. Inicialmente, a região foi ocupada por populações provenientes de localidades do Amazonas e Grão-Pará, e, posteriormente, de imigrantes nordestinos, o que gerou disputas sangrentas entre brasileiros e bolivianos pela posse do território antes, cartograficamente, um apêndice do Amazonas, mas que, graças à vitória dos primei- Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
8 ros, passou a incorporar o Brasil. O processo migratório para a região acreana tem maior impulso entre 1877 e 1879, quando houve a maior crise socioeconômica na Região Nordeste (sobretudo no Ceará), decorrente da forte seca que a assolou. Essa crise, somada ao incentivo e financiamento pelo Estado do Amazonas, favoreceu a migração desses povos para a região. Lima (s/d, 24) registra que A primeira expedição a chegar em terras acreanas foi a do cearense de Uruburetama, João Gabriel, com sua gente, no navio vapor Anajás, aportando nas barrancas do Acre (Aquiri), fundando os primeiros seringais e formando os primeiros núcleos populacionais. Foi a partir do surgimento dos seringais que a estrutura social acreana foi sendo formada. De acordo com Lima (s/d, 24), a hierarquia social dividia-se da seguinte forma: a família do seringalista, que residia nos barracões, representava a classe social superior; os agregados (família do guarda-livros, do despachante do armazém), que residiam nas periferias, representavam a classe média; e os seringueiros, que residiam nas colocações, representavam a classe baixa. Assim, seringueira, seringal, seringueiro e seringalista são e- lementos imprescindíveis na descrição sócio-histórico-cultural acreana: traduzem o principal motivador (seringueira) da formação espacial (seringal) e dos elementos humanos (seringueiro e seringalista) que favoreceram o surgimento do Estado do Acre. Outros assuntos de grande importância relacionados com a história e a formação da região acreana poderiam ser discutidos aqui, no entanto, dado o enfoque central deste trabalho, preferimos destacar os expostos anteriormente. Antes da chegada dos nordestinos, a região acreana já era habitada por várias nações indígenas, distribuídas em dois troncos linguísticos: a) Pano (nações: kaxinawá, yawanawá, poyanawá, jaminawá, nukini, arara, shanenawá, kutukina, nawas); e, b) Aruak (nações: kulina, ashaninka, manchinery) (Cf. SOUZA, 2005, p ). Os índios pertencentes aos referidos troncos têm procedência peruana e chegaram ao Acre motivados pela intensa perseguição espanhola. Chegando à região, os índios do tronco pano passaram a 142 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
9 dominar a região do Rio Juruá, e os do tronco aruak, a região do rio Purus. O elemento indígena ou caboclo amazônico, como prefere chamar Lima (s/d, p ) constitui o primeiro ramo étnico formador do homem acreano. O segundo ramo étnico é constituído pelo homem nordestino que, como já foi bem assinalado anteriormente, fugindo da seca que castigava impiedosamente sua região de origem e visando a uma vida melhor, economicamente falando, abrigou-se em terras acreanas na função de seringueiro. O povoamento da região acreana, desde a primeira fase migratória, resultou, inicialmente, do encontro do elemento indígena com o elemento nacional nordestino. Os nativos transmitiram aos i- migrantes conhecimentos e habilidades imprescindíveis para a sobrevivência e o trabalho no meio florestal que era absolutamente diverso de sua terra de origem. O seringueiro, isto é, o grupo social representante da Amazônia, trouxe um conjunto de traços culturais dos lugares de onde emigrou e, em contato com o novo ambiente, sofreu um processo de aculturação, surgindo assim novos valores na indústria extrativa da borracha. (COÊ- LHO, 1982, p. 45) A influência do nativo sobre o conquistador, segundo Rancy (1992, p ), está refletida: a) na alimentação: aproveitamento dos recursos naturais; b) na habitação: adequada utilização dos produtos florestais na confecção das barracas; c) nos meios de locomoção: abertura de caminhos na selva, ou mesmo na fabricação e utilização de pequenas embarcações; entre outros. Enfim, para garantir sua sobrevivência naquele ambiente, o rude seringueiro assimilou muitos hábitos e valores dos nativos, além dos já citados. Acrescente-se: a) o vocabulário utilizado para a identificação de espécies animais e vegetais, ou para os elementos geográficos que integram o ambiente onde viviam; b) as crenças e lendas existentes na região que, de algum modo, passaram a orientar a vida e o trabalho dos desbravadores da selva. Já o terceiro ramo étnico, segundo Lima (s/d, p ), teve uma participação menor nesse processo de miscigenação. Eram sírios, libaneses, turcos, judeus e outros comerciantes de tradição. Eles Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
10 vinham para o Acre em busca do enriquecimento, através da comercialização da borracha e da castanha. As marcas do branco eurasiano, contudo, podem ser percebidas em certas características físicas do homem genuinamente acreano, bem como no processo civilizatório dessa população nortista. Boa parte desses estrangeiros integrava o sistema de exportação da borracha, outros atuavam como seringalistas, seringueiros, marreteiros chegando até a possuir navios e grandes casas comerciais na região. Há que se acrescentar, ainda, um quarto ramo étnico que participou da formação humana do Acre: os paulistas denominação genérica atribuída, pela população, aos imigrantes provenientes da região centro-sul do Brasil, na década de 1970, que aportaram na região acreana com o propósito de estabelecer fazendas e desenvolver atividades pecuárias. Esses quatro grupos étnicos constituem o caráter multicultural da população acreana, misto de tradições indígenas locais com as tradições dos migrantes nordestinos que povoaram a região, a partir do início do século XX, dos estrangeiros e dos migrantes de outras regiões do Brasil. Os referidos grupos, ao se acrianizarem, foram, paulatinamente, perdendo uma parcela de sua identidade cultural original, mas, ao mesmo tempo, absorvendo costumes, comportamentos e crenças da cultura nativa, exigidos pelas próprias condições ambientais e sociais. 6. A metodologia Os dados apresentados e analisados neste trabalho, selecionados do corpus do Projeto Atlas Toponímico da Amazônia Ocidental Brasileira, uma das pesquisas em operacionalização no CEDAC/ UFAC (Centro de Estudos Dialetológicos da Universidade Federal do Acre), tiveram como fontes principais: a) folhas cartográficas do Estado do Acre (2006) e da Amazônia Legal, disponibilizadas pelo IBGE/AC; b) dados do Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre (2000a, 2000b), fornecidos pela Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente 144 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
11 (SECTMA). Para a catalogação e a análise dos dados foram seguidas as o- rientações de Dick (1992, 1996), que leva em consideração dois critérios analíticos: o aspecto taxionômico (que envolve as 27 classificações taxionômicas) e o aspecto linguístico (que envolve o campo etnodialetológico e o histórico cultural). As categorias taxionômicas são distribuídas em dois grandes grupos: a) Taxes de natureza física e b) Taxes de natureza antropocultural descritas e exemplificadas anteriormente (seções 3.1 e 3.2). 7. Análise de dados Como o objetivo deste trabalho é mostrar reflexos da cultura nordestina na toponímia acreana, em especial nos designativos dos seringais, daremos enfoque aos topônimos incluídos nas taxionomias de natureza antropocultural. Na referida categoria destacaram-se as seguintes taxes: corotopônimos e hierotopônimos Os corotopônimos Os topônimos selecionados do corpus e incluídos entre os corotopônimos deixam transparecer dois aspectos possíveis: o primeiro está relacionado à motivação sofrida pelo denominador (o seringueiro) no ato do batismo. Neste caso, transparece o sentimento de saudade da terra de origem (no caso dos topônimos destacados, as cidades localizadas no nordeste brasileiro) e, que, a partir dessa homenagem, possibilitam a ele manter um vínculo com sua terra natal. O segundo aspecto diz respeito ao processo de miscigenação étnica, que constitui a gênese da formação populacional acreana. Embora os topônimos apresentados a seguir sejam apenas os que fazem referência a cidades nordestinas, é válido esclarecer que outros topônimos foram encontrados no corpus referindo-se a cidades de outras regiões e até de outros países, como: Seringal Mato Grosso, Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
12 Seringal São Paulo, Seringal Bolívia, Seringal Venezuela. São esses os topônimos que fazem referência a cidades nordestinas: Altamira, Redenção, Morada Nova, Apudi, Cajazeiras, Canindé, Fortaleza, Lavras, Pernambuco, Quixadá, Viçosa Os hierotopônimos Nesses topônimos há reflexos, talvez, de uma das maiores características culturais nordestinas: o misticismo religioso. Dadas as condições de vida dos seringueiros acreanos, solitários, na maioria das vezes, num meio florestal, sujeitos aos perigos advindos da própria natureza ou às doenças típicas desses meios, como a malária; é justificável o sentimento de fé e crença religiosa nos seringueiros e em seus familiares. Eis os topônimos desse grupo: Santa Ana, São José, São Filismino, Santa Cruz, Santa Fé, Santa Júlia, Santa Maria, Santa Quitéria, Santo Antônio, São Bento, São João da Barra, São Domingos, São João, São Pedro, São Raimundo. Vale apresentar alguns topônimos incluídos na categoria taxionômica dirrematopônimos, mas que marcam a religiosidade dos seringueiros: Colocação Deus é Bom, Colocação Livre-nos-Deus. 8. Considerações finais Na análise dos topônimos de Natureza Antropocultural (corotopônimos e hierotopônimos), foi perceptível a valorização dos aspectos socioculturais no ato de nomear as colocações e os seringais acreanos. O valor atribuído aos referidos aspectos pode ser justificado pela própria história do grupo humano que formou a população do lugar (e que não difere da dos outros seringais acreanos): famílias que migraram para o local fugindo da seca (no caso dos nordestinos), na esperança de uma vida melhor, para si próprios e para os descendentes, deparando-se com uma realidade físico-geográfica absolutamente diversa daquela de onde migraram, e não só isso, decepcionados com a realidade econômico-social a que estavam sujeitos, chegando quase à escravidão. 146 Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2010
13 Para os seringueiros, portanto, os espaços onde moravam e- ram uma espécie de prolongamento da região de onde tinham saído. O perfil cultural da sociedade acreana, num sentido amplo e generalizante, constitui uma mescla de valores, atitudes, costumes, crenças, conhecimentos etc., que foi sendo construída (e ainda está) desde os primeiros contatos dos imigrantes com os índios que já o- cupavam a região. E, em seguida, com o branco eurasiano e com os paulistas. A cultura acreana, em síntese, foi formada através das trocas de saberes, de práticas e de comportamentos entre esses referidos grupos humanos, especialmente. Esse resultado confirma a tese sapiriana (1969) de que o ambiente (seja físico, seja social) reflete-se na língua. No caso do estudo aqui apresentado, o enunciador do topônimo, no ato do batismo dos acidentes analisados, condicionado por fatores físico-ambientais, transformou uma unidade da língua em um nome próprio, ou seja, de unidade virtual o signo adquiriu a estatuto de fato linguístico, condicionado for fatores extralinguísticos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACRE. Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento ecológico-econômico: recursos naturais e meio ambiente Documento final. Rio Branco: SECTMA, 2000, 2 v. BORBA, F. da S. Introdução aos estudos linguísticos. São Paulo: Cultrix, CALIXTO, V. de O. et al. Acre uma história em construção. Rio Branco: Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto / Secretaria de Educação, COËLHO, E. M. Acre: o ciclo da borracha ( ). Niterói: Dissertação (Mestrado) UFF, DICK, M. V. de P. do A. Toponímia e Antroponímia no Brasil. Coletânea de estudos. São Paulo: Gráfica da FFLCH/USP, Atlas toponímico: um estudo de caso. Actas del XI Congre- Revista Philologus, Ano 16, N 48. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez
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