REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DE UMA HORTA COMUNITÁRIA MEDICINAL COMO PROJETO DE ARTE COLETIVA



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Transcrição:

REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DE UMA HORTA COMUNITÁRIA MEDICINAL COMO PROJETO DE ARTE COLETIVA Janice Martins PPGAV /CEART/UDESC 1 Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar reflexões sobre a proposta de desenvolvimento de uma horta medicinal comunitária como projeto de arte coletiva desenvolvido na comunidade da Barra da Lagoa. As reflexões são apresentadas a partir do entendimento de que as vivências e experiências surgidas no convívio direto com a comunidade para um projeto em arte provoquem situações de deslocamento dos saberes e descontinuidade nas ações, onde novas subjetividades acabam sendo geradas. Palavras-Chave: deslocamento; comunidade; subjetividades; projeto de arte coletiva Abstract This article has the objective to present reflections about a proposal of development of a communitary medicinal garden as a collective art project that has been developted at the community of Barra da Lagoa. The reflections are presented by the understanding that the existence and experiences arised from a direct coexistence with the community for an art project induce situations of displacement of knowledge and a break in the continuity of the actions, where new subjectivities can be generate. Keywords: displacement; community; subjectivities; collective art project. Os movimentos sociais são tua matéria prima: você faz política como quem faz arte (tanto no sentido de criar, como no de brincar aliás, indissociáveis). Outra imagem que me vem é que o exercício da micropolítica é uma espécie de bruxaria com as forças do inconsciente no campo social... 2 Movida pelo interesse em participar de encontros e de relações de convívio com a comunidade da Barra da Lagoa (região leste de Florianópolis) na retroalimentação da cultura local como na situação da horta de temperos, ervas medicinais e de outras plantas, a horta medicinal comunitária surge como projeto de arte coletiva - processo coletivo ou colaborativo e de produção do real, simbólico e imaginário coletivo que reforça o reconhecimento da cura através das plantas e do cultivo da horta como cultura local. O convívio estabelecido pelo 1 Mestranda PPGAV/CEART/UDESC, Bacharel em Artes Plásticas (UFRGS) 2 GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do desejo. 1986 (p. 314)

cotidiano das ações na horta medicinal comunitária promove um projeto de arte coletiva formado através das relações de vínculo e de colaboração na comunidade. Neste sentido, exemplos como as experiências do coletivo dinamarquês Superflex que desenvolveu um projeto de arte coletiva chamado Supergas 3 (1996-97) a partir da realidade de uma comunidade específica em Camboja (África) e na Tailândia (Ásia). Sua preocupação com a preservação do meio ambiente na produção de biogás e biocombustível, levou ao projeto coletivo em arte, como uma forma de convívio e direcionamento às necessidades e recursos econômicos que acreditamos existir em economias de pequena escala. As valorizações do encontro e do convívio atuam como dispositivos e como forma para entendimento de um projeto em arte contemporânea, assim como a explanação de alguns conceitos lançados pelos autores Nicolas Bourriaud, Reinaldo Laddaga e Suely Rolnik sobre projetos coletivos em arte desenvolvidos em comunidades específicas. A arte do encontro ou o encontro na arte: vivências na comunidade da Barra. A partir da década de 90, o entendimento que abrange o contexto da arte, aponta para um campo em constante expansão, zona de limites não claros e ampliados (atravessamento ou ausência de limites) e que fazem da arte um campo em trânsito junto a diferentes campos de atuação da vida cotidiana. Este cotidiano é marcado pelo próprio cenário atual político, econômico e artístico, onde se mostra imprescindível o entendimento da transversalidade da arte. Não apenas por contextualizar o momento histórico vivido nos dias de hoje por grupos artísticos ou por integrantes de uma comunidade, mas também para compreensão da problemática urbana de uma cidade turística como Florianópolis e que preserva espaços comunitários de expressão culturais nativas e ligados à terra que possam ser espaços de produção de um projeto coletivo em arte. O projeto de arte coletiva na Barra da Lagoa, parte do espaço de convívio com a comunidade e da mobilização de diferentes elementos da comunidade para realização do projeto. O espaço do convívio é alicerce para um projeto de arte 3 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.org Supergas (Camboja, 1996-97) 2

coletiva que convive com a constante restauração do sistema movimentos de resistência - e que geram novas possibilidades dentro da micropolítica comunitária e nos sistemas econômicos locais, assim como com a preservação da cultura local e atuação em um campo não específico que faz gerar a arte. Para Reinaldo Laddaga 4, é a partir dos anos 90 que artistas, escritores e músicos começavam a desenhar e executar projetos que supunham uma mobilização de estratégias complexas. Estes projetos implicavam na implementação de formas de colaboração que permitiram a associação entre artistas e comunidades durante tempos prolongados (alguns meses no mínimo ou alguns anos em geral) atingindo grandes números (dezenas, centenas) de indivíduos de diferentes procedências, lugares, idades, classes, disciplinas. Pensar uma horta medicinal comunitária como dispositivo dentro de uma realidade ou projeto artístico pode gerar certo desconforto inicial se não conseguirmos estabelecer uma relação imediata entre a horta medicinal comunitária e sua produção com projeto coletivo em arte. Neste sentido, o entendimento da horta medicinal comunitária como projeto artístico deve ser pensado a partir da noção de uma arte relacional complexa, da valorização do encontro como gerador de convívio e produtor de novas subjetividades, deslocamentos e de possibilidades de um projeto em arte que possa ser coletivo e colaborativo. O cultivo da horta medicinal remonta saberes como os de arar, semear, regar, colher, armazenar e distribuir, assim como os saberes específicos de aplicabilidade das plantas para processos de cura. A transmissão de saberes não se perde com o tempo, pois são movidos pela noção de desprendimento com sua autoria, usada ancestralmente por diversas outras culturas, que em âmbito local cuidam da cura em suas comunidades e são transmitidos de gerações em gerações. Suely Rolnik nos aponta a definição de dispositivo descrita por Deleuze como uma meada, um conjunto multilinear, composto de linhas de diferentes naturezas... Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar um mapa, cartografar, agrimensar terras desconhecidas, e é o que Foucault chama 4 LADDAGA, Reinaldo; Estética de la emergência, 2006 (p.15) 3

de trabalho de campo [...] uma produção de subjetividade num dispositivo: ela deve se fazer desde que o dispositivo o permita ou o torne possível. [...] não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que incide sobre grupos ou pessoas, e se subtrai das relações de forças estabelecidas como dos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia. 5 Sendo assim, é possível compreender a horta medicinal comunitária como um dispositivo relacional no que diz respeito ao cultivo da horta como processo de investigação em arte que envolve a participação do outro convocando sua experiência de convívio como condição para a realização do projeto coletivo em arte. Conforme Bourriaud a prática do artista, seu comportamento enquanto produtor determina a relação que será estabelecida com sua obra: em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos 6, sendo assim, o fazer da horta medicinal comunitária como projeto artístico promoverá um encontro crítico entre arte e realidade através da relação de convívio entre os usuários envolvidos no projeto. Da mesma forma, para Laddaga, ao falar de projetos colaborativos, afirma que lo que se proponem los artistas que inician estos proyetos es, sobre todo, desarollar, calibrar, intensificar la coperación misma, no tanto con el objeto de materializar un objetivo particular com el de variar e intensificar la cooperacion social en un determinado entorno. 7 A crítica se faz presente por ser o encontro, promotor das relações de convívio, uma forma de renegociação entre a relação entre a arte e vida. É através da participação do outro na instituição Arte ou nos termos e contexto de um projeto artístico como objeto relacional que as relações entre arte e vida são estabelecidas. Neste sentido, afirma Bourriaud: Uma obra pode funcionar como dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos. 8 Ou seja, através de ações cotidianas, o artista promove o seu espaço de convivência social, assim como as 5 ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto - O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter Riedweg, 2003 (p.8) 6 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 59), 7 LADDAGA, Reinaldo; Estética de la emergência, 2006 (p.138) 8 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (p.42) 4

propostas relacionais em sua forma complexa ocupando espaços convencionais da instituição Arte ou se aproximando de acontecimentos e situações inseridos vida cotidiana. Ao pensar a horta medicinal comunitária como uma situação da vida cotidiana de uma comunidade e desta como projeto em arte é que a lógica do encontro é descrita por uma arte relacional complexa. A horta medicinal comunitária gera o encontro, uma possibilidade de atuação no real em que são materializados novos espaços de vida e que geram a participação direta do outro, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída. No contexto comunitário o projeto de arte coletiva convive junto às relações de saber entre os usuários da horta: Seu João da Rua A planta guaco que é bom para a tosse de Dona Benta da rua B, que planta capim limão que é bom para as crises nervosas de Seu João A. A troca de experiências é um espaço de troca de saberes sobre interesses comuns. O desafio do projeto de arte coletiva é estabelecer junto ao processo propostas audiovisuais e coleta de relatos e de imagens como ferramentas e dispositivos utilizados durante o cultivo da horta como parte do processo coletivo e não como elemento de documentação como mono forma. A produção de um encontro tendo a horta medicinal comunitária como dispositivo em um projeto de arte coletiva cria um corte momentâneo sobre o contexto imediato e formal esperado pela instituição Arte ampliando a visão de contexto e fazendo com que a realidade possa ser vista e vivida de outras maneiras. É no cruzamento da arte com o dia-a-dia e as questões pertinentes a este convívio que surge um projeto de horta medicinal comunitária como projeto coletivo em arte. Primeiramente, o encontro provoca uma descontinuidade na própria realidade da instituição Arte, um encontro como nova forma de representação e que produz realidade. Inseridos como agentes e produtores desta descontinuidade, os envolvidos no encontro gerados pela horta medicinal comunitária e seus usuários tem que agenciar novos lugares de convivência. Desta forma, os envolvidos são deslocados de seu lugar de reconhecimento principal e são estimulados a catalisar novos processos de subjetividade em seu 5

cotidiano como espaço de convívio. A horta medicinal comunitária como projeto artístico reúne pessoas e colaborações em torno de um sistema de produção em comum, não orientados pelo objetivo de produzir uma obra de arte como projeto a partir da horta, mas sim de produzir o deslocamento deste objetivo para a produção de descontinuidades e de subjetividades, através de um projeto coletivo e colaborativo. Para Bourriaud, é isso que podemos chamar de lei de deslocalização, quando a arte exerce seu dever crítico diante da técnica somente quando desloca seus conteúdos ( ) Dessa maneira, a relação arte/técnica mostra-se especialmente favorável a esse realismo operatório que estrutura muitas práticas contemporâneas, e que pode ser definido como a oscilação da obra de arte em sua função tradicional de objeto a ser contemplado. 9 A comunidade da Barra da Lagoa é marcada por um universo de convivência entre diversidades culturais locais marcadas dentro da mesma comunidade. O empoderamento do universo da cura através das plantas é estabelecido pelo convívio pacífico entre benzedeiras, rezadeiras, curandeiras, médico homeopata, farmacêutico e cultivadores de hortas medicinais. As relações de convívio geradas pelo cotidiano, assim como a própria arte contemporânea como noção de convívio de rupturas e repetições, nos recolocam e nos deslocam constantemente de um espaço previamente estabelecido na relação de convívio, permitindo assim, através da incerteza e da tentativa a produção de novas subjetividades e de intersubjetividades. Ao colocarmo-nos diante de um sistema operacional promovido pelo processo do encontro e do convívio com o outro acabamos por fazer sentido a um circuito de idéias, muito mais do que afazeres ou tarefas propriamente ditas. O circuito promove a alteridade de cada parte embora permaneçam intercaladas umas às outras - cada parte não funciona sem a outra. Assim opera o senso da coletividade, em que a alteridade de cada um não faz com que cada parte possa trabalhar sozinha, mas sim em função do grupo, ou melhor, do outro. O processo do encontro inclui que cada um ocupe e desocupe um lugar no circuito e que funcionará como engrenagem do sistema como um todo. Um sistema oscilante e autônomo. Oscilante no sentido de que cada um pode substituir ao outro, assim como pode 9 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (p. 94-95) 6

permanecer em determinado ponto do sistema e sem colocar em risco ou prejuízo a produção do encontro como objeto. Não é possível prever quem vai estar presente no encontro e a incerteza da relação faz a regra do grupo. As casas na comunidade da Barra são marcadas por espaços destinados ao cultivo de espaço verde, compartilhados com o espaço de saber das tarrafas, das rendas de bilro e dos estaleiros que constroem os barcos para travessia local do canal que liga a Lagoa da Conceição ao mar através da praia da Barra da Lagoa. Quanto à alteridade, Suely Rolnik nos aponta, que a política de relação com a alteridade encontra-se na própria origem da colaboração entre os artistas que se deu a partir do contágio em mão dupla (...) ambos querendo sair de si enquanto territórios geopolíticos, existenciais, subjetivos e profissionais. 10 Desta forma, a alteridade seria aquilo que promove um deslocamento do lugar de reconhecimento em que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, a existência do indivíduo só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida torna-se o outro). O encontro e as relações de convívio gerado a partir de um projeto de arte coletiva como da horta medicinal comunitária medicinal, proporciona um espaço em que uma nova economia é gerada. O emprego do termo economia baseia-se naquilo que para Bourriaud é o que caracteriza a obra de arte como produto do trabalho humano, seu processo de fabricação e produção, sua posição no jogo das trocas, o lugar - ou a função que atribui ao espectador e, por fim ( ) do objeto da arte, não de sua prática; da obra tal como é tomada pela economia geral, não de sua economia própria. 11 Ou seja, no circuito compartilhado e colaborativo que a horta medicinal comunitária instaura a partir das relações de convívio, novas economias são geradas: economia de trocas reais e simbólicas como troca de experiências, relatos ou a troca de ervas medicinais e de saberes. Bourriaud define ainda, que a obra de arte representa um interstício social, termo usado por Karl Marx (1818-83) para designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia capitalista que não obedeciam à lei do lucro. 10 ROLNIK, Suely; Alteridade a céu aberto O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter Riedweg (p. 07) 11 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 58) 7

O interstício seria ainda um espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca, sendo o convívio uma forma de economia. A produção de um projeto de arte coletiva promove encontros que geram como produto uma série de relatos de experiências que torna possível o deslocamento de um projeto em arte para a horta medicinal comunitária como produto para o convívio e de novas subjetividades. O cultivo da horta medicinal comunitária pode culminar em novas propostas, fruto deste convívio ou ainda da condição dos participantes como produtores inseridos em seu contexto; porém, sempre surgem adversidades quanto à finalidade dos encontros dentro de uma definição em arte ou em comunidade como realidades distintas. A forma do encontro como objeto fica refém da discussão quanto aos limites dos espaços de abrangência da instituição Arte ao questionarmos tais valores. Qual a condição do encontro, do convívio como objeto-arte e de indivíduo-artista ao os lançarmos em uma das engrenagens da crítica do sistema de artes visuais? Qual seria a condição adquirida à horta medicinal comunitária se o registro de seu processo da mesma fosse lançado em uma galeria ou espaço cultural, ocupando assim um espaço tradicional no sistema das artes visuais? A relação de convívio além de tornar possível a execução de um processo de produção do encontro, de um projeto coletivo em arte, possibilita a reflexão de novas possibilidades para este convívio assim como pensar soluções em arte e seus limites na esfera pública e privada enquanto instituição Arte. A este exemplo é possível lembrar grupos coletivos que atuam em projetos de arte colaborativa, como os coletivos Bijari 12, Superflex 13 ou o trabalho de Rirkrit Tiravanija 14 em que o espaço de convívio gera projetos coletivos em arte junto á comunidades específicas ou grupo de pessoas. Muitos projetos institucionais desenvolvem propostas e eixos curatoriais específicos que valorizem projetos coletivos em arte que desenvolvam projetos coletivos destes artistas em comunidades. A este respeito, Laddaga comenta que un número cresciente de artistas y escritores parecia comenzar a interesarse menos em construir obras que em 12 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org Sustain Yourself (SP 2008) /sustentabilidade urbana 13 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.org Supergas (Camboja, 1996-97) 14 Rirkrit Tiravanija (Buenos Aires/Tailândia) http://br.video.yahoo.com/watch/3654873/10062562-8

participar em La formación de ecologias culturais 15. A definição de ecologia cultural remete do entendimento do conceito de biorregionalismo em que se observa um local específico em termos de seus sistemas naturais e sociais, cujas relações dinâmicas ajudam a criar um senso de lugar, enraizado na história natural e cultural. Deste conceito nasce o território cultural, apresentado por onde Laddaga ao apresentar a definição de ecologia cultural - uma invenção de mecanismos que permitem articular processos de modificação de estados de coisas locais e de produção de ficções, fabulações e imagens, de maneira que ambos aspectos se reforcem mutuamente. Podem ser aleatórios e multidirecionais, trabalham na construção do outro num espaço de convívio e de colaboração direta com diferentes campos de saber dentro destes espaços de diferença. Considerações Finais: Os objetos e as instituições, o emprego do tempo e as obras são, ao mesmo tempo, resultado das relações urbanas pois concretizam o trabalho social e produtores de relações pois organizam modos de socialidade e regulam os encontros humanos 16. Como uma horta medicinal comunitária pode ser um projeto de arte coletiva? Para Guattari, a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo 17. Sendo assim, esta definição aplica-se às práticas dos artistas contemporâneos ao criar e colocar em cena dispositivos de existência que incluem métodos de trabalho e modos de ser, em vez de objetos concretos que até agora delimitavam o campo da arte. Desta forma, o espaço de uma horta medicinal comunitária é também um espaço de uso do subjetivo, já que faz uso de parte do cotidiano da produção do saber, assim como faz uso de parte do cotidiano daquilo que tange o universo 15 LADDAGA, Reinado. Estética de la Emergencia. 2006. (p.29) 16 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 66) 17 GUATTARI In: BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 145) 9

íntimo das pessoas. Na combinação entre arte e vida podemos encontrar, no espaço da horta comunitária, a possibilidade de um projeto de arte coletiva que toma como direção a esfera das interações humanas em seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico e privado. A permanente troca de posicionamentos entre o binômio comunidade-arte culmina em intersubjetividades que se entrecruzam em movimento aleatório e contínuo dentro do espaço da horta comunitária. A arte contemporânea dentro deste espaço reflexivo passa a ser uma relação a ser experimentada, uma realidade a ser vivida. Para Bourriaud, uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar juntos, o encontro entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido ( ) e da arte como lugar de produção de uma socialidade específica 18. O espaço da horta medicinal comunitária passa a ser então, o simultâneo espaço da arte e do convívio como objeto no projeto coletivo em arte, onde novos processos colaborativos adicionais tomam forma, como o mapeamento da comunidade da Barra da Lagoa, a implantação de um sistema de trocas de sementes e de mudas, a construção de um canal de comunicação em sistema aberto (blogger/linux), feira de geração de renda, oficinas para multiplicação do saber e do fazer da horta comunitária. Ao iniciarmos o plantio da horta medicinal comunitária como experiências de convívio no espaço da vida acabaram por abrir novos canais de conexão com outras estruturas existentes em nosso perímetro e campo de atuação. Sem dúvida, o entendimento de uma estrutura rizomática é procedente em um espaço que novas vivências são desencadeadoras de novos e múltiplos olhares, incluindo o nosso próprio olhar sobre nós mesmos. O pressuposto da colaboração está presente nas atividades como forma fundamental de participação de qualquer indivíduo (e não mais o espectador) no corpo do processo em análise. Com base no sentido de intermediação entre arte e vida foi criada uma interface tecnológica de interação entre o registro, a memória e o real, através da construção de um blogger, pois o surgimento de novas técnicas, como a internet 18 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 21-22) 10

e a multimídia, indica um desejo coletivo de criar novos espaços de convívio e de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural 19. O blogger, neste contexto, representa a possibilidade de ferramenta que manuseia esta realidade decomposta em registro e memória e que pode ser acionada pelos usuários da horta medicinal comunitária como colaboradores diretos. Ainda assim, o blogger possibilita o lançamento do processo de plantio da horta medicinal comunitária para a rede (internet). Todas estas colaborações reafirmam a abertura do projeto para a participação da vida que não se encerra na horta medicinal comunitária como projeto, mas que estende para uma proposta de convívio e de encontro para um mundo melhor, permitindo a colaboração de outros participantesusuários. O uso do blogger também abre para outras possibilidades além do convívio direto, permitindo que outras formas de trocas de experiências sejam possíveis, ampliando o contato com o olhar do outro. É no que concerne à forma e o olhar do outro, que Bourriaud afirma que a forma só assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociação com o inteligível que nos coube. Através dela o artista começa um diálogo. 20 Os dispositivos de publicação ou exibição permitem integrar estas colaborações de modo que possam tornar-se visíveis para a coletividade que as origina. O relato dos usuários é uma experiência e exercício da alteridade utilizado como dispositivo durante o plantio da horta medicinal comunitária e como projeto coletivo em arte. Este espaço fica caracterizado como lugar de reflexão e de idéias acerca das experiências vividas. O relato é montado pelos usuários, que de forma aleatória e alternada vão indicando roteiros de cura através do conhecimento de ervas medicinais de plantas cultivadas na horta comunitária. Este relato é construído e registrado através de experiências audiovisuais acerca das opiniões pessoais e singulares de cada um sobre o processo vivido, sendo os relatos realimentados um pelo outro. O ato colaborativo é aqui ampliado para o texto e procedimento audiovisual como ferramenta viva no percurso de registro e de reflexões quanto à produção do convívio e do encontro como projeto coletivo em arte. 19 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 36) 20 BOURRIAUD, Nicolas; Estética Relacional; 2009 (pág. 29) 11

A realização de um projeto de arte coletiva a partir de relações de convívio e de encontros abre um canal de expansão que torna possível uma horta medicinal comunitária como projeto. Neste sentido, reafirma a condição da experiência de vida e do espaço do convívio como condição presente para a produção de arte, assim como o potencial da arte para transformar o espaço social e as relações humanas. O processo coletivo de produção de uma horta coletiva promove um espaço de convívio que desencadeia novas possibilidades de produção de subjetividade e de intersubjetividades relacionadas, bem como o lançamento de dispositivos colaborativos para acompanhamento destas ações através de relatos e do blogger como interface tecnológica com a experiência. Como produto desta experiência, acabamos por multiplicar o espaço do saber para as mediações entre o projeto e seus entornos, de modo a ampliar a zona de interdiscernibilidade que se estende em torno da arte, da vida e a horta medicinal comunitária como projeto coletivo em arte. Referências BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; tradução Denise Bottmann -. São Paulo: Martins Fontes, 2009. GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do desejo 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,1986. LADDAGA, Reinaldo. Estética de la emergência 1 ed.; Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006 ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto - O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter Riedweg In: Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d Art Contemporani de Barcelona, 2003. 12