MULHER PÓS-MODERNA: UMA PERCEPÇÃO ACERCA DE SUA MULTIPLICIDADE DE PAPÉIS 1



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1 MULHER PÓS-MODERNA: UMA PERCEPÇÃO ACERCA DE SUA MULTIPLICIDADE DE PAPÉIS 1 Selena Castiel Gualberto 2 Ms. Patrícia Rafaela de Morais Honorato 3 RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo sobre a atuação da mulher pós-moderna e sua multiplicidade de papéis. O desenvolvimento desta pesquisa trata-se inicialmente da evolução do conceito de mulher pós-moderna, contextualizando sua travessia histórica desde os primórdios até a sua acepção atual, onde se insere em vários espaços, saindo do espaço privado representado pelo casamento e maternidade, para ocupar funções sociais em sua amplitude. Finalmente, com base em algumas reflexões elaboradas no decorrer desta pesquisa, foram analisados, utilizando da teoria psicanalítica para análise dos dados, os aspectos psíquicos vivenciados pela mulher pós-moderna frente à realização de todos os papeis acumulados em seu cotidiano. PALAVRAS CHAVE: Mulher, Multiplicidade, Sofrimento Psíquico. ABSTRACT: This paper presents a study on the role of women and their postmodernist multiplicity of roles. We used psychoanalytic theory to analyze the data obtained in the survey. The development of this research it is initially the evolution of the concept of postmodern woman, contextualizing its historic journey from the beginnings to its current meaning, where it operates in several areas, leaving the private space represented by marriage and motherhood, to occupy social functions in its amplitude. Finally, some reflections based on elaborated during this study, we will analyze the psychological aspects experienced by the woman against the postmodern realization of all accumulated in their daily roles. KEY-WORDS: Woman, Multiplicity, Psychic Suffering. 1. INTRODUÇÃO Este artigo refere-se à mulher moderna pós-moderna e sua multiplicidade de papéis. Possui como fio condutor a subjetividade da mulher, seus medos, anseios e conflitos diante das atividades que desenvolve e das dinâmicas relacionais que vive nos dias atuais. Esta pesquisa possui como embasamento teórico os preceitos da psicanálise e propõe uma 1 Artigo apresentado ao Curso de Psicologia pelo Instituto Luterano de Ensino Superior ULBRA, 2012.2. 2 Graduanda do Curso de Psicologia pelo Instituto Luterano de Ensino Superior - ULBRA, 2012.2. 3 Orientadora do Curso de Psicologia pelo Instituto Luterano de Ensino Superior - ULBRA, 2012.2.

2 discussão a respeito da busca constante de manejo dos múltiplos papéis femininos em seu curto espaço de tempo. Para tratar do tema proposto adota-se o percurso histórico da mulher, elucidando seu protagonismo crescente no posto de figura principal dos núcleos familiares e do mercado competitivo dentro da sociedade fazendo eclodir a necessidade de se verificar os efeitos colaterais desse reposicionamento social. Os novos papéis assumidos e as exigências advindas com eles interferiram de maneira significativa em seu dia-a-dia, muitas vezes, surgindo assim a priorização de uma ou outra atribuição, ocasionando possíveis crises e dúvidas sobre sua identidade feminina. O sofrimento psíquico pode advir de um contíguo de situações de cunho psicológico, que produz sintomas no corpo e nas emoções. Neste sentido, discorrer a propósito das questões relativas às consequências desse acúmulo de funções da mulher pós-moderna considerando sua multiplicidade de funções significa inserir-se no questionamento ou reafirmação de valores sociais já existentes denotados como expressivamente relevantes no mundo ocidental e também abordar as mudanças significativas nessas concepções, como o caso da liberdade individual da mulher e o interesse dela por maior participação na sociedade como um todo.. 2. A MULHER: UM RESGATE HISTÓRICO Pintor: Ela prefere imaginar uma relação com alguém ausente do que criar laços com aqueles que estão presentes. Amelie: Pelo contrário. Talvez faça de tudo para arrumar a vida dos outros. Pintor: E ela? E as suas desordens? Quem vai pôr em ordem? Estranho o destino dessa jovem mulher, privada dela mesma. (Trecho do filme: O fabuloso destino de Amelie Poulain, 2001). Durante grande parte da existência humana a mulher teve um papel coadjuvante no seio familiar, resumindo-se a procriação, educação da prole e administração do lar, cabendo ao marido à mantença da casa, num cenário fomentado pelas próprias sociedades em que eram imersos. À mulher, reservava-se a maternidade ou atividades religiosas, colocando-se na condição de inferioridade perante o homem, numa visão míope sobre o feminino e sua sexualidade. Neste sentido:

3 [...] As características específicas de civilizações particulares mostram claramente a existência de enfoques distintivos no que tange a padrões, representações a (até certo ponto) comportamentos sexuais. O advento das grandes religiões teve impacto decisivo sobre a sexualidade, em alguns casos propiciando novas justificativas e normas para padrões já estabelecidos, e em outras instâncias introduzindo consideráveis mudanças (STEARNS, 2010, p. 19). O cenário esculpido no começo do século XX traduzia a ideia clara da mulher submissa e coadjuvante, possuindo papel secundário na liderança das decisões da família, atendo-se a educação dos filhos e administração dos afazeres domésticos, tendo a função suplementar de cuidar do marido, sem contato social efetivo e atividade profissional intelectual de maior porte, fato que se modificou drasticamente como o início da Primeira Guerra Mundial (STEARNS, 2010). Nesta ocasião, os homens foram obrigados a se atirar nas trincheiras do conflito, deixando um espaço vazio financeiro a ser ocupado, fato que encorajou as mães e donas de casa a liderar suas famílias, herdando um protagonismo que nunca tiveram e assim passando a desempenhar papel profissional preponderante dentro da sociedade. No Brasil, os direitos da mulher tardaram um pouco mais. Durante todo o período posterior às guerras até 1970, as mulheres caminharam lentamente rumo a uma condição isonômica perante o homem, tendo sua emancipação constantemente refreada pela imposição da família e da sociedade, como se o pai transmitisse ao marido a propriedade sobre a liberdade da mulher. A demora da propagação dos direitos da mulher deu azo a um período negro de aceitação social em que a resistência dos homens da época resultou em mulheres espancadas, enganadas, violentadas, abandonadas e sub-remuneradas, entre outras consequências trágicas. O cenário passou a melhorar no período em que, dada à fartura de oportunidades e o viés meritório inerente do capitalismo, fez com que a mulher tivesse seu caminho profissional pavimentado e que passasse a usufruir de melhores oportunidades, além de outros benefícios que foram se aglutinando à causa, como bem delineia Bruschini: A expansão do mercado, a crescente urbanização e o acelerado ritmo da industrialização configuraram um momento de grande crescimento econômico, favorável à incorporação de novos trabalhadores, inclusive, os de sexo feminino (BRUSCHINI, 1994, p.65). O binômio desencadeador da imersão da mulher no mercado de trabalho pairava sobre a queda do poder aquisitivo dos chefes de família que fez com que a mulher deixasse a inércia contributiva e passasse a ajudar, além da necessidade do mercado de absorver novos profissionais. Por conta da fase positiva vivida pela economia brasileira, a mulher passou a

4 descortinar oportunidades como a de ingresso em universidades, consequência da expansão da escolaridade no país (BARROS, 1995). Houve um despertar para a busca de melhor escolarização que fez com que a mulher passasse a melhor se posicionar e ascender a cargos importantes em seus respectivos segmentos, munida agora de educação superior e de noções de igualdade de direitos. O resultado dessa evolução educacional foi o movimento feminista que cresceu a partir desse período. O posicionamento protagonista das mulheres neste processo deu fôlego a uma série de efeitos colaterais na sociedade que se tornou detectável claramente como a redução da taxa de fecundidade a partir da década de 1970. A mulher deixa seu papel de simples reprodutora e volta seus olhares para funções mais preponderantes dentro da sociedade, buscando ascensão financeira desgarrada da via única do casamento. Adjudique-se a questão comportamental a uma série de mudanças na própria lei que alicerçaram com mais força o ideal feminista no Brasil como a Lei 6.515/1977 (Lei do Divórcio), em que as mulheres passavam a dispor do direito de se separar e divorciarse do marido sem ter a obrigatoriedade imposta pela igreja de casamento pra vida toda. A condição de propriedade emanada pelo Código Civil de 1916, já havia sido sepultada socialmente há muito tempo e a neoliberdade somente foi formalizada com a vigência da lei. Hoje, os direitos da mulher são referendados na Lei Máxima do Brasil (art. 5º, I, Constituição Federal); onde ressalta que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Hodiernamente, a mulher colhe os frutos da própria emancipação. Ao ingressar no mercado de trabalho e passar a assumir responsabilidades cada vez mais pesadas, ela aglutina funções e não se esquiva das tarefas que sempre executou ao longo dos anos como a de ser mãe, esposa e dona de casa. A grande discussão localiza-se no papel multifacetado da mulher e nas suas consequências, seus dramas, a dificuldade em atingir a excelência em todas as missões e o sofrimento que vem a reboque cada vez que isso não acontece. A dificuldade de conciliar, a renúncia a algum dos papéis e a polarização da vida profissional em detrimento da vida pessoal são os principais objetivos de investigação e análise para o estudo, que terá a incumbência de lançar um olhar às consequências da emancipação mulher da e sua repercussão no campo psicológico.

5 3. A MULHER NA VISÃO DA PSICANÁLISE Do ponto de vista psicanalítico, Freud em seus estudos atribui vários significados à mulher e ao feminino, diante de todo esse paradigma de busca incessante na realização de algo que não se sabe especificamente mensurar de forma concreta. O que quer uma mulher? Tarefa que deixou para os poetas até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes (FREUD, 1933). Segundo Birman (1999) a história da psicanálise teve a mulher como figura protagonista durante o ponta pé inicial e boa parte de seu desenvolvimento. O seu início ocorreu em 1880, quando Freud se interessa em aprofundar-se no estudo sobre a histeria. Pela primeira vez olhava-se a mulher em sua plenitude, através da escuta do discurso histérico de Anna O, o feminino se introduz á psicanálise. Freud (1893), através do estudo da histeria edifica suas descobertas a respeito da psiquê, afirma que é raro haver um único evento principal causador de sofrimento, é comum que seja operado antes uma série de impressões afetivas toda uma história de sofrimentos. Nesta busca da compreensão dos sintomas, através da escuta, ele descobriu a importância da sexualidade para a elucidação dos distúrbios psíquicos. Identifica que lembranças traumáticas comportam-se como um corpo estranho do psiquismo, permanecendo no presente, de maneira inconsciente. Percebe-se que este marco da psicanálise carrega em seu escopo a importância da mulher para Freud, onde seu seus estudos foram iniciados na observação da psicopatologia manifesta especialmente nas mulheres e seus sintomas psíquicos. Diante destas análises, ele identifica que nos sintomas histéricos existem sempre dois tipos de fantasias, uma de caráter masculino, e outra de caráter feminino, sendo uma delas originária de um impulso homossexual, decorrente da natureza bissexual do individuo. Essa diferenciação entre o feminino e o masculino se constitui de uma posição de bipolaridade da libido, ou seja, masculino relaciona-se com a atividade, o feminino com a passividade. Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais, que de forma semelhante compelem as mulheres a uma situação passiva (FREUD, 1933, p.116). No decorrer do percurso teórico freudiano, muitos elementos retomam a questão do feminino e da mulher em sua constituição psíquica. Outro conceito crucial e ilustrativo é a construção a respeito do complexo de castração e o Édipo e sua incidência na menina:

6 O complexo de castração das meninas inicia ao verem elas os genitais do outro sexo. De imediato percebem a diferença, e deve-se admiti-lo também sua importância. Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ter uma coisa assim, também, e se tornam vítimas da inveja do pênis, esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia psíquica (FREUD, 1933, p.125). Essa angústia, no contexto vivencial da mulher pós-moderna representa algo concreto, remetendo-a a perdas passadas como a separação do nascimento, ao seio materno, as fezes e todos os objetos de prazer perdidos. Essas experiências formam a base similar para a instauração simbólica do complexo de castração e para estruturação edípica. A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina (FREUD, 1933, p.126). A dificuldade de elaboração resultante do édipo feminino possui como consequência a dificuldade na estruturação de ideal do ego. A menina passa a ter uma percepção de inexistência de uma identidade concreta. Com base na disposição perversa polimorfa, em que se descortina em cores vivas a posição de castrada que a menina deve acatar, pode-se afirmar sobre o Édipo feminino: [...] O desejo de ter o pênis tão almejado pode finalmente contribuir para os motivos que levam uma mulher a ter a capacidade de exercer uma profissão intelectual, por exemplo- amiúde pode ser identificado como uma modificação sublimada desse desejo reprimido [...] com a transferência, para o pai, do desejo de um pênis, a menina inicia a situação do complexo de Édipo. A hostilidade contra sua mãe se intensifica muito, se torna rival da menina, rival que recebe do pai tudo o que dele deseja. (FREUD, 1933, p. 125). Elucidando a citação acima nos moldes dos dias atuais, a mulher está sempre em constante competição interna e social, visto que já carrega em sua singularidade os traços de competição inconsciente na busca de algo que racionalmente não sabe precisar. Para as meninas, a situação edipiana é o resultado de uma evolução longa e difícil; é uma espécie de solução preliminar, uma posição de repouso que não é logo abandonada, especialmente porque o inicio de latência não está muito distante (NASIO, 2007, p. 76). Com isso, se constrói a diferença psíquica inicial entre os dois sexos, inserida no desenrolar do complexo de Édipo e o complexo de castração. A menina castrada, durante o período do complexo de Édipo em que tenta tomar o lugar da mãe junto ao pai, desenvolve uma competição familiar que percorre durante toda a sua fase de formação, tornando-se algo natural a ponto de ser repetido em sua convivência matrimonial posterior. Ao substituir o pai

7 pelo marido, a castrada tenta repetir esse comportamento desafiador no novo lar, como forma de serem amadas e de se imporem a condição de não-completamente-castrada. O que acontece com a menina é quase oposto, complexo de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo; a menina é forçada a abandonar a ligação com a sua mãe através da influência do pênis, e entra a situação edipiana como se esta fora um refúgio. [...] Muito frequentemente ocorrem regressões as fixações das fases pré-edipianas; no transcorrer da vida de algumas mulheres existe uma repetida alternância entre períodos em que ora a masculinidade, ora a feminilidade, predominam (FREUD, 1933, p. 129). Esse percurso histórico nos remete a mulher dos dias de hoje, o eterno estado de dever algo, carrega em seu escopo à ambivalência entre o prazer de suas conquistas e o sofrimento da não doação em sua plenitude. Apesar de todas as marcas sociais, culturais, a mulher escolhe ir além do que era o seu destino inicial, condizendo com a constituição de seu desenvolvimento psíquico. Nos dias atuais, a mulher ainda carrega consigo os aspectos culturais que corroboram com um movimento de trazer para si toda carga de preocupação, de tarefas, de sentimentos de frustração. Atribuímos também à feminilidade maior quantidade de narcisismo, que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para ela, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. A inveja do pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir á necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original. (FREUD, 1933, p.131). Na concepção freudiana, percebe-se que as mulheres são mais propensas ao amor, ao romantismo, uma preocupação com a afetividade e a satisfação de seus desejos e sentimentos, afinal seu superego é menos rigoroso. Esta ideia nos remete ao entendimento de que a mulher sempre busca encontrar nas emoções o sucesso de seus papéis. Esse sentimento de buscar a uma satisfação completa a remete a incompletude inerente ao ser humano, tendo como consequência psíquica, sentimento de falha, de que poderia ir além... E será possível contemplar toda essa ansiedade feminina juntamente com essa evolução? Afinal o que quer a mulher, ser feliz ou esperar que a vida se descortine em um mundo idealizado e perfeito?

8 4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A pesquisa desenvolveu-se em um paradigma qualitativo, possibilitando a abrangência de diversas dimensões do problema a ser investigado por meio dos dados colhidos através de entrevistas, não envolvendo a quantificação, mas sim a qualificação das variáveis observadas. (MINAYO, 1994). Tendo como propósito geral descrever ou caracterizar o evento de estudo, dentro de um contexto particular. (CERVO, 2002, p. 45). Quanto à modalidade de pesquisa qualitativa escolhida, utiliza-se do formato de Estudo de Caso que constitui [...] uma forma de se fazer pesquisa empírica que investiga fenômenos contemporâneos dentro de seu contexto de vida real, em situações que as fronteiras entre o fenômeno e o contexto não estão claramente estabelecidas (YIN, 1989, p. 23), contemplando o fenômeno aqui estudado, impossível de ser alcançado se de forma descontextualizada. No contexto qualitativo, empregou-se a categoria de pesquisa de campo como primordial para produção de dados que possibilitassem a realização de tal estudo. Foram convidadas a participar da pesquisa três mulheres, casadas, possuindo nível superior, com filhos e que ocupam cargos em setores públicos e privados, fazendo jus ao tema com o perfil da chamada tripla jornada da mulher pós- moderna. A escolha se deu através de indicações de algumas pessoas pertencentes ao meio que conheciam a trajetória dessas mulheres. A coleta de dados foi mediada pela técnica de entrevista aberta, propondo inicialmente a pergunta disparadora: Gostaria de saber se você de alguma forma se identificou com meu tema de pesquisa, se possui alguma relação com seu cotidiano? De acordo com surgimento das lacunas e dúvidas nas falas das entrevistadas foram inseridos os questionamentos pertinentes relacionados à pesquisa. O número de encontros foi flexível, delimitado pela disponibilidade das entrevistadas, em média constituindo três encontros com cada uma delas. Para obtenção das informações fornecidas pelas participantes da pesquisa foi utilizado um gravador eletrônico, a fim de proporcionar a melhor captação e consequente fidedignidade dos dados. O referencial teórico adotado para análise dos dados foi a teoria psicanalítica, bem como para tratamento dos dados será utilizado a análise do discurso. Baktin afirma com propriedade que a linguagem tem de expressar exatamente o sujeito que a utiliza, é um artificio sócio histórico, portanto que acompanha a evolução do sujeito (BAKIN apud

9 FARACO; TEREZZA; CASTRO, 2001), corroborando a utilização do arcabouço teórico escolhido nos moldes que a análise de discurso propõe. 5. APRESENTAÇÃO DOS DADOS E ANÁLISE Para realização desta pesquisa foram entrevistadas três mulheres. A primeira delas tem 33 anos, casada, tem uma filha de seis anos, é advogada durante o dia e a noite é professora universitária, aqui será nomeada de Sofia; a segunda participante tem 39 anos, casada, tem dois (uma filha de seis anos e um filho de dez anos), é psicóloga em um órgão do estado e professora universitária, aqui será nomeada Júlia; a terceira pesquisada tem 35 anos, casada, tem uma filha de sete anos, é nutricionista, faz atendimentos clínicos e presta serviço nas usinas e será nomeada de Vitória. Foram feitas três entrevistas com cada uma delas. Ressalta-se que os nomes, locais de trabalho e demais dados foram modificados tendo em vista a proteção da identidade das mulheres pesquisadas. A condução da entrevista ocorreu inicialmente com uma pergunta disparadora, questionando-as se as pesquisadas possuíam algum tipo de identificação com o tema e de acordo com o decorrer dos diálogos foram introduzidos questionamentos pertinentes ao viés do tema pesquisado. Como arcabouço teórico que corrobora a análise dos dados desta pesquisa utilizou-se a teoria psicanalítica. Diante disto, constataram-se alguns de seus preceitos que permearam as conclusões deste estudo. Devemos, portanto elencar os mais importantes, onde é possível identificar tais preceitos e tecer observações teóricas em consonância com os discursos das mulheres supracitadas. Os aspectos mais recorrentes em suas falas foram sintomas de angústia, culpa, frustração e utilização de mecanismos de defesa como maneira protetiva contra a realidade dos conflitos psíquicos. Tornou-se evidente que todas estas mulheres sofrem conflitos internos e possuem dificuldade de lidar com os mesmos, estando em constante estado de ambivalência entre o princípio de prazer e de desprazer, ou seja, um conflito psíquico que oscila entre o estado de felicidade por suas conquistas alcançadas, experimentando sensações de realização pessoal em determinado âmbito e, em contrapartida, angústia oriunda da incompletude na execução de todos os papéis a elas destinados.

10 Freud (1930) ilustra de forma bastante cristalina em sua obra no texto O mal estar na civilização -, que toda busca possui dois lados, a chamada ambivalência entre a dor e o prazer: [...] uma meta positiva e uma negativa, onde por uma parte querem a ausência de dor e de desprazer; por outra, vivenciar intensos sentimentos de prazer (FREUD, 1930, p.76). Entre as mulheres pesquisadas tal ambivalência era claramente tratada em seus discursos. Alguns exemplos são apresentados nos seguintes trechos destacados. Júlia diz: Eu me considero feliz com minhas conquistas. Mas, às vezes me sinto angustiada, como se tivesse sempre perdendo algo. Difícil colocar em palavras, um misto de sentimentos. Mas, é como se devesse sempre as pessoas que me cercam, minha filha, meus amigos, família e meu marido. Por sua vez, Sofia ilustra tal ambivalência de forma clara no seguinte trecho do relato de sua vida: Depois que minha filha nasceu eu não posso me dar ao luxo de trabalhar só no escritório, porque a grana aperta. Minha filha tem problema de aprendizagem e com isso não posso contar somente com o escritório, ela tem gastos com psicólogos, aulas de reforço e o dinheiro da docência cobrem esses gastos. Além do mais, lá é a minha válvula de escape, eu me sinto útil ao fazer parte do crescimento dos meus alunos. É engraçado, mas, lá me sinto viva e ao mesmo tempo quando volto para casa, vejo minha filha dormiu me esperando para contar uma história, mostrar um desenho, aquilo que causa uma angústia profunda. Vitória ressalta que o tema da pesquisa fez com que retomasse um questionamento íntimo Quando você me procurou pela primeira vez e disse que havia sido indicada por uma pessoa por possuir o perfil de sua pesquisa, fiquei me questionando até que ponto uma mulher moderna se sente plena e realizada. Confesso que não estou em uma fase feliz... As falas supracitadas elucidam a ambivalência e os conflitos psíquicos vivenciados pelas mulheres entrevistadas. Segundo Laplanche (1999) a Ambivalência seria uma presença simultânea de tendências, atitudes e sentimentos opostos, experimentando a sensação de amor e ódio no mesmo objeto (p. 17). Esses sentimentos resultam em ações conflituosas e caminham ao mesmo tempo em representações idealmente benéficas e em outros momentos essencialmente destruidoras.

11 Freud (1915) em Características Especiais do Sistema Inconsciente afirma que os conteúdos inconscientes ocorrem destituídos de contradições. Percebe-se que os registros das entrevistas verbalizam a vivência de dor e o prazer que se revelam como uma carga efetiva única, com isenção de contradição mútua, atemporalidade e substituição da realidade externa pela psiquê - tais são as características que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema inconsciente. Um segundo fator elucidado nas falas das mulheres diz respeito à repetição. Freud em Além do principio do prazer (1920) ressalta a repetição como um processo inconsciente onde o sujeito se coloca ativamente em situações penosas, repetindo assim experiências antigas. Ressalta que a configuração da repetição parte de uma dinâmica puramente conflitual entre o prazer e o princípio da realidade. O termo repetição vem de uma conotação de reprodução de maneira disfarçada, na qual o indivíduo atua no presente sob a forma de eventos passados (FREUD, 1920). A repetição se constitui como uma contradição entre o passado e o presente: Júlia Cresci vendo a submissão de minha mãe, isso de alguma maneira me marcou muito, o que meu pai dizia não era questionado, era simplesmente aceito. O moralismo dele era apenas em casa, pois, vivia traindo minha mãe pela vizinhança. E hoje ainda sou cobrada pelo meu marido a realizar tarefas domésticas como se fossem destinadas apenas a mim e o pior eu acabo deixando pra lá porque vivo tão cansada que não quero brigar. Sofia relata que seu marido colabora apenas no setor financeiro, sempre esperando que ela realize os afazeres domésticos e por conta disto as brigas são frequentes, verbaliza chegar cansada tarde da noite e o marido está esperando para jantar por não ter nada pronto. Afirma ter moldado sua relação desta forma e com isso acredita que perdeu a chance de ter uma vida mais leve. Já Vitória relata existir um fato interessante em sua história, se casou com uma pessoa dezoito anos mais velha que ela, onde no começo era tudo perfeito, ele o apoiava em suas ideias e com o tempo percebeu que ela o considerava machista como seu pai. O discurso de seu marido fazia com que ela se recordasse de seu pai que acreditava que o lugar de mulher era em casa, cuidando dos filhos e do marido. Meu marido sempre cobra que preciso emagrecer que estou descuidada, que ele preferia quando eu não trabalhava que eu me cuidava mais e era mais interessante e menos estressada. E é engraçado porque nunca parei para questionar se ele é um bom pai, se é ausente, é como se para o homem, ser ausente, ser

12 fechado é natural, a mãe não, ela tem que ser perfeita, afetiva, referência como profissional, tem que estar com tudo em cima. Em dado momento percebe-se em seu discurso de Vitória uma forma de rememorar os seus questionamentos passados, como uma elaboração de conteúdos do seu presente: Mas e as aspirações profissionais de minha vida? Os estudos aos quais me dedicara à vida inteira? O prazer de realizar trabalhos compatíveis com o grau de instrução que havia adquirido a duras penas àquela altura da vida? O que eu faria com tudo isso? A fala de Júlia corrobora o padrão repetitivo inerente à dinâmica humana comum no contexto dessas três mulheres, quando reflete sobre seus interesses intelectuais e laborais: Sempre fui rebelde, apanhava porque queria ler as coisas proibidas, a leitura me levava para onde queria, sempre quis ser independente, comecei a trabalhar com 14 anos, ajudando minha tia em uma loja de sapatos e engraçado que até meu curso tem um caráter machista. A história da assistência social mostra que foi inventada para mulher ajudar no social, como se ela só servisse para praticar caridade e fosse desprovida de inteligência. Na tentativa de abarcar todos os papéis, aliados a dificuldade de desvencilhar-se dos traços culturais, a mulher está abrindo mão de seus desejos em prol do bem estar dos outros, colocando-se sempre em posição secundária. Na busca incessante de encontrar realização no bem estar do outro, quer seja dos filhos ou do marido, a mulher anula seus desejos inconscientes com a ideia fantasiosa de que sua felicidade depende basicamente do bem estar dos outros, buscando uma maneira de reparar aquilo que está incomodando de alguma forma. Enquanto suas mães ou referências de mulher se subjulgavam explicitamente as ordens de seus maridos, a mulher pós-moderna dedica-se dia e noite ao trabalho e estudo em prol de um bem estar próprio, mas também familiar. Não cozinha, lava roupa e serve o dia inteiro, mas reproduz no cenário moderno dos escritórios, função docente, consultórios e cargos públicos uma produção financeira que supra a demanda própria e também a demanda doméstica. Como revela Júlia: Durante muito tempo sustentei a nossa casa, não podia viver linda, perfumada, malhando em academias caras, porque o que meu marido ganhava era muito menos do que eu, mesmo com toda correria e tripla jornada, era essa correria que supria as nossas necessidades. Tal dinâmica ainda nos remete ao que Melanie Klein descreve a respeito da reparação, trata-se de um mecanismo onde o sujeito procura reparar os efeitos produzidos no seu objeto de amor pelas suas fantasias destruidoras, mecanismo este que está vinculado à angústia e a culpabilidade (Laplanche, 1999).

13 Com isso, as relações conjugais se perdem, os vínculos tal como são idealizados não se consolidam. Novos modos de relacionamento se moldam nessa nova estrutura de rotina da mulher, com a demanda de um companheiro com pelo menos algumas características de antigamente. A mulher pós-moderna está sempre vivenciado traços culturais do passado em novos tempos. Eu e meu marido nos afastamos muito, dormimos em quartos separados, porque durmo muito tarde e não quero atrapalhar o sono dele, as coisas se perderam, conta Sofia. Essa nova configuração faz com que as mulheres em certos momentos de acesso a conteúdos pré-consciente percebam os seus conflitos de maneira realista e sofram intensamente. Isso não existe, não tenho vida social, amizades só existem se for uma via de mão dupla, as pessoas cansam de te procurar e não ter uma contrapartida observa Júlia. Nesses momentos reais, a mulher entra em conflito com seus anseios e experimenta situações que trazem a tona o seu verdadeiro e real estado psíquico. As coisas se perderam, vivo cansada, estressada, meu marido me cobra que preciso me cuidar, me sinto desinteressante e me magoa muito o fato dele nem me ligar para saber se comi, como passei meu dia relatou Vitória, chorando. Percebe-se claramente que diante dos conteúdos manifestos, adentrando por vezes em terrenos conscientes as mulheres se deparam com dores reais onde na correria do cotidiano conturbado de tarefas são mascarados na tentativa de minimizar dissabores e conflitos internos. Sofia nos relata com lágrima nos olhos a sua verdadeira percepção de um desejo real em relação a sua vida social: Minha vida social está tão ruim, como trabalho muito não crio vínculos com as pessoas. Um dia desse eu me peguei me arrumando toda, fui ao salão pra ir ao velório de um amigo de família, como se aquilo fosse um evento social mesmo, fazia tanto tempo que não me arrumava e nem saia que eu tive dificuldade de encontrar uma roupa adequada para isso. Em que ponto eu cheguei meu Deus. Diante destas medidas defensivas a mulher acaba por anular seus anseios, vontades e desejos. Busca sempre realizar-se no desejo dos outros, como uma forma de aniquilar a suas vontades reprimidas. Nossa... Até eu me assustei quando descrevi minha rotina a você, eu não existo (Silêncio). O desejo de olhar-se inteiramente com o mesmo amor que realiza o cumprimento de seus papeis tornou-se algo intangível. Às vezes quero um espaço pra mim, me questiono de que adianta sair de casa sete da manhã e voltar onze é bem complicado (Vitória).

14 Os lapsos de realidade que ocorrem em alguns momentos se traduzem em dúvidas e questionamentos de seu verdadeiro papel. Muitas vezes a rigidez do superego faz com que a mulher se torne fria na busca de satisfazer de maneira mecânica tudo que lhe é destinado. Me sinto como um robozinho, minha cabeça não para, estou sempre atenta a não esquecer nada. (Sofia). Essas mulheres utilizam-se da justificação de seus atos em prol de algo maior, que segundo as mesmas, são destinados sempre aos outros: filhos, marido, família, trabalho e etc. Às vezes me sinto muito angustiada, mas, tenho que fazer isso enquanto sou nova, não se pode ter tudo, bola pra frente (Júlia). A maneira como a mulher pós-moderna vivencia os seus prazeres está intimamente ligada a corrente afetiva e constitui-se nos primeiros anos da infância. Segundo Freud (1912\1996): a escolha de como a mulher transfere o seu objeto está intimamente relacionado com o modo de afeição que os seus pais lhes ensinaram, como uma repetição daquilo que recebeu. A forma como elas lidam com os relacionamentos possui uma dinâmica depreciativa, doando-se de maneira plena ao outro, esquecendo-se de si mesma. Como ilustra a fala de Júlia: Não é fácil, mas, vejo a felicidade deles e é isso que me importa. Estes mecanismos de autopunição buscam sempre mascarar desejos inconscientes como uma medida protetiva da psiquê. Vitória revela em uma de suas falas que precisou cair dura no meio de uma avenida para perceber que precisava diminuir seu ritmo. Minha pressão estava altíssima, meu nível de estresse no pico, neste dia eu pude perceber como havia me largado de mão, precisei chegar a esse ponto, é a história de que quando você não para, Deus te para. Mascarar as limitações serve como uma finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelos quais somos ameaçados. A fim de desviar de certas situações desagradáveis que surgem do interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra o desprazer oriundo do exterior, este é o ponto de partida de importantes distúrbios psicológicos (FREUD, 1930, p.76). Defender-se dos conflitos psíquicos da mulher reduz o sofrimento e desloca os seus pensamentos a acomodar-se de maneira que o outro seja mais importante. Batalho muito por ela, compramos uma casa grande, minha filha está feliz lá e não posso abrir mão da felicidade dela (Júlia). Freud em Além do principio do prazer (1920), apresenta a ideia de que o desprazer no aparelho psíquico pode ser tomado como prazer para o outro (FREUD, 1920, p.31).

15 Anular-se muitas vezes é a solução para sentir-se realizada, buscando satisfazer anseios dos outros e esquecer-se dos próprios. Sofia comenta que se percebe como uma mulher-maravilha sem poderes. Eu sou a mulher-maravilha capenga, porque faço tudo pelos outros, mas pra mim mesmo, nada. Sempre fui vaidosa, depois que minha filha nasceu, engordei, o tempo foi passando, passando e hoje está difícil cuidar de mim e voltar para o meu peso. Neste cenário moldado pela mulher pós-moderna traz em seu escopo uma alusão a sentimentos contraditórios onde os sinais aparecem no descontrole do seu comportamento e neste momento a mulher liberta-se de suas defesas deixando por vezes emergir vontades reais e que ficam puramente em grande parte do tempo em seus conteúdos inconscientes, um exemplo disso são os sonhos, eles muitas vezes ilustram os desejos burlados por mecanismos. Os sonhos constituem as realizações de desejos (FREUD, 1933, p.36). Vitória relata que possui sonhos recorrentes mudando apenas as pessoas e nesses sonhos ela está em festas, arrumada, feliz e rodeada de amigos: No fundo sei que era o que eu queria viver. Freud (1933) elenca em sua obra no texto Revisão da Teoria dos Sonhos as diferentes funções e forma de constituição dos sonhos: modo relativamente casual, por estímulos externos, por interesse do dia anterior e pelos impulsos instintuais reprimidos insatisfeitos que estão à espera de oportunidade de se expressarem. A fala acima corrobora que os desejos reais encontram-se reprimidos, onde por vezes aparecem em manifestações do inconsciente, os sonhos. A maneira com que as mulheres lidam com seus conflitos internos levam a sentir, em grande parte do discurso, a culpa por algo que elas buscam respostas e não conseguem clarificar de maneira consciente. Sofia relata com grande emoção uma fala de sua filha: Mamãe você pode me colocar numa escola mais baratinha para ficar mais tempo comigo, não tem problema, eu assisto filme em casa que é mais barato. Imagine ouvir isso. Mas, tenho esperança que quando ela cresça ela entenda que tudo que faço é por ela. Os sentimentos de culpa estão sempre à frente das realizações, nunca no mesmo patamar, ele se insere ou no contexto familiar, ou na função de mãe, esposa, dona de casa, filha ou até mesmo no descaso e anulação de seus anseios pessoais. Sentimento de culpa é sistema de motivações inconscientes que explica comportamentos de fracasso, sofrimentos que o individuo inflige a si mesmo. Laplanche (1999, p.473). Cada coisa da dá errado no meu trabalho eu sofro, acho que a culpa é minha. E neste mesmo período eu descobri uma traição do meu marido, entrei numa depressão porque eu achava que a culpa era minha, nunca estava em casa, claro que iria ser traída, que era para eu aprender (Júlia).

16 E Vitória: Minha filha Me ligou no meio da tarde e disse mamãe eu olhei o meu porquinho e ele tá bem cheio, acho que você pode ficar em casa hoje.... Aquilo me matou, minha filha implorando minha atenção, larguei tudo e fui pra lá com ela, sentamos no balanço, esse dia estava chuviscando, um vento bom, aquele vento no rosto e a felicidade dela. Mas, não se pode ter tudo, né. Neste processo conflituoso entre os instintos e desejos (ID) e as cobranças pessoais e sociais (superego) a mulher está cada vez mais desenvolvendo patologias como transtornos de ansiedade, depressão, fobias e outros. A vida em sua boa parte tornou-se mecânica, uma eterna busca de cumprimento dos seus papéis em função do bem estar de outrem. Percebe-se que a mulher tomou para si um grande acumulo de atribuições, outro tipo de submissão que se torna contraria a toda evolução que se buscou. É fato que a repressão da mulher perdura ainda nos dias de hoje e traços culturais ainda permeiam de forma inconsciente em sua estrutura psíquica. Diante disto, as mulheres pós-modernas têm grandes probabilidades de vivenciar uma sensação de dever algo, dificultando a elaboração de seus conteúdos inconscientes. A fala a seguir possui um teor ilustrativo do resumo de todos os conflitos vivenciados por estas mulheres em sua eterna corrida pela completude de seus anseios: Se pudesse te resumir o que penso sobre o meu olhar sobre as mulheres modernas não capta tanta diferença sim, não na essência; há, sim, um discurso vanguardista de valorização das capacidades da mulher, que se iguala ao homem no mercado de trabalho, a existência de modernas creches, a ajuda e a parceria do companheiro etc. Porém, enxergo na mulher de hoje o mesmo ideal romântico com relação à maternidade, as mesmas expectativas das princesas de minha infância. Quanta ilusão! Nem nós sabemos o que queremos. (Vitória). Com isso, é possível inferir a respeito da existência de uma grande dificuldade na elaboração dos conflitos psíquicos, originados da inserção da mulher em muitos contextos, tentando vivenciar de modo total a execução de múltiplos papéis, mascarando seus anseios pessoais, buscando motivos racionais para a condução de suas dinâmicas relacionais e possivelmente estar cada vez mais se distanciando do que consideram o principal: Ser feliz.

17 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização deste estudo teve como principal objetivo elucidar a percepção da mulher pós-moderna diante dos inúmeros papéis que exerce e se estes acarretam conflitos psíquicos e sofrimento. Procuramos mostrar resumidamente sua trajetória histórica, em um segundo momento, a importância da figura feminina para Freud, que teve a mulher como figura central na descoberta da psicanálise e com a análise de dados enfatizar através do discurso das mulheres pesquisadas o real significado do que vem a ser uma mulher pós moderna nos dias atuais. Pudemos perceber que as mulheres pós-modernas vivem diante de um conflito psíquico ambivalente entre prazer (felicidade) e desprazer (angústia). Ao mesmo tempo em que se sente realizada profissionalmente, sente-se profundamente culpada e angustiada por não realizar outras funções como mãe, esposa, dona de casa de maneira plena. Pode-se constatar que essas mulheres recorrem a mecanismos de defesa como um escudo protetivo contra os seus conflitos internos. A mulher diante de toda caminhada histórica onde antes era vista como desprovida de intelectualidade e seu papel limitava-se aos cuidados com a casa, filhos e marido acaba negligenciando a si mesma, cedendo à pressão, imposta pelo acúmulo de tarefas, assumindo um caráter nocivo e culminando no desencadear de alterações psicológicas consequência do protagonismo por vezes exacerbado, centralizador e perfeccionista da mulher do século XXI. Um ponto de suma importância quando se refere ao estudo da mulher diz respeito à diferenciação que se faz do gênero feminino e masculino. E em nossos estudos pudemos perceber que pensar nessa diferenciação perpassa não somente em suas diferenças anatômicas e psíquicas, se faz também no ambiente e principalmente em seus vínculos iniciais. Freud em seu texto sobre a feminilidade (1933) ilustra essa importância elencando os pais como importante vinculo inicial e primordialmente a mãe, estes vínculos moldam o desenvolvimento na vida adulta. Este entendimento de transferência vai ser o fio condutor na estruturação egóica da mulher, onde de maneira bastante cristalina percebeu-se que ocorre uma repetição dos vínculos iniciais, com certa adaptação as novas dinâmicas familiares e que provavelmente serão repetidos em seus filhos e em seus netos.

18 Diante disto, concluímos que com toda evolução da mulher pós- moderna, percebe-se que todos os seus conflitos psíquicos estão baseados no aspecto da afetividade, a mulher busca realizar-se no outro como uma maneira de sentir-se feliz e realizada. Essa busca de amor e afeto se mostra no momento em que ela espera do outro um reconhecimento do seu esforço em buscar de maneira incessante abarcar todos os seus papeis com primor e perfeição. Os tempos evoluíram novos papeis foram configurados, dinâmicas familiares se mostram em novos cenários e a mulher ainda nos dia de hoje possui traços culturais de dependência, onde antes de ordem financeira e hoje essa dependência é de afeto, a mulher moderna busca ser amada com todas as medidas protetivas que utiliza no sabotamento incutido em seus conflitos. Ana Jácomo (2010) uma poeta dos tempos modernos ilustra em um dos seus versos que a mente do ser humano é uma casa que não tem paredes, mas acostuma-se a passar temporadas nos cômodos mais apertados, com medo de enfrentar aquilo que é desconhecido e com isso a dor vira companhia e quem sabe pelo receio de não saber o que fazer com o espaço, às vezes grande, que ficará desocupado se ela sair de cena. Ou seja, a mulher pós-moderna possui uma grande dificuldade de transitar pelos outros cômodos da casa e buscar conhecer aquilo que de alguma forma lhe cause dor ou felicidade.

19 REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1995. BRAIT, Beth. A natureza dialógica da linguagem. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin, Curitiba: UFPR, 2001. BIRMAM, J. Mal-Estar Na Atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999. BRUSCHINI, Cristina. In: SAFFIOTI, Heleieth I.B e VARGAS, Monica Munhoz (orgs.). Mulher Brasileira é Assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994. CERVO, Amado Luiz; BERVIAN; Pedro Alcino. Metodologia científica. São Paulo: Prentice Hall, 2002. FREUD, Sigmund. (1893). Sobre o mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.03.. (1912). Contribuições à Psicologia do amor II. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 11.. (1915). As características Especiais do Sistema Inconsciente In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 14.. (1920). Além do Principio do Prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 18.. (1930). O Mal Estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 21.. (1933). Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.22.. (1933). Revisão da Teoria dos Sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 22.

20 JÁCOMO, ANA. Poemas e Avessos. 2010. Disponível em http://poemaseavessos.blogspot.com.br/2012/06/ana-jacomo_9367.html. Acesso em: 02.11.2012. LAPLANCHE, J e PONTALIS, J.B. (s\d). Vocabulário de Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1999. MINAYO. Maria Cecilia de Souza. Ciência, técnica e arte. O desafio da pesquisa social. In pesquisa social: teoria método e criatividade. 4 ed. Petrópolis Vozes, 1995. NASIO, Juan-David. Édipo: O complexo do qual nenhuma criança escapa. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007. POULAIN, Amelie. Trecho do filme: O Fabuloso destino de Amelie Poulain. 2001. STEARNS, P. N. De História da Sexualidade. São Paulo: Contexto. 2010. Yin, R. K. Case study research: design and methods. Newbury Park, CA: Sage Publications, 1989.