O RURAL E O URBANO. CONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 35, Natal (RN). Anais... Natal (RN): Sober, p

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1 O RURAL E O URBANO 1 - AS DEFINIÇÕES DE RURAL E URBANO 1 Desde o final do século passado, a modernização, a industrialização e informatização, assim como a crescente urbanização, levaram vários pesquisadores a concluir que estes processos estão provocando o fim das particularidades de determinados espaços e de certos grupos sociais. Questiona-se a identificação do rural como um espaço predominantemente agrícola e se rediscute o papel da agricultura na sociedade atual. 1.1 A definição sociológica do rural Algumas características sociológicas têm sido usadas para definir o meio rural: é um espaço predominantemente não construído pelo homem, o que resulta em práticas e representações particulares a respeito do tempo, do trabalho, da família, da natureza, etc. as relações sociais são basicamente de interconhecimento (todos conhecem todos), resultantes da dimensão e da complexidade específicas das comunidades rurais. É necessário considerar não apenas a área mais ampla na qual esta população está inserida, mas sobretudo as relações que se estabelecem entre o meio rural e a cidade próxima. Estas são muito diversificadas e geram no mínimo três tipos de relações entre o rural e o urbano : a) A população do campo é excluída dos bens e serviços concentrados na cidade, seja porque esta é muito distante dos locais de moradia dos rurais ou porque estes têm pouco meios de locomoção. Esta situação resulta em um isolamento relativo que reforça o modo tradicional de vida; b) O município, por sua reduzida dimensão, não tem capacidade para abrigar os bens e serviços que supostamente deveria ter. São pouco significativas as diferenças objetivas entre o núcleo urbano e a periferia rural, pois mesmo no espaço urbano a divisão do trabalho é restrita e formas de vida são baseadas no interconhecimento; c) A população do campo se apropria da sede municipal, na busca de bens e serviços de que necessita, seja frequentando-a com regularidade ou instalando-se na cidade sua residência, mesmo quando mantém todos os vínculos de trabalho no meio rural. A vivência na cidade integra a dimensão cotidiana e esta dupla inserção influencia os espaços de trabalho, de lazer, de socialização dos filhos, ou seja, o seu modo de vida. 1.2 As definições censitárias A definição do que é espaço rural apresenta diferenças significativas dependendo do país considerado: França: qualquer aglomerado populacional inferior a 2 mil habitantes (inclui todos os habitantes, quaisquer que sejam as atividades que exerçam). Estados Unidos: aglomerado menor que 10 mil hab. e a população residente fora do perímetro urbano de cidade com mais de 50 mil hab. e densidade populacional menor que 100 hab./milha 2. Alemanha: áreas com densidade inferior a 100 hab./km 2 e que não estejam situadas no interior de cidades com mais de 100 mil/hab. Já no Brasil considera-se população urbana as pessoas residentes nas sedes dos municípios e distritos, qualquer que seja o número de habitantes destes ou as profissões. Um pequeno comerciante, residente num village europeu ou norte-americano, sem ser agricultor é um rural; enquanto um agricultor brasileiro que more na cidade (ou na sede de um distrito) é aqui considerado um legítimo urbano. 1 Texto, em grande parte, baseado em WANDERLEY, M. de N. B. O lugar dos rurais: o meio rural no Brasil moderno In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 35, Natal (RN). Anais... Natal (RN): Sober, p

2 Alguns países utilizam a PEA (População Economicamente Ativa) por setor de atividade para diferenciar o rural do urbano. Em Israel, os aglomerados em que dois terços dos chefes de família tenham ocupações não-agrícolas são classificados como urbanos. Na Índia são urbanos os moradores de aglomerados com mais de 5 mil hab., densidade maior que 390 hab./km 2 e pelo menos 75% da população adulta masculina empregada em atividades não-agrícolas. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) utiliza alguns critérios combinados: são predominantemente rurais as comunidades (menor unidade administrativa que no Brasil corresponde ao município) que apresentam densidade demográfica menor de 150 hab./km 2 (para o Japão é de 300 hab./km 2 ) e estão inseridas em regiões em que mais de 50% da população reside em comunidades rurais (GIRARDI, 2008). Veiga (2003) propõe uma nova classificação de rural e urbano no Brasil. Considera como rurais municípios com menos de 100 mil hab. e densidade demográfica menor do que 80 hab/km 2 e municípios que superem esta densidade, mas que tenham menos de 50 mil habitantes. Nesta perspectiva o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos municípios, nos quais residem 30% dos habitantes. 2 - AS DIFERENTES INTERPRETAÇÕES SOBRE A PLURIATIVIDADE A combinação da atividade agrícola (no sentido geral que inclui todo setor agropecuário) com atividades não-agrícolas por uma mesma unidade familiar denomina-se pluriatividade. Para alguns autores, a pluriatividade seria consequência da diminuição do peso da agricultura na manutenção das famílias rurais e significaria a desintegração de algumas formas de agricultura familiar, aquelas que não buscaram se modernizar do ponto de vista tecnológico. Outra vertente que debate os efeitos das atividades não-agrícolas argumenta que esse tipo de prática faz parte das estratégias de reprodução social dos produtores familiares, servindo muito mais como mecanismo de manutenção das famílias e da agricultura por elas desenvolvidas e menos como uma ameaça à forma familiar de produção agrícola 2. Estas diferentes interpretações da pluriatividade e de outros fenômenos recentes na relação rural/urbano serão analisadas a partir das visões de dos pesquisadores José Graziano da Silva e Maria José Carneiro. 2.1 O CONTINUUM RURAL-URBANO 3 Graziano da Silva considerando a diversidade de critérios para definir/diferenciar o rural e o urbano comenta que atualmente: (...) é relativamente arbitrário introduzir um parâmetro de corte relacionado à atividade do indivíduo (se agrícola ou não agrícola) para definir a situação de rural ou urbano do aglomerado onde residem as pessoas. Parece que a distinção entre rural e urbano tem cada vez menos a ver com o tipo de atividade exercida pelos indivíduos que aí residem, mesmo porque o crescimento das atividades não agrícolas nas áreas ditas rurais parece ser uma das tendências mais importantes dos anos 90, tanto nos países desenvolvidos, como na América Latina e no Brasil (GRAZIANO DA SILVA, 1997, p. 120) A análise de dados sobre a origem da renda das famílias que moram na zona rural, no Brasil, mostra que tem aumentado a importância das rendas não agrícolas na composição da renda familiar. A análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1995 mostra que dos 7,5 milhões de domicílios rurais, 24% eram pluriativos e 17% não-agrícolas. Quando se consideram todas as famílias em que 2 CARNEIRO, M.J. Pluriatividade da agricultura no Brasil: uma reflexão crítica. IN: SCHNEIDER, S. A diversidade da agricultura familiar.porto Alegre: Ed da UFRGS, 2006, p Fragmento de texto de GRAZIANO DA SILVA, J. Sobre a delimitação do rural e do urbano no Brasil. In: CONGR. DA SOC. BRAS. DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 35, Natal (RN). Anais... Natal (RN): Sober, p

3 ao menos um de seus membros exerce atividades agrícolas, constata-se que a pluriatividade atinge 35% do conjunto de famílias. No Estado de S. Paulo, as famílias pluriativas têm metade de sua renda proveniente de atividades não agrícolas; e mesmo entre as famílias que trabalham exclusivamente na agricultura, em torno de 25% de suas rendas não são agrícolas (aposentadoria, aluguel, etc.). Cada vez mais também não é um critério fundamental para diferenciar o rural e o urbano, a busca de um local de moradia com acesso a luz elétrica, água encanada, asfalto, e próxima de equipamentos de saúde, educacionais e recreativos. Embora persistam significativas diferenças entre o grau de acesso dos moradores de áreas urbanas e de áreas rurais, as políticas de desenvolvimento rural têm ampliado a disponibilidade à população do campo desses bens e serviços, hoje considerados essenciais para uma vida digna e que nas décadas passadas pareciam ser privilégio das zonas urbanas. Todavia, as rendas obtidas das atividades não agrícolas no meio rural e a renda média per capita no campo continuam a ser muito inferior à das cidades, tanto nos países centrais como naqueles menos desenvolvidos. Ou seja, a distinção entre o rural e o urbano parece ser hoje mais relacionada a diferenças quantitativas entre níveis de renda e grau de acesso a determinados bens e serviços, do que diferenças qualitativas entre dois territórios. Por isso a idéia de dois mundos que se opõem vai cedendo lugar à idéia de um continuum espacial, seja do ponto vista de sua dimensão geográfica e territorial, seja de sua dimensão econômica e social. (GRAZIANO DA SILVA, 1997, p.120-1) Pesquisas mais recentes, como a de Nascimento (2007) 4, indicam que o crescimento da pluriatividade no Sul do Brasil, enquanto estratégia complementar da renda dos produtores familiares, depende das concepções e ações das políticas públicas com conteúdo que privilegie os aspectos sociais; enquanto no Nordeste o crescimento da pluriatividade está ligada à pobreza no interior da região (e ao menor acesso às políticas públicas cabe acrescentar) RURALIDADE: NOVAS IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO 5 Carneiro (1997) também considera cada vez mais difícil delimitar fronteiras entre o urbano e o rural a partir de atividades econômicas ou mesmo de hábitos culturais. Para a autora esse processo, no entanto, não resulta numa homogeneização que reduziria a distinção entre o rural e o urbano a um continuum dominado pela cena urbana, como já mostrado por pesquisas relacionadas à realidade européia e à realidade brasileira (CARNEIRO, 1997, p.147). Para a autora não devem ser desprezados os efeitos da racionalidade urbana, a homogeneização dos produtos e processos de trabalho da produção capitalista, intensificados pela globalização da economia, mas é precipitado concluir que tais processos resultarão no desaparecimento das especificidades do agrário e na uniformização das condições de vida no campo e na cidade em todas as regiões. Pesquisas em países desenvolvidos demonstraram a rápida adaptação do agricultor familiar ao processo de modernização; e a contribuição da cultura desses produtores na formulação de saídas para a crise da economia e do ecossistema provocadas pelas medidas modernizadoras, ou seja, a manutenção de tradições culturais não é incompatível com a modernização da sociedade. Para Carneiro (1997, p.152) o crescimento da pluriatividade, no Brasil, não deve ser interpretado apenas como tendência de desaparecimento do agricultor em tempo integral ou mais a uma forma de exploração da mão-de-obra rural, mas também uma reorientação da capacidade produtiva da população 4 Nascimento, C. A. (2007) Perspectivas para a pluriatividade das famílias rurais no Nordeste e no Sul do Brasil: pobreza rural e políticas públicas In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA SEP, 12, São Paulo (SP). Disponível em: acesso em maio de Resumo livre de parte do texto de CARNEIRO, Maria J. Ruralidade: novas identidades em construção In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 35, Natal (RN). Anais... Natal (RN): Sober p

4 residente no campo que se expressa em novas formas de organização da atividade agrícola, como uma alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano e ao padrão de desenvolvimento agrícola dominante. Há também um conjunto de fenômenos que se refere à procura crescente de formas de lazer ou de meios alternativos de vida no campo, por pessoas vindas da cidade. Entre seus efeitos estão a ampliação das possibilidades de trabalho para a população rural e a maior integração de sistemas culturais distintos. A transformação da natureza em mais um bem de consumo toma a forma de turismo rural. Em alguns casos a agricultura passa ser uma atividade complementar, voltada para a manutenção da família e dos hóspedes. As transformações na comunidade rural provocadas pela intensificação das trocas com o mundo urbano (pessoais, simbólicas e materiais) não resultam sempre na descaracterização de seu sistema social e cultural, tornando indistintas as diferenças entre a cidade e o campo. As novas experiências contribuíram para ampliar a diversidade desta sociedade, mas esta heterogeneidade social ainda que produza uma situação de tensão, não descaracteriza necessariamente a cultura local. Não podemos entender a ruralidade hoje somente a partir da penetração do mundo urbano industrial no que era definido como rural, mas também através do consumo pela sociedade urbano-industrial, de seus bens simbólicos ou materiais e de práticas culturais, reconhecidos como próprios do chamado mundo rural. Mais do que redefinir fronteiras entre o rural e o urbano, é necessário buscar a partir do ponto de vista dos agentes sociais, os significados das práticas sociais que concretizam essa interação e que proliferam tanto no campo como nos grandes centros urbanos, tais como a pluriatividade, os neorurais, a revalorização dos produtos artesanais, a cultura country, a agricultura urbana, a agroecologia, etc. Esta reflexão nos leva a pensar a ruralidade como um processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local a partir da incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo resulta também na apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural. Este duplo movimento contribui para alimentar a sociabilidade e reforçar os vínculos e valores ligados à dimensão local. A noção de localidade é ainda uma referência importante para qualificar as relações sociais e será tão mais forte quanto mais consolidada for a identidade do grupo, o sentimento de pertencimento a uma dada sociedade local, a um território (comunidade, município ou região). O reconhecimento de um determinado espaço como próprio ao indivíduo, à família e ao grupo, é feito pela memória coletiva herdada de gerações anteriores. Neste sentido, o movimento de resgate de determinadas práticas do passado, cujo registro pertence somente aos mais velhos, pode oferecer saídas alternativas à crise do modelo produtivista na agricultura sem, contudo, significar uma volta ao passado. Essa recuperação de aspectos do passado ou da tradição aponta para respostas concretas e viáveis (não apenas no âmbito da economia, mas também da sociedade) para a crise da modernização agrícola. 2.3 MULTIFUNCIONALIDADE DA AGRICULTURA Um conceito importante para compreender esses processos é o de multifuncionalidade da agricultura ou dos espaços rurais. Esta noção amplia o campo das funções sociais da agricultura, que deixa de ser entendida apenas como produtora de bens agrícolas ou mesmo de bens econômicos privados. A agricultura se torna responsável também pela provisão de bens públicos como a conservação dos recursos naturais (água, solos, biodiversidade) e do patrimônio natural (paisagens), bem como pela qualidade dos alimentos e pela manutenção do patrimônio cultural. A unidade de produção agrícola pode oferecer ainda bens mercantis diferenciados, como o agroturismo e a produção/manufatura de produtos caseiros e artesanais. Além disso, a agricultura cumpre um importante papel de coesão social, mais significativo e mais complexo que a própria criação de empregos agrícolas. Ou seja, nesta perspectiva a noção de multifuncionalidade estabelece uma articulação entre território, agricultura e desenvolvimento sustentável. (MALUF, 2002) 6. 6 MALUF, R. S. O enfoque da multifuncionalidade da agricultura: aspectos analíticos e questões de pesquisa. In: LIMA, D. M. A., WILKINSON, J. (Orgs.) Inovação nas tradições da agricultura familiar. Brasília: CNPq/ Paralelo 15, p

5 Questões sobre o texto O Rural e o Urbano 1. Entre os diversos critérios para diferenciar o rural e o urbano, qual(is) o grupo considera mais adequado(s) para a realidade brasileira? Comente. 2. Quais as diferenças de interpretação entre os dois autores (Graziano da Silva e Maria José Carneiro) sobre o que está acontecendo no meio rural nas últimas décadas? 3. A partir da leitura do texto, procure explicar a distinção entre pluriatividade e multifuncionalidade. 4. Essas mudanças que estão ocorrendo no meio rural: a) contribuem para reforçar ou descartar a necessidade da reforma agrária no Brasil? Explique. b) requerem alterações na formação profissional de ciências agrárias? Comente. 5