o PROBLEMA DA GRANDEZA LINGUISTICA NO VAKYAPADIYA, DE BHARTRHARI'



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Transcrição:

o PROBLEMA DA GRANDEZA LINGUISTICA NO VAKYAPADIYA, DE BHARTRHARI' MA.RIO FERREIRA (USP) ABSTRACT: The aim 0/ this paper is to analyse the problem of linguistic entity, according to the Bhartrhari's Vakyapadiya. We intend to demonstrate that the V kyapadtya.. one o/the pillars o/the sanskrit technics literature -, written in VI A.D., puts in/ocus the linguistic unity theme in an analogous point a/view face to the frasal linguistic methods. KEY WORDS: Linguistic entity, Frasallinguistics, Vakyapadtya. 1. Um dos temas com os quais a lingilistica contemporanea se tem havido e 0 da grandeza (GREIMAS e COURTES, s.d., s.v.) da unidade de comunica~ao. De Saussure a Greimas - para char apenas dois marcos te6ricos -, tal questao tem sido exaustivamente debatida, havendo, esse esfon;:o investigativo, definido. progressivamente, como unidades lingiifsticas basicas, seja a palavra (como no modelo saussuriano), seja a frase (como nas teorias de orienta\(ao frasal), seja 0 texto (como nos modelos da analise transfrastica, da gramatica textual e das teorias do texto).. Mais do que avan~os meramente quantitativos, tais teorias, ao postularem a palavra, a frase e 0 texto como unidades de grandeza lingufstica, representam, ao contrario, conquistas cientfficas de qualidade, eis que a defini\(ao de estrumras dimensionais divers as implica, em verdade, a formaliza~ao de modelos de estrutllra\(aoprogressivamente mais complexos. Como se disse, 0 tema da grandeza da unidade de comunica\(ao e problema central da lingilistica contemporanea. No entanto, conforme 0 tem ensinado a historiografia lingilistica, nao raro e encontrar, nas constru\(oes cientificas da Antigilidade, a prefigura~ao te6rica - ainda que sob perspectiva metodologicamente diversa - de problemas absolutamente atuais. Por exemplo, procuroll-se ja demonstrar (FERREIRA, 1991) que na ret6rica classica e possivel configurar luna teoria de tradu\(ao calcada em bases textuais - a semelhal1l;a dos modelos semi6ticos de transla~ao de significados. 1 Esta comunica~o retoma, ampiificando o, 0 texto de "0 conceito de frase no ViJkyapadfya, de Bhaltrnari", apresentado no IV Encontro Nacional da Sociedade Brasileira de Estudos Oassicos, realizado em Niter6i (RJ), em agosto de 1993.

Esta comunica~ao tern por objetivo analisar 0 problema da grandeza lingfifstica tal como se apresenta ele no Vakyapadfya de Bhartmari. Defende-se aqui que essa obra - urn dos marcos da literatura tecnica de expressao sllnscrita -, redigida no seculo VI d.c., enfoca 0 tema da unidade lingtifstica em perspectiva an<1logaados metodos da lingillstica frasal, na medida em que: a) estipula ser a frase a verdadeira unidade de comunic~ao; b)associa a organiza~ao semi6tica da frase a articula~ao do contexto lingillstico que se lhe refete; e c) estabelece que 0 problema da grandeza da unidade de uso da linguagem deve ser analisada, na situa~ao de comunica~ao, com refer~ncia a atividade cognitiva do falante. 2. A obra Vakyapadfya [= VP]2 - titulo que e comurn traduzir por "discurso sobre a linguagem", ou, como seria mais apropriado, "discurso sobre a enuncia~ao" - foi redigida, com amplo grau de certeza, devido ao testemunho do peregrino chin~s Yitsing (RUEGG, 1959, pp. 58-64), na primeira metade do seculo VI de nossa era. Perfodo de extrema efervescencia cultural, essa epoca marca, na India Ch1ssica, 0 apogeu dos debates sobre a linguagem revelada dos Veda, realizados na perspectiva, repleta de conflitos, dos confrontos, por U1Il lade, entre bramanistas e budistas, e, por outro, entre os defensores das diversas cisoes cismaticasde ambas as correntes. Do autor do Vakyapadfya, Bhartmari, pouco se sabe, no que respeita aos elementos biogr{uicos.yi-tsing alinha-o, em..'leulivro de viagens, entre os sacerdotes budistas, ainda que 0 d~ como ap6stata, 0 que parece pouco provavel, dado 0 teor ideol6gico de suas teorias, as quais induzem a enquadra-lo, antes, como partidario da ortodoxia doutrinl1riado Vedllnta. A obra de Bhartmari, no entanto, fez 6poca na tradi~li.o dos estudos lingillsticos da India Antiga, constituindo ela ponto de refer~ncia obrigat6rio dos autores posteriores - a semelhan~a, se se permite a compara~ao, do CUTSO de Saussure, com rela~ao aos estudos de linguagem no seculo XX. 3.1.0 Vakyapadfya divide-se em tr~ capftulos - a saber, 0 "Brahma-KWa", o "Vllkya-KWa" e 0 "Pada-KWa", ou seja, respectivamente, "Se~ao relativa ao brahman", "S~ao relativa a frase" e "S~ao relativa a palavra". 3.1.1.Na primeira se~ao, afeta ao brahman, Bhartmari ocupa-se com definir os princfpios te6ricos de sua filosofia lingillstica. Fiel aos conceitos do monismo absoluto do Ved!nta, aftrma que a linguagem e uma manifesta~ao do brahman (VP, I, 1), uma 2 0 texto de Bhartriuu:i esta editado na.s seguintes public~oes: K4nda I, ed. Caradeva Sasm. Lahore, 1935. K4nda I e II, ed. Ganidhara Sistri Manavalli. Benares Sanskrit Series, nos. 11, 19 e 24, 1887. K4nda III, Benares Sanskrit Series, vol 1 (no. 95), ed. Rimacandra Sastti Kotibhiskara, 1905; vol II (no. 160), ell. Gosvimi Damodara Sistri, 1928. A1J passagens aqui ci(adas estio reproduzidas na obra de D. S. Ruegg (1959).

atualiza~ao potencial do principio eterno e imperecivel que abarca a totalidade. 0 brahman, em sua concep~ao, aqui extremamente ortodoxa, constitui urn principio unitmio, urn ponto de unifica~ao, 0 qual parece multiple devido aos poderes ilus6rios da c:akti, 0 principio do dinamismo e da manifesta~ao (VP, I, 2). Noutros termos, ocupa-se Bhartrhari, nesta primeira s~ao, em configurar a linguagem como um sistema din~mico que explicita, de forma estrutural, as potencialidades de manifesta~ao do brahman. Para Bhartr-hari, a linguagem - enquanto c:akti, enquanto for~a - e 0 espelho de brahman. A linguagem e a maquina - podemos assim dize-io - semi6tica que permite representar, em termos de cogni~ao e discrimina~ao, as potencialidades do todo. Em termos de cogni~ao e discrimina~ao, enfatizemos, porque, para Bhartrhari, e a Iinguagem 0 instrumento que faculta, ao ser humano, 0 pensar, quer dizer, a flassagem da percep~ao ao conceito. Para pensar 0 brahman, cumpre, pois, utilizar a Iinguagem e, concomitantemente, resgatar nela as pistas, os pada, das modalidades do uno. Em suma, enquanto instrumento de cogni~ao, a linguagem permite ao pensamento 0 pensar-se a si mesmo, com vistas a reconhecer ele a sua condi~ao de expressao de brahman; enquanto objeto de anl1lise, a linguagem e a estrutura de manifesta~ao do brahman, pois que nela estlio inscritas, em seus sistemas morfoi6gicos e sem~ticos, as constru~5es atributivas - de lugar, tempo, substlncia. e outras - que a c:akti manifesta (VP, III, 1,22 e 23). 3.1.2. No terceiro livro (caps. I a XIV) do Vfikyapadiya, Bbartmari ocupa-se com 0 estudo da palavra, mormente no que respeita it constitui~ao de seu e..~tatuto sem~tico. Desenvolve ai ele - em termos que parecem extremamente modern os - uma teoria do signo, que se concebe em termos de jun~ao entre significante (ou seja. suporte tanieo) e significado (isto e, mlcleo de sentido), par rela~ao a urn referente; urna teoria da motiva~ao do signo, que e visto, do ponto de vista do falante, como uma questl[o de vinculo obrigat6rio de uso das palavras; uma teoria dos universais semfulticos; e, por fim, uma teoria da cogni~ao lingilistica, em termos paralelos aos da concep~ao contemporftnea dos pressupostos inatos da constru~ao verbal. 3.2. No segundo livro, que e 0 que aqui mais nos importa, expoe Bhartmari sua teoria da frase. 3.2.1. 0 eixo Msico dessa se~ao radica na defesa, por Bbartmari, de que a frase e a verdadeira unidade de sentido da linguagem (VP, n, 10). Na defesa de sua proposi~ao, argumenta ele que a frase, com efeito, pode ser dividida em partes men ores, a saber, os sintagmas, as palavras, os fonemas e ate os tra~os pertinentes fonematicos. dos sons da linguagem. Ocorre, porem, que essa divisao e puramente arbitrmia, afeta ao trabalbo discriminador do lingiiista, nao correspondendo ela a percep~ao do falante, para quem a linguagem se manifesta, na realidade, em blocos autonomos de significa~ao, que sac as frases (VP, I, 74). Para Bhartrbari, a frase, em sintese, e uma unidade de use, definida nos termos da pragmatic a do ate de fala (VP, I, 74). Trata-se duma unidade intuitiva de 170

significalrao, a qual se constr6i, na situalrao de fala, no cruzamento de tres atos cognitivos efetivados no ambito da mente do falante. 3.2.2. a primeiro ato cognitivo refere-se a universalizalrao das partes. Mirma aqui (VP, II, 145) Bhartrhari, numa surpreendente prefiguralrao da teoria gestaltica do fechamento, que a frase se constitui apenas no instante em que as partes do ato de linguagem se organizam num todo provido de sentido minimo, sendo esse todo representado sempre por um conjunto - provis6rio - de relalroes aut1'jnomas,suportadas par algum tipo de elemento significante. Pode-se assim entender a afirmalrao de Bhartrhari, de que uma frase comporta, seja um nllmero amplo de palavras, seja um Mico fonema, seja ate 0 sih~ncio,desde que significativo numa relalrao de linguagem. a segundo ato cognitivo refere-se a abstralraodo todo. Mlrma Bhartrhari (VP, II, 14) que toda sintese de universalizalrao das partes comporta uma transposi\(ao redutiva de nivel mais abstrato. Assim, por exemplo, a frase "Feche-se a porta", que pode ser reduzida, num nivel semfultico mais abstrato, em face do fechamento gestaltico, como uma expressao - sintetica - de injunlrao. a terceiro ato cognitivo, que enfeixa os dois anteriores, eo da sintese mental. Esse ato diz respeito a propriedade detida pela mente do falante de efetivar sinteses cognitivas, em termos de fala. 3.2.3. Em conjunto, os tres atos cognitivos constituem a matriz sintttica da organizalrao de uso das frases. Bhartrhari defende, neste sentido, que 0 reconhecimento cognitivo das frases radica na confluencia de seis pressupostos, que san universais e onipresentes. 3.2.4. au seja: - A frase e sempre 0 resultado duma intui\;ao (pratibha), afeta ao reconhecimento do sentido da unidade de significado (VP, II, 145). - A frase implica uma combina.\;ao(samsarga), da qual resulta um excesso (adhikya), 0 qual e exatamente 0 sentido do todo gerado na conexao das partes (VP, II, 42 e segs.). - A frase comporta um sentido verbal fechado, que se manifesta exclusivamente no todo e nao na parte (VP, II, 43). - A frase apresenta uma conexao reiterativa e seletiva das propriedades polissemlinticas das partes que a constituem (VP, II, 418). - A frase e sempre um ato feito (kriya), que se estabelece por oposilraoao nada (VP, II, 421). (A frase e a diferenlra do zero insignificante.) - A frase tern sempre um referente (prayojana), que se constr6i como um objeto da jun\;ao do significante e do significado do signa frasal (VP, II, 115). 3.2.5. Em sintese, a tese basica de Bhartrhari radica na conceplrao de que a frase constitui um todo que excede a soma das partes. Do ponto de vista de quem fala, a frase e a transposi\;ilo analftica do sentido sintetico que visa ele a comunicar; do ponto 171

de vista de quem ouve, a frase e a representa~ao sintetica do sentido que curnpre recompor analiticamente. Em ambos os cas os, a frase implica sempre um movimento cognitivo. Trata-se de percorrer as partes que a compoem, caminhando da indetermina~1[o dos elementos isolados para a determina~ao do conjunto - ou seja, tratase, sempre, de partir do inicio para 0 fim e deste para aquele, num fluxo automl1tico e recorrente de idas e vindas (VP, II, 44 e segs.). 4. Visto este resumo surnario, podemos salientar alguns dos pontos em que a teoria de Bhartrhari prefigura, de forma notavel, algumas das descobertas da lingiifstica contemporanea. 4.1. Neste sentido, e oportuno lembrar, de inicio, que Bhartrhari concebe 0 texto como 0 produto resultante de uma soma de frases. 0 texto nao constitui, em sua concep~ao, uma unidade autonoma de grandeza, porque a estrutura textual reproduz 0 mesmo nivel de organiza~ao da frase - cornportando ela, desse modo, as mesmas seis qualidades da frase jl1 descritas, a saber, a soma, a combina~ao, 0 sentido, a conexao, 0 ate e 0 referente. Noutros terrnos, conforme 0 estipula Bhartrhari, 0 texto nao constitui urna grandeza lingiifstica, porquanto, para alern da frase, de cuja soma se constr6i 0 texto._ s6 e possivel encontrar outras frases. Cabe assinalar que encontramos aqui a prefigura~llo exata dos limites da descri~ao lingtifstica propostos pclas teorias de orienta~ao frasal (BARTHES, 1966, p. 3). 4.2. Outro ponto a assinalar diz respeito ao fato de que, no VaJcyapadfya, a seme1han~a da lingiifstica situacional, e possivel encontrar urna virtual teoria do contexto. Para Bhartrhari, a frase e, com efeito, uma unidade que se resgata em termos de opera~ao cognitiva, mas tal opera~ao abrange mais do que apenas a forma verbal da frase. Conforme 0 diz textualmente Bhartrhari (VP, II, 316), "0 sentido das palavras distingue-se segundo 0 contexto verbal, 0 contexto da situalrao, 0 objetivo vis ado, as condilroes [textuais que variam con forme os parametros] de espalr0 e tempo, e nao segundo a forma [das palavras]." Parece ser licito entrever, nessas palavras, e nos exemplos que lhes correspondem (VP, II, 118 e segs.), a concep~ao da frase como urna _unidade preponderantemente correlacional, estabelecida no entrecruzamento de ordens diversas de sentido, de ordem situacional e vivencial, de urn lado, e de ordem metatextual, de outro. 4.3. Urn terceiro ponto, a remarcar na obra, refere-se, por fim, a coliceplraoda frase - ou, melhor, a conceplrao do sentido produzido pela frase - como urn processo semi6tico, que cumpre a cada falante recollstruir em toda e qualquer situa~1io de linguagem. Ao contrario das escolas anteriores, que estipulam urn vinculo etemo entre a coisa e 0 signa, Bhartrhari tende a considerar a linguagem como um instrumento extremamente dinamico de referencia, calcado no principio da "inten~ao de exprimir" (vivaksa) circunscrito a si mesmo. A esse respeito, Bhartrhari nega a linguagem 0 papel

de discriminar,;aogn6stica das coisas em si, estando sua concepr,;aote6rica vinculada, como 0 observa Madeleine BIARDEAU (1964, p. 420), "ao principio geral de que 0 pensamento nao visa jamais a conhecer as coisas em si mesmas, mas somente a esclarecer a conduta humana com relar,;aoa tais coisas". Processo semi6tico, caracterizado pela construeao humana do sentido, a linguagem, tal como a deftne Bhartrhari, assume, desse modo, no Vakya-padfya, um estatuto de corte profano com relacao as premissas sagradas da linguagem. Noutras palavras, em sua obra, Bhartrhari opoe, as modalidades sagradas da gnose da Revelar,;ao vmica, situadas para alem do falar e do pensar' 0 trabalho humano da cognir,;ao estribada no ato arbitrilrio e contextualizado da construr,;aodo sentido. Um nohivel corte, como se ve, no percurso te6rico da lingtifstica indiana, entre os dominios da ar,;ao ritual e da ar,;aomundana. 5. A vista do que antecede, parece lfcito afrrmar que as concepr,;oes de Bhartrhari, relativas a frase, aqui sumariamente resumidas, apresentam notavel criatividade te6rica e forte consistencia expositiva, exibindo elas, em muitos aspectos, desenvolvimentos preftguradores de questaes nucleares da lingtifstica contemporanea. BIARDEAU, M. (1964) Theorie de la connaissance et philosophie de la parole dans Ie brahmanisme classique. Paris: Mouton. FERREIRA, Mario (1991) A tradutibilidade do texto artistico. Elementos para a construfao do algoritmo tradutologico. Siio Paulo, tese de doutoramento, USP-F.F.L.C.H., m6dita.