ESTADO E DEMOCRACIA: Pressupostos à formação do Estado Democrático de Direito



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Transcrição:

ESTADO E DEMOCRACIA: Pressupostos à formação do Estado Democrático de Direito Júlia Beatriz Fernandes Jordão 1 RESUMO: Este trabalho propõe-se a analisar a gama de fatos, teorias e ideologias que concorreram para a formação do Estado Democrático de Direito, tais como a formação de um estado e a consolidação das democracias, e de como tal paradigma foi absorvido pela Constituição Brasileira de 1988. PALAVRAS-CHAVE: Estado, Democracia, Paradigma do Estado Democrático de Direito. 1 Estado, Democracia e Estado Democrático de Direito: elucidação de conceitos fundamentais O direito é um trabalho sem tréguas, não somente dos poderes públicos, mas sim de todo o povo, se passarmos um golpe de vista em toda a sua história, esta nos apresenta nada menos que o espetáculo de uma nação inteira dispendendo ininterruptamente penosos esforços para defender o seu direito, como os que ela emprega para o desenvolvimento de sua atividade na esfera da produção econômica e intelectual. Todo aquele que tem em si a obrigação de manter seu direito, participa desse trabalho nacional e contribui, na medida de suas forças, para a realização do direito sobre a terra. Jhering, A luta pelo Direito. P 08 Para que se pudesse chegar à noção de Estado, tal como conhecido hoje, seja este liberal, democrático ou social, foi preciso permear a linha da construção e evolução de conceitos como povo, democracia e estado, a fim de compreender a dinâmica de sua gênese e consolidação. A concepção jurídico-política de Estado, na atualidade, ligada a uma nação politicamente organizada sobre um território, não é estanque; pelo contrário, é fruto de reflexões, experiências políticas próprias de cada lugar. Tais inferências explicam a diversidade dos modelos construídos ao longo da história, os quais serviram à transformação do Direito, como fenômeno indissociável do elemento humano e do modo como este se organiza em torno do poder. Logo, não é de se espantar o fato de a Ciência Jurídica ser fator condicionante e condicionado pela estruturação do Estado e da Democracia. Para elucidar o conceito de estado, Habermas expõe que a sua formação pressupõe a existência do povo, na sua coletividade, limitado no espaço e no tempo, com o intuito de concatenar seus interesses como comunidade na qual exista um direito capaz de legitimar suas pretensões. Para tanto, tal comunidade necessita dispor de um aparato autorizado para agir em nome de um todo; uma instituição destinada a manter uma convivência organizada e dotada de um mecanismo legítimo de ação. 1 Aluna do 3º período do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Monitora de Teoria Geral do Direito Privado.

A construção e legitimação do estado percorreu um penoso caminho e sofreu inúmeras variações de fundo ideológico ao longo da história. A partir do surgimento das monarquias, na transição feudal-capitalista, a necessidade de se delinear o Estado ficou, a cada tempo, mais nítida. Como característica marcante dessas monarquias, sejam estas absolutas, despóticas ou constitucionais, perfaz-se a relação entre povo, poder e as autoridades legítimas a exercê-lo, sendo que, por sua natureza, concentram os poderes de governo do estado nas mãos de um ou de alguns. As diversas interpretações da relação entre povo e poder ficaram problemáticas justamente na transição entre a Idade Média e a Moderna. Maquiavel retrata bem essa idéia em sua obra O Príncipe, quando escreve uma espécie de compêndio destinado aos governantes da época. O poder político, outrora mesclado à religião católico-cristã, passa a servir como arma estratégica utilizada pelos príncipes em razão de um fim a ser alcançado, ou seja, a manutenção do poder através do próprio poder. Em Hobbes, o Estado, sob forma de Leviatã, é o responsável por combater o estado de natureza humano no qual há a liberdade irrestrita, o que permite a alguns lesarem e prejudicarem outrem. Daí a célebre frase homo homini lupus. Nessa esteira, o Contrato Social surge como um pacto que permite a passagem do estado de natureza para o estado civil, no qual o homem opta por deixar o primeiro, e por meio de convenção, funda uma sociedade na qual o estado seria tutor de comportamentos, em busca da segurança jurídica. O contrato aparece com intuito de proteger a garantia de liberdade controlada, pautada no respaldo da vontade geral, cuja base pressupõe o poder estatal legitimado pela sociedade como base do direito. A partir de tais premissas e transpondo o conceito de Estado na modernidade, pode-se dizer que este é um poder necessário para organização, sanção e execução dos atos sociais, uma vez que a sociedade precisa de uma jurisdição organizada a fim de garantir a pretensão a iguais direitos, vez que o poder político organizado é pressuposto de um Estado de Direito: A idéia do Estado de Direito exige que as decisões coletivamente obrigatórias do poder político organizado, que o direito precisa tomar para a realização de suas funções próprias, não revistam apenas a forma do direito, como também se legitimem pelo direito corretamente estatuído. Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do poder político e sim a ligação com o direito legitimamente estatuído. E, no nível pós-tradicional, de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade. (Habermas, 1997, p172) Assim, o poder do estado e o próprio direito se tornam legítimos quando partem de uma autoridade que é comum a todos. No Estado Democrático de Direito, essa autoridade se manifesta a partir da soberania popular, a qual pressupõe uma concretização decorrente de procedimentos pautados numa ação comunicativa e na discursividade que permite a conciliação de interesses administrativos e vontade dos cidadãos. Seguindo a teia habermasiana, na soberania popular, interpretada pela Teoria do Discurso, existem princípios que norteiam o Estado de direito e o poder político, como forma de construir a afirmação democrática da vontade. Tais princípios são a ampla garantia legal do sujeito, o princípio da administração e do controle judicial e parlamentar da administração e o princípio da separação entre estado e sociedade. Tal teoria afirma que, do princípio da soberania popular, deduz-se que o poder político é derivado do poder comunicativo dos cidadãos, pois orienta-se por leis que estes criam para si mesmos a partir da discursividade, o que representa uma força que legitima o processo democrático.

O princípio da ampla garantia legal do indivíduo se materializa a partir do momento em que existem leis que ensejam pretensões passíveis de reclamação em âmbito judicial. O Estado de direito deve garantir uma proteção individual ampla, proporcionada a partir de uma justiça independente. O princípio da legalidade da administração esta vinculado à divisão dos poderes e às relações entre leis e justiça, fazendo valer a proibição da arbitrariedade no interior do estado, havendo, para tanto, um equilíbrio entre as forças estatais. O princípio da separação entre o estado e sociedade está no sentido da existência de uma garantia e de uma autonomia concedida a cada âmbito do Estado e da mesma forma ao cidadão; sendo que nenhuma força estatal possa se sobrepor às forças sociais de onde emanam a legitimidade do estado. Logo, o Estado tem o dever de garantir a autonomia política dos cidadãos para que um poder comunicativo de uma vontade possa alcançar a própria lei. Em se tratanto do segundo pressuposto, qual seja a democracia, pode-se dizer que a etimologia grega da palavra não nega as origens desse sistema de governo. Basta lembrar que Atenas, berço da civilização, fundava e mantinha democracias em todo o mundo helênico. A construção das instituições democráticas começa a partir de Sólon, o qual buscou o equilíbrio social através da conciliação das classes, pautada no reconhecimento do direito de cada uma delas. A partir de então a história política grega passou por altos e baixos até o governo de Psístrato, que preparou a classe média para estabilizar a democracia, amoldando-a segundo um ideal filosófico, até sua transformação em sistema, cujo resultado pode ser vislumbrado nos dias de hoje. A noção de democracia hoje é diferente do governo do povo e para o povo. No qual os cidadaos viviam e se auto geriam. Segundo Arnaldo Vasconcelos, as democracias modernas enfrentam os mesmos desafios das antigas: os graves desníveis sociais no plano interno, e o imperialismo, refletindo as condições históricas de cada época. Entretanto, a democracia grega estava pautada numa política que abarcava os cidadãos da polis, dentre os quais estavam excluídos escravos, mulheres e estrangeiros. Logo o ideal de democracia ateniense esta no congraçamento das classes, o que primava pelo princípio da igualdade; a polis era livre, pois o cidadão participava do governo da res publica. Cultivavam-se valores democráticos, como a igualdade ou liberdade. O conceito de liberdade é positivo, expresso pela igual possibilidade de o cidadão participar do governo da cidade. Assim, pode-se dizer, na linha do supracitado autor, que a democracia ateniense tinha como valores a interação do homem com a polis, o igualdade entre as classes através do fortalecimento da classe média e a conseqüente solidariedade entre os diferentes estratos sociais. Tais valores puderam ser sentidos, ao menos no campo ideológico, na revolução francesa de 1789. A democracia brasileira, em particular, é relativamente nova, se observarmos o nosso passado escravocrata e desrespeito aos direitos humanos fundamentais, durante certos períodos da história. Passada uma época de grave instabilidade política, o Brasil se deparou com um desafio ainda maior: o encargo de instituir um governo autoritário e um regime forte, presidido por militares. A abertura desse sistema foi feita de uma forma regrada, o que estabelece certas diferenças marcantes da consolidação das democracias dos países originalmente com esta tradição. Em sua obra Como renascem as democracias, Alain Rouquiè explica justamente esse processo de renascimento democrático após as ditaduras na América Latina, defendendo que a democracia foi sacralizada, vez que, salvo poucas exceções, a maioria dos regimes são ditos democráticos. Todavia as condições com que essas democracias se instalaram traçam os limites de uma história bem diferente em países de cultura desenvolvida e outros que apenas importaram modelos estrangeiros.

Para tal autor, o Estado foi o Leviatã, ameaçador do pluralismo e responsável pelo desvirtuamento do espírito democrático, haja vista a sua história de construção, marcada pela imposição da lei. O que se pode observar é a existência de democracias sem condições, as quase democracias ou democracias fictas, que se distanciam do objetivo do reconhecimento da pluralidade e da igualdade. Por fim, cabe salientar que a implantação democrática na América Latina fracassou devido à existência de verdadeiros bloqueios à sua instalação, sejam estes sociais, deficiências estruturais antigas e as próprias feridas dos regimes democráticos os quais precisam ser superados para as democracias renascerem. Feitas tais considerações, agora já se pode pensar que o Estado Democrático de Direito tem a responsabilidade de pautar suas ações em normas jurídicas, o que responde ao chamado do princípio da legalidade. A democracia, nesse sentido aparece com o fim de agregar uma qualidade de paradigma constitucional, pois apresenta e requer uma sociedade aberta e baseada na discursividade do direito. (Del Negri, 2003). Representa a superação de um Estado numa posição hierarquicamente elevada ao cidadão, o qual, em verdade é o titular do poder e o legitima a partir de uma constituição construída sobre uma soberania. Entretanto, as diferenças sociais e desigualdades ideológicas são inevitáveis, cabendo ao estado equilibrar os desníveis e aparar as arestas do poder, incidindo neste ponto a justiça isonômica do Estado Democrático, no sentido da busca do consenso. A esse respeito, Miguel Reale faz a seguinte consideração: (...) o adjetivo democrático pode também indicar o propósito de passar-se de um estado de direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade. (...) A meu ver, esse é o espírito da Constituição de 1988. (Reale, 1999, p 02) De fato, o legislador de 1988, a partir do preâmbulo constitucional, já faz saber que o Estado brasileiro é democrático e ao longo do texto da Carta Magna desenvolve os princípios da cidadania, soberania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e pluralismo político, fundamentos estes elencados nos incisos do Art. 1º. Como qualquer país com o nosso passado, a democracia encontra inúmeros desafios. Cabe dizer, nesse sentido, que o nosso Estado democrático se pauta em pressupostos éticos, políticos, jurídicos e econômico-sociais, os quais devem ser observados pelos poderes políticos que representam os titulares do Poder Constituinte, e que, portanto, qualquer ideologia defendida em tais poderes não deve se afastar desse compromisso. Desse modo, Miguel Reale, na obra O Estado Democrático de direito e o conflito de ideologias, argumenta que a partir do governo Collor, a democracia brasileira encontrou um amadurecimento muito grande, o que contribui para a construção de uma nova compreensão acerca do tema. Nasce para nós, portanto, a convicção de que a preservação e a guarda do Estado Democrático de Direito cabe ao próprio cidadão brasileiro, o qual deve estar engajado e vigilante, a fim de que todos os direitos que lhe caibam, sejam efetivamente garantidos. Referências REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2 ed. Ver. São Paulo: Sraiva, 1999 DEL NEGRI, André L. Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo: teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003 VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e democracia. São Paulo: Malhieros, 1998

HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, vol I. BITTAR, Eduardo. C. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do Direito. 4 ED. São Paulo: Atlas, 2005 JHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Trad. Ricardo Rodrigues gama. Campinas: Russel Editores, 2004. ROUQUIÉ, Alain. Como Renascem as Democracias. Brasiliense, 1985