Perspectivas sobre a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais



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Transcrição:

1 Perspectivas sobre a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais Sara Maria Alexandre Silva Felizardo Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Viseu A educação de crianças e jovens com necessidades educativas especiais foi, durante muito tempo, uma temática residual no contexto das grandes questões do sistema educativo. A escola com orientação inclusiva enquadra-se no princípio da igualdade de oportunidades educativas e sociais, no âmbito de uma escola aberta e capaz de se adaptar com eficácia à diversidade dos seus alunos. No presente trabalho pretendemos fazer uma reflexão sobre a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais, tendo como pano de fundo o quadro sociopolítico e legal e as respostas educativas que têm sido adoptadas face aos desafios da educação inclusiva e do seu papel na luta contra a exclusão social. Hodiernamente assistimos a um momento de viragem, a um período de moratória, caracterizado por uma série de incertezas e paradoxos, quer no plano dos discursos, quer ao nível das práticas, que importa analisar e reflectir à luz da abordagem inclusiva. Palavras-chave: Necessidades Educativas Especiais; Educação Especial; Educação Inclusiva; Inclusão 1. Introdução A matriz conceptual da pessoa com deficiência tem sido perspectivada num plano de construção social, sobretudo dependente dos grandes eixos culturais do contexto económico e sócio-político. A abundante literatura, a nível nacional e internacional, sobre o tema educação inclusiva, confirma as tendências actuais em matéria de princípios, políticas e práticas educativas. O conceito inclusão entrou nos discursos dos políticos e outros actores do sistema educativo que, com uma veleidade, por vezes pouco consciente, caracterizam os modelos e práticas vigentes como inclusivos e, no entanto, numa análise atenta, percebemos formas subtis de exclusão ou segregação, que subsistem nos sistemas educativos. A Declaração de Salamanca, documento de referência da educação inclusiva, continua actual quando conclui Por um tempo demasiado longo, as pessoas com deficiência têm sido marcadas por uma sociedade incapacitante que acentua mais os seus limites do que as suas potencialidades (UNESCO, 1994). A utilização das formas verbais têm sido e acentua remetem para um inequívoco prolongamento do passado no presente, em lugar das formas do pretérito foram e acentuou respectivamente, e

2 que são elucidativas do longo caminho que ainda falta percorrer. Será que alguma vez conseguiremos sistemas e estruturas verdadeiramente inclusivas? Será uma utopia? Talvez sim, ou talvez dependa somente da vontade, envolvimento e participação de todos os actores implicados no desiderato da inclusão escolar e social. O percurso em direcção à educação inclusiva tem sido tortuoso e os desafios são distintos segundo os contextos sociais, políticos, institucionais e locais. 1. Percurso(s) da Educação Especial: Um olhar sobre o contexto internacional As percepções e atitudes face às pessoas com deficiência têm sido desenvolvidas em função dos quadros de apreensão do real dos contextos sociais. Na Antiguidade clássica, os registos permitem-nos perceber que as crenças religiosas influenciavam o grau de ameaça social do diferente e o seu aniquilamento era defendido e globalmente aceite como forma de proteger a sociedade. Na Idade Média, as atitudes variavam desde a piedade, protecção, ou ainda, como estando sob alguma influência maligna (Winzer, 1993). Às atitudes de exclusão, seguiram-se as de segregação, características do período da institucionalização da educação especial. O paradigma médico com início no século XIX expandiu-se até meados do século XX. A sociedade adquiriu uma maior consciência da necessidade de prestar apoio às pessoas com deficiência, embora este apoio tivesse um carácter mais assistencial do que educativo (Jiménez, 1997). Apesar do paradigma médico ter libertado as pessoas com deficiência de um conjunto de crenças e superstições, colocou outros constrangimentos. A noção de deficiência, tendo subjacente o carácter duradouro ou permanente de uma anormalidade física e a incapacidade funcional que ela implica, levou a que fossem adoptadas respostas exclusivamente centradas no indivíduo, negligenciando factores relacionados com o contexto (Martins, 2004). No final da década de cinquenta, os movimentos associativos de pais começaram a proliferar, em especial, na Europa e nos Estados Unidos da América, tendo sido criada a National Association of Retarded Children (NARC), cujo objectivo era reivindicar a melhoria das oportunidades e das condições sociais e educacionais para as crianças com deficiência (Winzer, 1993; Jiménez, 1997). Salientamos, ainda, a influência de documentos internacionais, referências marcantes nos direitos da pessoa humana, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948 e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1959 (aprovados pela Organização das Nações Unidas).

3 Na década de setenta, a crescente consciencialização dos efeitos nefastos e estigmatizantes do sistema paralelo de Educação Especial, potenciou o desenvolvimento de movimentos pró-direitos sociais, que contribuíram para a (re)conceptualização da Educação Especial e uma subsequente alteração do quadro legal e das modalidades educativas de carácter segregador (Stainback & Stainback, 1996; CNE, 1999). Neste contexto, assinalamos dois documentos de referência a nível internacional, cujos contributos tiveram repercussões marcantes no sentido da integração dos alunos com necessidades educativas especiais: o Education for All Handicapped Children Act - Public Law 94-142, publicada nos EUA, em 1975 e o Warnock Report, publicado no Reino Unido, em 1978. A Public Law (94-142) determinava que o ensino ministrado aos alunos com deficiências tivesse lugar num ambiente o menos restritivo possível, com a sua integração na classe regular. No Reino Unido, as investigações no âmbito do Warnock Commitee of Enquiry in to the Education of Handicapped Children and Young People, contribuíram para um novo modelo psico-pedagógico e uma consequente alteração na terminologia, propondo o termo crianças com necessidades educativas especiais (Ainscow, 1998; Correia, 1997). Na década de oitenta, ocorreram importantes alterações no âmbito dos direitos das pessoas com deficiência e da sua integração: o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, aprovado pela Organização das Nações Unidas, em 1981 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1989, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ratificada por mais de 120 países, entre eles Portugal, em 21 de Setembro de 1990). A Conferência Mundial sobre a Educação para Todos realizada em Jomtien (Tailândia), em 1990, constituiu um passo importante no estabelecimento de princípios e estratégias no âmbito da inclusão. No entanto, a educação com orientação inclusiva recebeu um impulso decisivo com a Declaração de Salamanca (Declaração Final da Conferência da UNESCO, 1994), aprovada em 1994, subscrita por diversos países, incluindo Portugal, e que situa a questão dos direitos dos alunos com necessidades educativas especiais, no contexto mais vasto dos Direitos do Homem (UNESCO, 1994). A sua concepção foi orientada pelo princípio da inclusão e o reconhecimento da necessidade de construir uma Escola para Todos, reforçando que todos os alunos devem aprender juntos, sempre que possível, independentemente das dificuldades e das diferenças que apresentam.

4 A escola inclusiva é, pois, um espaço onde a diversidade social, educativa e cultural de cada aluno é reconhecida e valorizada e, consequentemente, assumida no âmbito dos processos de ensino-aprendizagem e na adopção de estratégicas pedagógicas diferenciadas. 2. Percurso(s) da Educação Especial: Um olhar sobre o contexto nacional No contexto nacional, as atitudes e percepções face à pessoa com deficiência seguiram os mesmos padrões de exclusão e segregação. Nas primeiras décadas do século XX, a elevada taxa de analfabetismo contribuiu para uma reduzida atenção para com a educação especial. As poucas respostas que surgiram na altura foram especialmente dirigidas a alunos com deficiências sensoriais. Nos anos sessenta, a oferta educativa para as crianças e jovens com deficiência era escassa, o que levou à emergência de movimentos de pais, médicos e professores, que se organizaram em associações e criaram várias estruturas educativas, por categorias de deficiência, instituições particulares sem fins lucrativos, que tinham o apoio do Ministério da Segurança Social (Leitão, 2007). Na década de setenta, contrariamente ao que se passava no contexto internacional, a evolução legislativa foi pouco significativa, e o movimento no sentido da integração das crianças com deficiência, foi pouco expressivo. No entanto, assinalamos a Constituição da República Portuguesa, em 1976. Nesta lei fundamental, as pessoas com deficiência são particularmente consideradas nos artigos 71.º, 73.º e 74.º, com a salvaguarda dos direitos ao ensino, à igualdade de oportunidades e a uma política nacional de prevenção, reabilitação e integração social. Na década de oitenta, a Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º46/86, de 14 de Outubro) revela uma influência marcante da Public Law (94-142) e do Warnock Report e uma perspectiva de cariz integrador. Estabelece o quadro geral do sistema educativo, os seus princípios gerais e considera a Educação Especial como uma modalidade especial de educação escolar, que visa a recuperação e integração sócioeducativas dos alunos com necessidades educativas específicas (Art. 17.º). A exemplo da maior parte dos países europeus, a década de noventa foi pródiga em alterações significativas no quadro legislativo. São implementados diplomas importantes, nomeadamente, o Decreto-Lei n.º 35/ 90, de 25 de Janeiro, referente à escolaridade obrigatória e à sua gratuitidade. O Decreto-Lei n.º 319/91, de 23 de Agosto apresenta, no seu articulado, princípios inovadores no âmbito da integração escolar das

5 crianças com necessidades educativas especiais, enfatizando o modelo pedagógico, o conceito de necessidades educativas especiais e a crescente responsabilização da escola regular face à educação das crianças com necessidades educativas especiais. Segundo Correia (1999), este documento, apesar das suas virtualidades e avanços, apresenta algumas omissões e até ambiguidades, ao não incluir as categorias de educação especial e ao não operacionalizar conceitos como os de situações mais ou menos complexas, gerando incertezas interpretativas na identificação do problema do aluno e, consequentemente, na prestação dos serviços mais adequados. O Despacho 105/97, de Julho de 97, estabelece o enquadramento normativo dos apoios educativos, adoptando um conjunto de princípios com orientação inclusiva, congruente com a Declaração de Salamanca (1994). O Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, sobre a reorganização curricular do ensino básico, distingue, nos artigos 10º e 11º, os alunos com necessidades educativas de carácter permanente e a diversificação das ofertas educativas abrindo, assim, o caminho à gestão flexível do currículo e a sua adequação à especificidade dos alunos. Correia (1999) classifica as necessidades educativas especiais a partir do tipo de adaptações a implementar, considerando dois grupos distintos, as necessidades educativas especiais permanentes, as quais exigem adaptações generalizadas do currículo às características do aluno e se mantém durante grande parte ou todo o percurso escolar do aluno; e as necessidades educativas especiais temporárias, que exigem modificação parcial do currículo escolar, adaptando-o ao aluno num determinado momento do seu desenvolvimento. Com um enquadramento conceptual próximo, Simeonsson (1994, citado por Bairrão, 1998), organiza as necessidades educativas especiais de acordo com os problemas de baixa/ alta frequência e de baixa/ alta densidade. Os problemas de baixa frequência e alta intensidade (mais severas), serão aqueles que emergem de uma causa biológica, congénita, como por exemplo, cegueira, surdez, autismo, multideficiência, e que são em menor número, apesar de envolverem mais recursos materiais e humanos. Os problemas de alta frequência e menor densidade aplicam-se por exemplo às crianças com problemas de comportamento e problemas ligeiros de leitura, escrita ou cálculo. 3. Em direcção à construção de uma Escola Inclusiva A emergência da Educação Inclusiva lançou raízes profundas e foi ganhando terreno como um movimento que desafia e recusa as concepções, políticas, culturais e

6 práticas educativas que promovam qualquer tipo de exclusão ou segregação. Na actualidade, verificamos que muitos países e organizações internacionais perseguem o mesmo propósito em direcção à Educação Inclusiva, reconhecendo os direitos dos alunos com necessidades educativas especiais, por uma educação comum, de qualidade e equitativa para todos os alunos. Com este desiderato, a Convenção das Nações Unidas dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Nações Unidas, 2006) realça a necessidade dos Estados membros se comprometerem a implementar um sistema de educação inclusivo. Este documento define as pessoas com deficiência como tendo impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial os quais, em interacção com diversas barreiras, podem obstruir a sua participação plena e efectiva na sociedade com as demais pessoas (Artigo 1.º) e define discriminação, como qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada na deficiência (Artigo 2.º), reforçando a necessidade de se adoptarem medidas para promover a conscientização de toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre as condições das pessoas com deficiência e fomentar o respeito pelos direitos; combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação às pessoas com deficiência; promover a consciência sobre as capacidades e contribuições das pessoas com deficiência (Artigo 8.º). Reconhece, ainda, o direito à educação, sem discriminação, com base na igualdade de oportunidades; assegurando um sistema educacional inclusivo em todos os níveis; a aprendizagem ao longo da vida e o pleno desenvolvimento do potencial humano (Artigo 24.º). No entanto, o compromisso que os países assumiram quando assinaram a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) não tem sido uma tarefa fácil, uma vez que ainda perduram concepções, estruturas, normas e práticas contraditórias com os valores que orientam a Educação Inclusiva. Hodiernamente, constatamos que diversos países estão em processo de revisão e mudança das políticas e legislação; também em Portugal assistimos, muito recentemente, a um conjunto de mudanças conceptuais e sócio-legais, as quais têm introduzido alguma instabilidade e incerteza no sistema educativo, que importa analisar e perceber se serão promotoras de uma escola inclusiva ou, se pelo contrário, poderão ser geradoras de situações de segregaçãoe/ou exclusão escolar e social. Na Resolução do Conselho de Ministros n.º120/2006, de 21 de Setembro, o I Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiências e Incapacidades (IPAIPDI 2006-2009), documento orientador e estratégico no domínio da deficiência e

7 incapacidade, apresenta um conjunto de medidas e propostas de intervenção. Neste contexto, o Decreto-Lei 3/ 2008, de 7 de Janeiro, define os apoios especializados para alunos com necessidades educativas especiais de carácter prolongado. No seu preâmbulo vem explícito que ele se insere no paradigma inclusivo e que os apoios especializados visam responder às necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas ao nível da actividade e da participação, num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente, resultando em dificuldades continuadas (...) dando lugar à mobilização de serviços especializados para promover o potencial biopsicosocial (Ministério da Educação, 2008, Preâmbulo). Entre as alterações mais significativas, sublinhamos a possibilidade de criação de escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos e escolas para a educação de alunos cegos e com baixa visão, assim como, unidades de ensino estruturados para a educação de alunos com perturbações do espectro do autismo e unidades para a educação de alunos com multideficiência e surdocegueira congénita (Artigo 4.º, pontos 2 e 3). Outra alteração substantiva está relacionada com a avaliação das crianças, a qual deve ter como referência a Classificação Internacional da Funcionalidade e Incapacidade (CIF, Organização Mundial de Saúde), servindo de base à elaboração dos programas educativos individuais. Assim, a CIF é apresentada como um sistema de classificação multidimensional e interactivo, cujo objectivo não é o estabelecimento de categorias diagnósticas, mas a interpretação das características nomeadamente, as estruturas e funções do corpo e a interacção pessoa-meio ambiente (actividades e participação). Constitui, ainda, uma linguagem unificada para a funcionalidade e incapacidade humana e a utilização da CIF em processos de avaliação permite descrever o estatuto funcional da pessoa, valorizando as suas capacidades, os factores ambientais, as barreiras e os facilitadores da participação social (I PAIPDI, 2006-2009). Congruente com estas alterações conceptuais, o termo incapacidade, que engloba as limitações funcionais relacionados com a pessoa e o seu meio ambiente, apresenta-se como mais adequado do que o termo deficiência, mais restritivo e menos convergente com a matriz teórica das alterações em curso. Os alunos com necessidades educativas especiais resultantes de desvantagens sociais e culturais encontram também respostas diversificadas no contexto educativo, a saber: os planos de recuperação para alunos do ensino básico, os cursos de educação e

8 de formação e a constituição de turmas com percursos curriculares alternativos, no âmbito do ensino básico (Despacho normativo 50/ 2005; o Despacho conjunto n.º 453/ 2004, o Decreto-Lei n.º 6/ 2001, com as alterações do Decreto-Lei n.º 209/ 2002) Fazendo uma análise do enquadramento legal actual e dos fundamentos conceptuais dominantes, permitimo-nos tecer umas algumas considerações. Em primeiro lugar, parece-nos positivo o esforço encetado para apresentar um novo dispositivo legal, mais consentâneo com a complexidade crescente do contexto educativo. Em segundo, também se afigura interessante a preocupação em propor, para este domínio, uma linguagem e terminologia unificadoras; contudo, na nossa perspectiva, a classificação escolhida, a CIF, emanada da Organização Mundial de Saúde, não tem sido uma opção pacífica, alvo de algumas críticas, em especial, pela inexistência de investigação consolidada sobre a adequação da CIF ao domínio educativo (Correia, 2008). No entanto, este novo quadro legal está ainda, numa fase inicial de implementação, pelo que será necessário esperar, para se proceder a uma primeira avaliação deste processo. Em terceiro lugar, questionamo-nos se algumas das medidas e itinerários educativos não serão pseudo-inclusivos e geradores de situações de exclusão ou segregação dentro de um sistema que persegue o ideário inclusivo. As medidas dirigidas aos alunos em risco de abandono ou insucesso escolar são exemplos de regulações que incidem na criação de alternativas educativas, deixando o sistema intacto à custa da criar itinerários e caminhos específicos para estes grupos de alunos. Tendo como referência uma abordagem inclusiva, apresentamos alguns pressupostos fundamentais para a construção de uma escola inclusiva, a saber: i) promover a conscientização de toda a sociedade, na linha do que propõe a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (2006); ii) promover uma cultura de escola, que adopte a diversidade como lema, para que todos os alunos se sintam pertença de uma escola; iii) formação de professores na área das necessidades educativas especiais, no âmbito da formação inicial, contínua e especializada; iv) adequar os recursos humanos e materiais; v) diferenciação ou flexibilização curricular; v) promover a cooperação entre professores; vi) estimular o envolvimento dos pais e comunidade; vii) promover a aprendizagem cooperativa entre alunos. 4. A Moratória actual: Paradoxos e obstáculos

9 A educação inclusiva assume, na actualidade, uma centralidade no quadro dos discursos político e nos dispositivos legais, constituindo a agenda actual da comunidade educativa internacional. De acordo com Rodrigues (2000) a inclusão consubstanciou uma ruptura com os valores da educação tradicional, pois a Educação Inclusiva não é um conjunto de documentos legais nem é um novo nome para a integração: é um novo paradigma de escola organizado em conformidade com um conjunto de valores de respeito, solidariedade e qualidade para todos os alunos. É um objectivo aliciante mas muito ambicioso (Rodrigues, 2000, p.13). Num contexto educativo inclusivo, a diversidade não pode ser concebida como um constrangimento, mas sim, como uma oportunidade de inovação e desenvolvimento educativos, potenciadores do desenvolvimento de todos os alunos e do próprio professor, que tem aqui um contexto propício ao desenvolvimento das suas competências pessoais e profissionais. Fazendo uma análise da actualidade, constatamos uma evolução significativa dos quadros conceptuais e dos dispositivos legislativos que têm marcado o contexto nacional e internacional. No entanto, as práticas quotidianas nem sempre têm seguido esta matriz e temos assistido a alguns paradoxos e obstáculos, os quais têm abalado esta construção da inclusão, a saber: i) A influência das correntes neoliberais dos tempos actuais, obstaculizam um investimento sério em recursos humanos e materiais, e tornam, frequentes vezes, inviáveis muitas directivas pró-inclusivas, ou então, as mudanças são implementadas com objectivos primeiramente economicistas, que desvirtuam muitas directivas e podem gerar formas de segregação e exclusão, numa aparente capa de inclusão; ii) A dificuldade em conciliar os valores da inclusão e outros valores conflituantes com aqueles, como sejam, a lógica da competição, do individualismo e o culto da meritocracia, também eles caracterizadores da sociedade e da escola actuais; iii) A existência de estruturas, regulações normativas e formas de ser e estar que perduram no sistema e são contraditórias com os valores da inclusão. Conclusão No âmbito de uma perspectiva inclusiva, a escola tem de se adaptar aos grupos cada vez mais heterogéneos e perceber os benefícios da inclusão para um leque alargado de alunos que estavam fora da escola, por abandono ou insucesso escolar. Conseguir a

10 sua participação e aprendizagem é uma meta mais complexa do que o simples reconhecimento e exercício do direito de estar no contexto escolar. A escola inclusiva é uma inevitalidade e não se vislumbra outra alternativa face à crescente diversidade. Há ainda um longo caminho a percorrer, é necessário repensar a formação dos professores, adequar práticas educativas, envolver toda a comunidade educativa e desenvolver projectos de investigação nos contextos educativos, com o intuito de monitorizar e optimizar o sistema e as suas estruturas, propondo as mudanças necessárias à inclusão. Bibliografia: Ainscow, M. (1996). Necessidades especiais na sala de aula: Um guia para a formação de professores. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional: Edições UNESCO. Ainscow, M. (1998 a ). Exploring links between special needs and school improvement. Support for learning, 13, 70-75. Ainscow, M. (1999) Understanding the development of inclusive schools. London: Falmer Press. Ainscow, M. (2001). Desarrollo de escuelas inclusivas. Ideas, propuestas y experiencias para mejorarlas instituciones escolares. Madrid: NACRE. Ainscow, M. (2002). Making special education inclusive. London: David Fulton Publishers. Ainscow & Ferreira (2003) Compreendendo a educação inclusiva. In D. Rodrigues (Ed.). Perspectivas sobre inclusão: Da educação à sociedade. Porto: Porto Editora. Bairrão Ruivo, J. (1994). A perspectiva ecológica na avaliação de crianças com necessidades educativas especiais e suas famílias: O caso da intervenção precoce. Inovação, 7, 37-48. Bairrão Ruivo, J.; Felgueiras, I.; Fontes, P.; Pereira, F & Vilhena, C. (1998). Os alunos com necessidades educativas especiais: Subsídios para o sistema de educação. Lisboa: Ministério da Educação. Bautista, R. (1997). Necessidades educativas especiais. Lisboa: Dinalivro. Bénard da Costa, A.M. & Rodrigues, D. (1999). Special education in Portugal. European Jounal of Special Needs Education, 14 (1), 70-89. CNE (1998). Os alunos com necessidades educativas especiais: Subsídios para o sistema de Educação. Lisboa: CNE. CNE (1999). Uma educação inclusiva a partir da escola que temos. Lisboa: CNE.

11 Correia, L. M. (1997). Alunos com necessidades educativas especiais nas classes regulares. Porto: Porto Editora. Correia, L. M. (1997). Diversidade na sala de aula. Diaporama. Porto: Porto Editora. Correia, L. M. (2001). Educação inclusiva ou educação apropriada. In D. Rodrigues (Ed.) Educação e diferença Valores e práticas para uma educação inclusiva. Porto: Porto Editora. Correia, L. M. (2003). Educação especial e inclusão Quem disser que uma sobrevive sem a outra não está no seu perfeito juízo. Porto: Porto Editora. Correia, L. M. (2003). Inclusão e necessidades educativas especiais Um guia para educadores e professores. Porto: Porto Editora. Leitão, M. L. H (2007). Inclusão de alunos com necessidades educativas especiais. Tese de Doutoramento. Universidade dos Açores. Ministério da Educação (2008). Educação Especial manual de apoio à prática. Lisboa: DGIDC. Ministério da Educação Lei de Bases do Sistema Educativo n.º 46/ 86, de 14 de Outubro. Ministério da Educação. Decreto-Lei n.º 35/ 90, de 25 de Janeiro. Ministério da Educação. Decreto-Lei n.º 319/ 91, de 23 de Agosto. Ministério da Educação. Despacho n.º 105/ 97, de 1 de Julho. Ministério da Educação. Decreto-Lei n.º 6/ 2001, de 18 de Janeiro. Ministério da Educação. Decreto-Lei n.º 3/ 2008, de 7 de Janeiro. Rodrigues, D. (2000). O paradigma da educação inclusiva Reflexões sobre uma agenda possível. Revista Inclusão, 1, 7-13. Rodrigues, D. (2001). Educação e diferença Valores e práticas para uma educação inclusiva. Porto: Porto Editora. Rodrigues, D. (2003). Perspectivas sobre a inclusão: Da educação à sociedade. Porto: Porto Editora. Stainback, S. & Stainback, W. (1999). Inclusão: Um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. Stainback, S. & Stainback, W. (1996). Controversial issues confronting special education: Divergent perspectives. Boston: Allyn and Bacon. UNESCO (19904. Declaração de Salamanca Sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais. Paris: UNESCO. Winzer, M. A. (1993). The history of special education. Gallandet University Press.