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CBPF-MO-002/96 Caos em Sistemas Dissipativos e Hamiltonianos y Alfredo M. Ozorio de Almeida Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas - CBPF Rua Dr. Xavier Sigaud, 150 22290-180 Rio de Janeiro, RJ, Brasil y Palestra apresentada ao Forum da Ci^encia e Cultura da UFRJ em 1995.

{1{ CBPF-MO-002/96 1 Introduc~ao Caos e complexidade s~ao conceitos que usamos para compreender a realidade que nos cerca. A noc~ao de complexidade, alem do seu sentido comum, tornou-se recentemente o norte de uma busca de unicac~ao de um conjunto de problemas fundamentais. Por seu lado, o caos se condensou, dentre suas inumeras conotac~oes, inclusive a bblica, em um dos tipos possveis de evoluc~ao na disciplina matematica dos sistemas din^amicos. A abrang^encia dessa teoria e tal que farei uma tentativa de explicitar a relac~ao entre a formulac~ao matematica e os sistemas fsicos, biologicos, econ^omicos, etc., que com ela pretendemos modelar, na primeira sec~ao desta confer^encia. Na segunda sec~ao focalizarei os sistemas mec^anicos da fsica classica. Estes deram, de fato, origem a toda a teoria dos sistemas din^amicos e permanecem paradigmas do seu sucesso. E nesse contexto que surge a distinc~ao entre os sistemas dissipativos e os hamiltonianos, estes de import^ancia fundamental para a fsica, enquanto aqueles dominam quase todas as aplicac~oes da engenharia. Para nalizar, farei um rapido esboco da teoria qualitativa do caos, conhecido na matematica como hiperbolicidade. Tentarei mostrar que, mesmo nos casos mais simples de movimento caotico, a aparente aleatoriedade de quase todas as orbitas tem, como substrato maravilhosamente complexo, um esqueleto de orbitas periodicas imerso dentro de uma hierarquia de subconjuntos fractais. 2 O Modelo Matematico O problema inicial na explicac~ao dos conceitos que caracterizam o movimento caotico esta em distinguir aqueles que se referem a realidade fsica, que queremos compreender, daqueles pertinentes aos modelos matematicos, que para isso construimos. Tratamos da teoria matematica dos sistemas din^amicos, baseada nos seguintes postulados: 1. O sistema e descrito por um conjunto de variaveis. Especicando o valor numerico destas, denimos unicamente o estado do sistema. 2. Dado o estado a qualquer instante, sua evoluc~ao para todo o tempo ca completamente determinada. Existe portanto uma lei de movimento inteiramente determinista. Evidentemente, n~ao seria nem praticavel, nem desejavel quanticar dessa maneira todos os sistemas que evoluem no tempo. Na melhor das hipoteses, teremos um modelo aproximado, pela necessidade de ignorar pequenas interac~oes do sistema com o resto do mundo. Mesmo na fsica, a mec^anica qu^antica n~ao se enquadra dentro da teoria de sistemas din^amicos. N~ao obstante, existe um enorme numero de sistemas fsicos, biologicos, econ^omicos, etc., possveis de serem descritos por este quadro conceitual de extrema simplicidade. O problema mais difcil e ode estabelecer a lei de movimento. Esta n~ao pode ser inteiramente emprica, uma vez que seja impossvel vericar a evoluc~ao de um numero innito de estados possveis. Mesmo assim, em alguns campos adquirimos uma incrvel conanca nas leis de movimento estabelecidas a seculos, de modo que n~ao me reterei mais nesta quest~ao. Podemos considerar todos os sistemas din^amicos dentro de uma vis~ao geometrica. Tomamos cada uma das N variaveis x 1 x 2 x N, que denem os estados do sistema, como um eixo no espaco de estados. Esse espaco de N dimens~oes e tambem conhecido historicamente como o espaco de fases. Como vemos na gura 1, cada estado e ent~ao descrito por um unico ponto x =(x 1 x N ) no espaco de fases. Ainterpretac~ao geometrica de nosso segundo postulado passa a ser a de que existe uma unica curva, x(t), no espaco de fases, que descreve aevoluc~ao do estado. Chamamo-ladeorbita ou trajetoria do estado. Matematicamente, este determinismo resulta da denic~ao da lei de movimento como um sistema de equac~oes diferenciais de primeira ordem: Denominando a taxa de variac~ao temporal das variaveis de _x 1 _x 2 estas est~ao denidas para cada estado a cada instante, _x 1 = F 1 (x 1 x 2 t) _x 2 = F 2 (x 1 x 2 t) Convem visualisar o conjunto de func~oes acima como denidoras de um vetor em cada ponto do espaco de fases F (F 1 F 2 ). Isso permite sintetizar a lei do movimento de forma _x = F (x t):

{2{ CBPF-MO-002/96 Do ponto de vista analtico isto e apenas uma compactac~ao de notac~ao, mas agora a interpretac~ao geometrica nos diz que a orbita tem que ser tangente ao vetor em cada um dos seus pontos, como mostra a gura 2. Quando voltamos da matematica para o mundo real, temos que levar em conta que n~ao podemos medir o estado do sistema com innita precis~ao. Devamos, ent~ao, em princo, em vez de seguir uma unica trajetoria, tomar um conjunto de trajetorias, cujo estado inicial se encontre em uma bolinha do espaco de fases. Temos basicamente duas possibilidades esbocadas nas guras: (a) No caso de movimento regular, a imprecis~ao inicial, expressa pelo di^ametro da bolinha, talvez n~ao aumente ou aumente lentamente, (b) A bolinha se estique exponencialmente com o tempo. Neste caso dizemos que o movimento e caotico. Apesar do sistema din^amico matematico ser perfeitamente determinista, n~ao podemos usa-lo para prever aevoluc~ao real que ele modela. A primeira vista, a constatac~ao de que a maioria dos sistemas din^amicos s~ao ao menos parcialmente caoticos parece desqualica-los para a nalidade para a qual foram concebidos. Entretanto, o determinismo destes sistemas se reete na estrutura dos emaranhados de orbitas, que ja foram desvendados pelos matematicos nos casos mais simples. Apesar de maravilhosa complexidade dessas estruturas, n~ao resta duvida de que falta muito a ser conhecido no ^ambito dos sistemas din^amicos gerais, como enfatiza J. Palis nesta mesma serie de palestras. Apesar da abrang^encia da teoria aqui esbocada, vale a pena concentrar a atenc~ao nos sistemas mec^anicos de fsica que deram origem a essa disciplina. E a que obtemos a melhor correspond^encia entre movimento real e sua representac~ao matematica. E tambem nesse contexto, atraves do conceito de energia, que elucidamos as diferencas marcantes entre caos dissipativos e caos hamiltoniano. 3 Sistemas Mec^anicos Os sistemas da mec^anica classica s~ao regidos pela segunda lei de Newton: x = F (x _x t) onde x e a acelerac~ao (segunda derivada) da posic~ao x. Embora esse sistema de equac~oes (no caso de x ter mais de uma coordenada) seja inteiramente determinista, ele n~ao se enquadra dentro do conceito estreito que discutimos de sistema din^amico, por ser de segunda ordem. N~ao exite ent~ao uma unica orbita passando por cada posic~ao. Precisamos desdobrar as equac~oes de Newton de alguma forma, tal como _x = v _v = F (x v t) para trata-lo como um sistema din^amico matematico. Vemos assim que, se o sistema mec^anico for descrito por L coordenadas (conhecidas como L graus de liberdade), o sistema din^amico correspondente tera (2L) dimens~oes, por causa da inclus~ao das L velocidades correspondentes a cada coordenada. Chamamos de sistema aut^onomo aquele em que o campo vetorial n~ao aparece explicitamente nas equac~oes de movimento. Em geral s~ao os sistemas que podemos considerar isolados da inu^encia do resto do universo. O exemplo classico, de grande import^ancia historica, e o sistema solar. Podemos considerar todos os planetas, o sol e os asteroides como sendo cada um reduzido a um ponto no espaco usual de tr^es dimens~oes. Cada astro contribui ent~ao com seis graus de liberdade para o espaco de fases e a evoluc~ao do sistema solar como um todo sera representada por uma trajetoria em um espaco de fases de um numero grande (porem nito) de dimens~oes. A lei de movimento e fornecida pela lei de gravitac~ao universal entre cada par de astros. Devido a preponder^ancia da atrac~ao de cada um dos outros astros pelo sol com sua maior massa, podemos de incio dividir o sistema solar em uma porc~ao de sistemas quase inpendentes, cada um contendo so o sol e mais um dos outros astros. A demonstrac~ao, por Newton, de que nesse limite as orbitas ser~ao elipses teve um enorme impacto: n~ao so as orbitas s~ao simples, mas pequenas modicac~oes do estado inicial apenas modicam ligeiramente os par^ametros das elipses. O movimento n~ao e caotico! Criouse ent~ao a expectativa de que o pequeno efeito gravitacional dos outros astros tambem n~ao alteraria fundamentalmente o movimento. Por essa raz~ao, demorou cerca de dois seculos para Poincare mostrar que ja o movimento de tr^es astros pode ser caotico.

{3{ CBPF-MO-002/96 Convem ilustrar as propriedades dos sistemas din^amicos por meio de um modelo mais simples do que o problema de tr^es corpos. Consideremos um p^endulo esferico, isto e, uma massa presa a uma haste rgida como mostra a gura 4. Se simplesmente soltarmos a haste fora da sua posic~ao de equilbrio vertical, o movimento da massa descrevera um arco de crculo dentro de um plano vertical. Porem, dando tambem uma velocidade transversal com relac~ao a esse plano, o movimento vai gerar uma curva cuja unica restric~ao e pertencer a uma superfcie esferica. Nesta, a posic~ao e descrita por dois ^angulos a partir da posic~ao vertical de equilbrio, de modo que lidamos com um sistema din^amico aut^onomo de quatro dimens~oes. Podemos distinguir dois tipos de forca atuando sobre a massa. Primeiro temos a forca gravitacional, que a estrutura do p^endulo transforma em forca restitutiva, isto e, a forca sempre tende a restaurar o equilbrio. As duas componentes s~ao respectivamente proporcionais a [;sen 1 ]e[;sen 2 ]. As outras forcas atuando sobre a massa s~ao formas de atrito, mormente a resist^encia do ar e o atrito do rolamento da haste no seu suporte. As forcas de atrito dependem principalmente da velocidade. Sua principal caracterstica e queosentido da forca e sempre contrario ao de velocidade. As forcas de atrito s~ao exemplos de forcas dissipativas. Devido a sua presenca, o p^endulo esferico sera sempre um sistema dissipativo: Aorbita do estado sempre caminha para um atrator de dimens~ao menor que a do espaco de fases. No caso do p^endulo esferico, o atrator e o mais simples possvel: Trata-se de um unico ponto no espaco de fases, ou seja, a posic~ao de equilbrio, =0,comvelocidade nula, _ =0. De qualquer forma que iniciemos o movimento, sabemos que, esperando o suciente, encontraremos o sistema neste estado limite. O atrator n~ao precisa ser de uma simplicidade t~ao radical. Existem muitos exemplos onde o atrator e um ciclo periodico no tempo. Neste caso os estados do atrator fazem parte de uma curva fechada no espaco de fases. Podemos tambem ter atratores onde o movimento e quase-periodico, sobre uma superfcie fechada. Finalmente, podemos nos deparar com movimento caotico sobre um atrator estranho. Sempre que falamos de caos em um sistema dissipativo, nos referimos ao movimento sobre o atrator estranho. A raz~ao e queso obtemos um emaranhado de orbitas se o movimento for recorrente, o que so se passa no atrator de um sistema dissipativo. O que que acontecesenos conseguirmos diminuir as forcas de atrito? Evidentemente, o p^endulo levara mais tempo para atingir sem estado de equilbrio. E se nos pudessemos eliminar totalmente essas forcas, construindo um p^endulo ideal? Uma vez posto em movimento, ele n~ao decairia nunca para o equilbrio. Este estado continuaria a existir, pois nenhuma forca modicaria o estado _ = =0,mas ele deixaria de ser um atrator. A raz~ao para essa alterac~ao qualitativa domovimento e que a forca da gravidade (a unica a atuar neste limite) conserva a energia mec^anica. Como o estado de equilbrio tem energia menor do que qualquer outro, o decaimento para o equilbrio violaria a conservac~ao da energia. Essa caracterstica de conservar a energia do movimento e comum a todos os sistemas hamiltonianos. De fato, a ithamiltoniana e meramente a energia do sistema, vista como uma func~ao dos estados, H(x v). (Para simplicar, considero aqui o caso de massas unitarias). A conservac~ao da energia garante que para todo o tempo o movimento sera tal que H(x(t) v(t)) = E, uma constante. Esta condic~ao e t~ao forte que determinara as equac~oes demovimento como derivadas da hamiltoniana: as equac~oes de Hamilton. Outra consequ^encia do sistema ser hamiltoniano e oteorema de Liouville: Ovolume de qualquer bolinha no espaco de fases (como a que consideramos na denic~ao dos sistemas caoticos) n~ao se altera com o tempo. Chegamos aos sistemas hamiltonianos como um limite, uma idealizac~ao de um sistema real e e assim que s~ao em geral concebidos pelos matematicos e engenheiros. Muitas vezes esses sistemas s~ao ignorados, pela preocupac~ao prevalente com resultados genericos na teoria de sistemas din^amicos. Entretanto, sua import^ancia relativa aos sistemas dissipativos se inverte na fsica. Todas as forcas fundamentais da natureza com a gravidade e o eletromagnetismo s~ao hamiltonianasee de se notar que a mec^anica qu^antica trata exclusivamente delas. Do ponto de vista fsico mais fundamental, a inclus~ao das forcas de atrito n~ao passa de expediente pratico para encobrir nossa ignor^ancia sobre o movimento microscopico. Este estara inevitavelmente ligado a qualquer movimento macroscopico, como o da haste do p^endulo que tomamos de exemplo, na forma de vibrac~oes dos atomos do rolamento e choques da bolinha com as moleculas individuais do ar. Vamos ent~ao examinar as caractersticas qualitativas dos sistemas hamiltonianos. A mais importante e que o movimento tem que estar restrito a uma superfcie no espaco de fases onde a hamiltoniana e constante. Essa superfcie tera tr^es dimens~oes no caso do p^endulo esferico, o que ainda da muitas

{4{ CBPF-MO-002/96 possibilidades para o movimento da orbita, certamente muito mais livre do que no atrator do p^endulo dissipativo! Entretanto, o movimento pode sofrer restric~oes adicionais. No caso do p^endulo, n~ao existe qualquer interac~ao entre as coordenadas ( 1 _ 1 )com( 2 _ 2 ). Isso permite a decomposic~ao do movimento do p^endulo em componentes independentes bem comportadas, como ocorre com a decomposic~ao dos movimentos do sistema solar. Este movimento n~ao sera nunca caotico. Suponhamos agora que a bolinha do p^endulo ideal esteja magnetizada e que xemos pequenos m~as perto do p^endulo. N~ao alteramos com isso as coordenadas necessarias para descrever o sistema, apenas adicionamos uma forca hamiltoniana (o magnetismo) a lei de movimento. O movimento ainda cara restrito a uma superfcie de tr^es dimens~oes onde a (nova) hamiltoniana e constante, mas agora passa a haver interac~oes entre as coordenadas. Dependendo de onde colocarmos os m~as, teremos movimento caotico para a maioria de estados iniciais do p^endulo. E interessante notar que, diante da impossibilidade de eliminar completamente o atrito do p^endulo real, n~ao podemos observar diretamente este comportamento caotico eventualmente o p^endulo magnetizado atingira tambem uma posic~ao de equilbrio. De certa maneira houve agora uma invers~ao: O p^endulo fsico e que se tornou um modelo imperfeito para o movimento regido por forcas fundamentais da natureza, forcosamente hamiltonianas. Podemos usa-lo para este m contanto que a perda de energia seja sucientemente lenta para nos mostrar um movimento complicado antes de cair no atrator. Parece que chegamos a um confronto absurdo: O p^endulo magnetizado hamiltoniano tera quase sempre um comportamento caotico. Por menor que seja o atrito, o p^endulo real caira em um atrator trivial, ou seja, um ponto de equilbrio onde n~ao ha movimento. Nada de menos caotico! A diculdade esta na denic~ao matematica de caos como uma propriedade media das orbitas para tempos innitos. Visto dessa maneira, so interessa, no sistema dissipativo, o atrator. No entanto, ao adicionarmos um pequeno termo dissipativo a um sistema hamiltoniano, poderemos estar criando muitos pontos de equilbrio e o problema de entender como o sistema se aproxima de qual equilbrio passa a ser da maior import^ancia. O movimento torna-se t~ao convoluido que ca efetivamente impossvel fazer essa previs~ao, como nos velhos jogos de pim-bolim. 4 A Estrutura de Sistemas Caoticos Pode car a impress~ao ate aqui de que a presenca de caos solapa todo o valor de se denir precisamente o sistema din^amico que modela um dado sistema fsico. Vamos agora ver que, mesmo sendo verdade que uma orbita caotica e inteiramente imprevisvel, podemos dissecar a estrutura do emaranhado de orbitas de um sistema caotico com impressionante detalhe. De fato, este conhecimento e t~ao completo, que os matematicos preferem chama-los apenas de sistemas hiperbolicos. Sigo aqui a pratica das outras ci^encias que denominam caoticos os sistemas em que quase todas as orbitas s~ao caoticas. O sistema, para ser caotico tem que ter duas propriedades: 1) sensibilidade quanto as condic~oes iniciais, ou seja, dois pontos se separam, por mais proximos que estivessem inicialmente no espaco de fases 2) ser limitado. Ate agora dedicamos mais ^enfase a primeira condic~ao, mas, se os pontos simplesmente se separam mais e mais, n~ao ha caos. Pensemos, por exemplo, em duas pintas em uma bola de festa. Ao sopra-la, os pontos se separam e, se ela n~ao explodisse (outro tipo de caos!), se afastariam para sempre sem que houvesse qualquer imputac~ao de desordem a esse movimento. Ambas essas propriedades est~ao presentes, tanto em sistemas caoticos dissipativos, quanto em hamiltonianos. Embora n~ao seja essencial, vamos focalizar estes ultimos na analise que se segue. Consideremos um pequeno volume no espaco de fases. De acordo com (1), ele se alongara enormente com o tempo (e se estreitara pelo teorema de Liouville). Essa longa tripinha tera de se dobrar toda para caber na regi~ao limitada permitida pela propriedade (2). Cedo ou tarde vamos encontra-la sobre o volume inicial, formando a estrutura de ferradura de Smale que vemos na gura 6. A grande maioria das orbitas que iniciaram seu movimento no pequeno volume n~ao se econtrara de volta nele no instante t em que denimos a ferradura. O foco da analise passa agora para as que de fato voltaram para o volume inicial.

{5{ CBPF-MO-002/96 As orbitas que voltaram so podem estar na pequena faixa que tem a etiqueta \0" ou na que tem a etiqueta \1" na gura 6. Passado mais um intervalo de tempo t, teremos uma nova minoria de orbitas que de novo volta para o volume inicial. A essas podemos dar as etiquetas `00', `01', `10', `11'. Dessa forma vemos que as rarssimas orbitas que voltam ao volume inicial, apos todos os intervalos t, podem ser descritas por uma sequ^encia innita de smbolos 0 e 1. O resultado fundamental referente aos sistemas caoticos (ou hiperbolicos) e que existe uma e apenas uma unica orbita para cada sequ^encia innita de smbolos. Orbitas que est~ao muito proximas entre si ter~ao longas sequ^encias nitas que s~ao id^enticas. Como as sequ^encias periodicas correspondem a orbitas periodicas e podemos repetir periodicamente qualquer sequ^encia nita, deduzimos que existem orbitas periodicas arbitrariamente proximas de qualquer orbita da ferradura. Em outras palavras, um sistema caotico e densamente povoado de orbitas periodicas! Parece uma contradic~ao, mas o fato do sistema ser inteiramente determinista teria que ser reetido em alguma propriedade. Por outro lado, sequ^encias aleatorias de smbolos correspondem as orbitas caoticas de ferradura de Smale. Estas s~ao a grande maioria. Uma sequ^encia aleatoria reproduzira eventualmente qualquer sequ^encia nita, portanto, a orbita caotica se aproximara em algum momento de qualquer outra orbita. Denominamos a isso de propriedade ergodica sobre a ferradura. A maneira pela qual desprezamos as fatias que n~ao tinham a etiqueta `0' ou `1' no volume inicial e tpica da formac~ao de fractais, ou conjuntos de Cantor. O volume desse conjunto sera nulo (embora tenha uma dimens~ao fractal nita), de modo que a probabilidade de encontrar uma dada orbita em uma determinada ferradura e zero. Dizemos que a ferradura tem medida nula. Entretanto, podemos denir inumeras ferraduras em um sistema caotico, cada qual com suas orbitas periodicas e suas orbitas ergodicas. Estes conjuntos de Cantor de orbitas s~ao subconjuntos de conjuntos maiores. Por exemplo, podemos denir o conjunto de orbitas que e ergodico a duas ferraduras, sem nunca passar proximo a uma terceira ferradura, e assim por diante. Concluimos que, embora a grande maioria das orbitas de um sistema caotico tenha uma apar^encia livre e aleatoria, seu movimento se desenrola sobre um esqueleto de orbitas mais disciplinadas. Estes formam uma complexa hierarquia que se inicia com as periodicas (perfeitamente regulares) e segue pela sucess~ao de conjuntos de Cantor, cada vez mais abrangentes. Agradecimentos A Edison Z. da Silva por mais este emprestimo do p^endulo esferico e a Bruno Ribeiro pelo trabalho fotograco.

{6{ CBPF-MO-002/96 Um sistema din^amico que for descrito por tr^es variaveis tem um espaco de estados de tr^es dimens~oes. Atribuindo valores denidos x 10 x 20 e x 30 a cada umas das variaveis, especicamos unicamente o estado do sistema que corresponde ao ponto x 0 do espaco de estados. Este, por sua vez, determina uma unica orbita, x(t).

{7{ CBPF-MO-002/96 Aorbita do estado sera tangente em cada ponto ao vetor que dene a lei de movimento

{8{ CBPF-MO-002/96 A diferenca entre um sistema regular (a) e caotico (b) e marcada pela evoluc~ao de um pequeno volume de estados iniciais. Nenhuma dimens~ao do volume crescera signicativamente, se o sistema for regular, enquanto que o sistema caotico alongara a bolinha exponencialmente com o tempo.

{9{ CBPF-MO-002/96 P^endulo esferico: (a) na sua posic~ao de equilbrio vertical. (b) movimento no plano vertical descrevendo um arco de crculo quando o p^endulo for solto fora de sua posic~ao de equilbrio. (c) movimento n~ao pleno, porem periodico.

P^endulo esferico perturbado por pequenos m~as: (a) uma nova posic~ao de equilbrio. (Neste caso existem duas) (b) e (c) movimentos \caoticos" para dois estados iniciais diferentes. {10{ CBPF-MO-002/96

{11{ CBPF-MO-002/96 A ferradura de Smale e uma estrutura tpica de movimentos caoticos. Uma bolinha de estados iniciais evoluira em uma regi~ao alongada retorcida que eventualmente intersecta a bolinha inicial em duas ou mais regi~oes desjuntas. Atribuindo um dgito a cada regi~ao, especicamos a historia de cada orbita que retorna a ferradura por uma sequ^encia de algarismos.