Revista de História, 4, 2 (2012), p. 165-171



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Transcrição:

http://www.revistahistoria.ufba.br/2012_2/r01.pdf Edilece Souza Couto. Tempos de festas: homenagem a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant Ana em Salvador (1860-1940). Salvador, Edufba, 2010. 217 p. ISBN 978-85-232-0731-1. São três datas, três figuras femininas, três festas e uma cidade que se vê envolvida nos meses de dezembro e fevereiro: a mártir, a virgem mãe e a avó; Santa Barbara, Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Sant Ana recebem homenagens na cidade de Salvador. As festas que mobilizam e envolvem os moradores da cidade de Salvador também seduzem os que vêm de fora, não é possível ficar indiferente diante das mais variadas manifestações de fé e as interações de crenças. A autora, Edilece Souza Couto, também se viu envolvida logo em seus primeiros contatos com essas manifestações, mas, com olhar aguçado de historiadora, atenta às características comuns e específicas de cada festa, se perguntava quando aconteceu o primeiro cortejo, como eram as festas no século XIX, quem delas participava, por que os negros eram maioria, como era possível a Igreja permitir que algumas pessoas incorporassem Iansã durante a procissão? O esforço de responder a essas perguntas faz surgir o livro Tempo de festas, fruto da tese de doutorado defendida na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis, em 2004. Edilece Souza Couto é Doutora e Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora principalmente das devoções e festas religiosas, catolicismo e religiosidade nos séculos XIX e XX. É autora dos livros A puxada do mastro: transformações históricas da festa de São Sebastião em Olivença (Ilhéus-BA) e, em conjunto com Waldir F. Oliveira, de O Colégio Antonio Vieira (1911-2011): vidas e histórias de uma missão jesuítica. A leitura do livro de Edilece Souza Couto é um convite a passear pelas ruas do centro histórico de Salvador, subir e descer as suas ladeiras, ouvir os seus sons, perceber os seus odores, ver a movimentação das pessoas, nas festas ao largo das Igrejas, visitar os lugares de veraneio e perceber as transformações que ocorriam nessa cidade nos oitenta anos cobertos pela pesquisa principalmente em termos da configuração urbana: novas ruas e avenidas, a cidade que cresce tangenciando a orla marítima. A leitura também nos leva a perceber as mudanças nas manifestações religiosas, adaptações, permanências e resistências, os vários grupos que circulavam em torno das festivas, tanto apoiando quanto criticando. É no esforço para descrever essas relações e conflitos que a autora nos brinda com seu texto. O livro tem como objetivo discutir as metamorfoses ocorridas nas homenagens religiosas durante o período de 1860 a 1940, e entender o porquê das festas de Santa Barbara e Conceição da Praia se manterem até os dias atuais, em contraste com o desaparecimento da festa de Sant Ana. Para isso a autora se vale de diversas fontes, como relato dos viajantes estrangeiros do século XIX,

cronistas, poetas e escritores do século XX, cartas pastorais, jornais, periódicos católicos, documentos das irmandades religiosas, posturas municipais, letras de músicas, poemas e romances. O livro está composto por cinco capítulos, ao longo dos quais a autora aborda a cidade, a Igreja Católica, as santas, os orixás a elas relacionados, e, por fim, as festas religiosas populares. No primeiro capítulo, A cidade de Salvador, a autora coloca o leitor nos cenários onde se desenvolvem as festas estudadas. Está dividido em dois momentos: o primeiro é a descrição dos contrastes urbanos, ou, como prefere a autora, um passeio pela cidade colonial, seguindo o roteiro e as observações dos visitantes que aqui estiveram no século XIX e as crônicas de alguns ilustres habitantes nas primeiras décadas do século XX (p. 27). As observações dos viajantes estrangeiros são utilizadas para descrever o deslumbramento e o desencanto que ocorriam com os que desembarcavam e andavam por uma cidade que, do alto mar, chamava a atenção pela sua geografia em plano alto e baixo e pela exuberância tropical, mas que de perto exibia as suas ruas estreitas, irregulares, mal iluminadas, com esgotos e dejetos expostos. O porto de desembarque era próximo ao mercado, lugar em que se misturavam cores e odores diversos cacau, açúcar, algodão, fumo, piaçava, aguardente, juntamente com animais, escravos, frutas, carne seca, bolos, mingaus, peixes, entre outros. Muita gente, um sobe e desce entre a Cidade Alta e Baixa, cadeiras de arruar, mulheres vendendo comida; a quantidade de negros chamava atenção nos relatos assim como a pobreza e a desigualdade social. No segundo momento a autora nos apresenta as discussões sobre a modernização da cidade, já no período republicano debate registrado em jornais de época, onde se podiam ler manifestações contra os costumes ditos atrasados de uma cidade de aspecto colonial, que insistiam na necessidade de modernização. Esse desejo modernizador tinha que vencer o obstáculo de uma cidade estagnada demográfica e industrialmente, passando por ciclos de depressão e recuperação econômica, e se transformava em projeto político com o governo de J. J. Seabra, nos anos de 1912 a 1916. Seabra acenava com metas de construções grandiosas e controvertidas, como a avenida que percorreria toda a cidade, ligando a Sé ao caminho para o Rio Vermelho, alvo de protestos por conta da derrubada de prédios históricos e religiosos, inaugurada como a Avenida Sete de Setembro. Foi uma obra em uma área considerada nobre da cidade, a freguesia da Vitória, e se encontrava com o caminho do arrabalde do Rio Vermelho, lugar de veraneio das famílias ricas. O contraste seria a Baixada, mais tarde Baixa dos Sapateiros, zona intermediária entre a Cidade Alta e Baixa, lugar de estabelecimentos comercias de pequeno porte, da pechincha, frequentado pela clientela pobre e também a rica ali, a única mudança foi no nome: Rua Dr. J. J. Seabra. A modernização da cidade não era uma questão somente estética, implicava também o ato simbólico que acenava com a necessidade de moralizar os costumes: evitar manifestações lúdicas, não soltar fogos, impedir a mendicância, cultos e manifestações não católicas, principalmente as manifestações de matriz africana que traziam à memória a escravidão. A Cidade Baixa, o Rio Vermelho e a Baixa dos Sapateiros serviram de palco para esse discurso 166

elitista modernizador em contraponto às tentativas de populares de permeâncias através das festas religiosas. O segundo capítulo, intitulado A Igreja Católica e os leigos, trata das transformações ocorridas na Igreja Católica, principalmente em sua relação com as irmandades e o processo de formação dos padres em seminários. Essas transformações decorriam do processo de romanização em curso, que buscava a submissão da igreja local à hegemonia romana e viria influenciar as manifestações de religiosidade dos baianos, incitando um conflito entre o clero e os organizadores e participantes das manifestações exteriores e populares de fé. A autora lança a questão de saber se é possível separar a religião oficial da religião popular, e busca nos escritos dos teóricos (Michel Vovelle, Peter Burke, Carlos Ginzburg, Mikhail Bakhtin, Jean Delumeau e Jacques Le Goff) o debate sobre o que é popular, a relação no domínio da cultura e da religião e de como essas ideias circulavam entre o povo e a elite. Citando Le Goff, Edilece Couto aponta para uma aceitação inicial por parte da Igreja, no medievo, das formas populares de crenças, mas de uma progressiva transformação através da destruição (de templos, ídolos e literatura), obliteração (fazendo-as desaparecer aos poucos com substituições) e desnaturação (mudando o significado dos temas folclóricos). Com a realização do Concílio de Trento (1545-1563), a tentativa de controle das manifestações populares se acirrou. Edilece Couto apresenta como característica do catolicismo implantado no Brasil o cunho íntimo, familiar, leigo e de profunda devoção. O catolicismo português era misturado com elementos católicos, islâmicos, fetichistas, permeado por superstições, blasfêmias, rituais mágicos e feitiçarias. Isso resultava em uma dicotomia entre religião oficial e popular, que era sincrética característica tratada através das definições de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Roger Bastide, que fornece à autora a ideia de dois catolicismos, um para o senhor e outro para o escravo, da rua como espaço de devoção, do uso dos nichos para cultuar santos e orixás e da reinterpretação da liturgia cristã. A forma sincrética de culto era praticada também nas irmandades, consideradas por Edilece Couto os principais agentes do catolicismo popular (p. 64). Compostas por leigos, eram as irmandades que organizavam as festas para a celebração aos santos de sua devoção em seu respectivo dia, em ocasiões propícias para aproximar o sagrado e o profano. A procissão fazia parte da festa, sendo a imagem do santo principal seguida por outras, já que nem todos os santos tinham uma irmandade específica, mas recebiam homenagens nas datas comemorativas, com queima de fogos e divertimentos populares nos adros das igrejas e nos nichos que guardavam suas imagens. Os processos de mudança dão o tom do livro: a romanização do século XIX, a transformação de um catolicismo leigo, medieval, social e familiar em um catolicismo renovado romano, clerical, tridentino, individual e sacramental o fortalecimento de dogmas, como o da Imaculada Conceição (1854), que reafirmava o culto mariano, e o da infalibilidade papal (1870). Havia preocupação com a regeneração moral dos padres e com sua formação, que deveria ocorrer nos seminários. A preocupação com os costumes era prioridade, daí as ações voltadas para moralização e o fim dos festejos profanos. A supervisão das 167

manifestações festivas da igreja era feita pelos padres oriundos dos seminários e tinha como objetivo combater manifestações de ignorância, superstição, sincretismo e fanatismo; a primeira atitude era reformar as antigas irmandades ou substituí-las. Dom Romualdo Seixas foi o maior expoente dessa tentativa reformadora. As festas organizadas por irmandades (Nossa Senhora da Conceição), pelos comerciantes do mercado (Santa Bárbara) ou pela elite que passava o verão no Rio Vermelho (Nossa Senhora Sant Ana) demonstram a junção de grupos sociais distintos e a imbricação de diversas crenças. Apesar de todo aparato religioso, os devotos transitavam sem culpa entre os rituais católicos e afro-brasileiros. O terceiro capítulo do livro A mártir, a virgem mãe e a avó: figuras de devoção popular católica é dedicado às origens das festas, aos espaços para devoção e suas mudanças ao longo do tempo. Neste capítulo, a autora mostra como as manifestações religiosas e populares conviviam durante as festividades. A primeira festa a ser descrita é a de Santa Barbara, a protetora contra os raios, trovões e tempestades, vigilante do paiol de pólvora e protetora dos bombeiros. A autora inicia com uma breve hagiografia, informando que o culto à santa se desenvolveu na Bahia por influência dos colonizadores, mas foi adotado pelos comerciantes brasileiros, negros escravos e libertos. A Santa dos Mercados, como ficou conhecida, teve como seu primeiro nicho um mercado construído na Cidade Baixa que passou a ser chamado de Mercado de Santa Bárbara. Diversos incêndios ocorridos no local fizeram com que a imagem da Santa peregrinasse por várias igrejas, como Corpo Santo, Conceição da Praia, Paço e Ordem Terceira do Carmo. O Mercado de Santa Barbara também mudou, da cidade Baixa para a Baixa dos Sapateiros, onde está reservado o nicho para a imagem da santa. A festa em homenagem a Santa Bárbara começavam no primeiro dia de dezembro, em período concomitante com os festejos dedicado a Nossa Senhora da Conceição o que a levava a passar um pouco despercebida pelo grande público, efeito agravado pelo fato de não ter uma irmandade dedicada a seu culto, ser bancada principalmente pelos comerciantes pobres e pela população de baixo poder aquisitivo, e, por último, havia a suspeita de certo desprezo da Igreja em relação a uma festa mesclada com práticas da religião afro-brasileira. A Igreja se limitava a realizar uma missa, muito pouco quando comparado à Conceição, em homenagem à qual havia novena. A festa era composta de três etapas: o rito católico, a festa de largo e os ritos do candomblé. O primeiro incluía missa e procissão; a festa de largo acontecia em frente à igreja e no mercado, era animada com samba de roda, bebida e um farto caruru. Também no mercado ocorria a terceira etapa, os ritos para Iansã: os cantos eram em iorubá e ocorriam incorporações. Os participantes da festa estavam presentes nos três momentos. A festa em homenagem a Nossa Senhora da Conceição da Praia também é uma tradição trazida pelos colonizadores portugueses. A construção do templo atual teve início em 1765. A autora informa a ocorrência de diversos tipos de homenagem à Imaculada em pontos diversos da cidade, como o subúrbio de Periperi; no entanto a pesquisa se concentra na festa realizada na Igreja de Nossa Senhora Conceição da Praia. É importante ressaltar que a festa em 168

homenagem à Virgem foi dogmatizada pelo Papa Pio IX em 1854, consagrando o dia 8 de dezembro como dia festivo. A festa tinha pompa, a igreja era ornamentada por iniciativa da irmandade (composta por pessoas da elite da cidade), a imprensa dava cobertura antecipada à festa, as missas ocorriam de hora em hora desde as quatro da manhã, havia procissão que, inicialmente, percorria ruas da Cidade Baixa e Alta e, após 1930, somente as da Cidade Baixa. Havia jantar para os sócios da irmandade e queima de fogos à noite. Na frente da igreja se montavam barracas de bebidas, comidas eram vendidas por mulheres de saia rodada, colares e panos na cabeça, havia barracas de jogos, apresentação de capoeiristas e vendedores ambulantes. A festa dedicada a Sant Ana, a mãe da Virgem Maria, era a mais controversa. O local de sua realização era o Rio Vermelho, que no início do século XX era considerado distante do centro da cidade, um local que tinha como principal atividade a pesca e era lugar de veraneio da elite baiana. A festa teve origem em fevereiro de 1823, devido à aparição de uma velha que informara a homens que estavam na praia da aproximação de portugueses; esse aviso ajudou na fuga, e mais tarde foi creditado a Sant Ana. A festa tinha como características ser organizada pelos pescadores e veranistas, e também uma grande parte profana, com musicas, bailes, leilões, queima de fogos, desfiles, concursos, bandas, carros alegóricos, homens vestidos de mulher, sambas, muita comida e bebida nas ricas casas. Ocorria, também, o presente para a Mãe d Água, protetora dos pescadores. Na parte sagrada da festa havia missas, procissões em terra e mar, cânticos religiosos. Inicialmente organizada por pescadores, tinha cada vez mais a participação e a interferência dos homens brancos e ricos da cidade; e, com desenvolvimento dos transportes (o bonde), cada ano mais pessoas procuravam a festa no Rio Vermelho, que se tornou um prenúncio do carnaval. As festas não eram somente momento para devoção das santas católicas. No quarto capítulo, As senhoras do fogo, do mar e dos lagos: figuras da devoção afro-brasileira, a autora trata dos festejos em homenagem às entidades do candomblé que ocorriam concomitantemente à festa católica. Edilece Couto apresenta as características, oferendas e festas dos três orixás: Iansã, Iemanjá e Nanã, que no sincretismo correspondem a Santa Barbara, Conceição e Sant Ana. A autora inicia com as aproximações que envolvem Santa Barbara e Iansã, a começar pelo dia de culto, 4 de dezembro, também dedicado à orixá dos ventos, das tempestades e dos raios. Edilece Couto busca na literatura de Jorge Amado, em canções e poemas, elementos que retratem as figuras de cada um dos orixás. Assim como fez em relação às santas católicas, a autora dedica neste capítulo espaço para contar as suas histórias, sua forma de culto, suas manifestações, representações, oferendas, e as características dos seus seguidores. Se a Igreja é o espaço do santo, o terreiro é o espaço do orixá: ali ocorrem as cerimônias religiosas do candomblé. A autora descreve as principais características de um terreiro, faz um breve histórico da formação dos terreiros na cidade e da perseguição sofrida no início do século XX. As festas e os rituais também são descritos de forma geral: sacrifícios, danças, cânti- 169

cos, incorporações e comidas a literatura de Jorge Amado servindo de principal suporte para as descrições. Um momento de esclarecimento ainda no quarto capítulo é referente à festa destinada a Iemanjá no Rio Vermelho, no mesmo lugar onde ocorriam as festividades para Sant Ana, a qual tem como referência no candomblé Nanã. A autora explica que o processo de modificação foi lento, seja pelo fato de a história da aparição de Sant Ana aos pescadores em 1823 perder força a cada dia, seja pela interferência cada vez maior dos veranistas na organização das festividades, carnavalizando-a. Contudo, a suspeita maior recaía sobre conflitos entre os pescadores e o clero, que ocorreram em três momentos: o primeiro foi a suspensão do pagamento do dízimo (1919); o segundo, devido a participarem da missa e também levarem presente à Mãe d Água (1924); e o terceiro, quando o sacerdote se recusou a rezar missa para os pescadores que continuavam a prática dúbia (1930). A partir da década de 1930 ocorre a separação dos cultos, o de Iemanjá cresce e o de Sant Ana decai. A modernização do sistema de transportes e o aumento do número de moradores no Rio Vermelho retirou sua característica de lugar de veraneio, deslocando assim a elite que frequentava o local; a Festa de Iemanjá passou a ser a única manifestação religiosa exclusiva do candomblé com ampla participação popular. O ultimo capítulo do livro, que traz como título Festas religiosas populares, discute as várias formas de festejar e as tentativas de controle dessas manifestações. As festas, com o passar do tempo, adquiriam cada vez mais elementos profanos, como o uso de fogos de artifícios como saudação ao santo e como prenúncio do início das festividades lúdicas. O controle se dava através de posturas municipais em relação aos fogos, aos batuques, às músicas, às danças e ao uso de máscaras durante as festas. As bancas de jogos também estavam submetidas ao controle municipal, no entanto eram toleradas porque parte da renda se destinava à igreja que promovia a festa. Entre o final do século XIX e início do XX, aumentaram o tom das criticas às manifestações exteriores da fé e aos divertimentos populares, partindo de grupos organizados, como os protestantes batistas em seus cultos e através do Jornal Batista. Se estes tinham uma influência restrita aos seus seguidores, Edilece Couto aponta três grupos maiores que criticavam as manifestações populares: o clero, as autoridades civis e a elite católica. A ação do clero estava relacionada com a consolidação do processo de romanização da Igreja, e as ações eram diferentes para cada festa. No caso da Festa de Santa Bárbara o controle não era efetivo, já que não se tratava de uma festa de irmandade, e a imagem cultuada não estava localizada em uma igreja, e sim na rua, no mercado era uma festa organizada por leigos, e, nesse caso, a opção foi a de ignorar a festa, não incentivá-la. Essa atitude foi bastante diferente no caso da festa dedicada a Nossa Senhora da Conceição, organizada por irmandade em que os sócios eram pessoas de posses, dogmatizada no império, e que ganhou força no período republicano com o reforço ao culto mariano. Quanto à festa de Sant Ana, esta foi a que sofreu maiores mudanças em virtude de tudo que a cercava, a aproximação com o carnaval que a envolvia com elementos 170

profanos, juntamente com o culto à Mãe d Água por parte dos pescadores, motivo de desavença com a Igreja, que chegou a transferir a data do festejo para o mês de julho, para evitar estas vinculações, mas que teve como consequência a perda do antigo esplendor. Quando Edilece Couto cita as autoridades civis, está se referindo às ações policiais e às posturas municipais. As ações policiais estavam dirigidas para batidas em terreiros e na repressão à manifestações ditas africanas, durante as quais prendiam-se os líderes religiosos e apreendiam-se objetos utilizados nos rituais. As posturas municipais regulamentavam o fabrico e o uso de fogos de artifício, confetes e máscaras, e os bandos anunciadores. O terceiro grupo era a elite católica, que tinha como arma os jornais, sobretudo o Diário de Notícias e A Tarde, que publicavam textos com críticas aos batuques, aos ritos religiosos afro-brasileiros, ao comércio de alimentos pelas mulheres negras. Qualquer manifestação que remetesse ao culto de matriz africana era visto como atraso, como impeditivo da modernidade, e era uma ameaça à higiene pública. Outra forma de ação era a omissão de reportagens sobre as festas envolvendo negros, como Santa Bárbara numa tentativa de desqualificar a homenagem a santa. Esses três grupos tinham como desejo civilizar a sociedade, controlar a moral das pessoas porém o que se viu foi, apesar de todos os ataques, a continuidade das festas ao longo do tempo pela persistência popular de manter um culto plural. Edilece Couto conclui o seu estudo observando que as tentativas de controle sobre as festas populares não alcançaram êxito e o que prevaleceu foi a africanização dos costumes. As festas continuaram seguindo, com exceção da festa de Iemanjá, o calendário litúrgico católico, mas as práticas da porta da igreja para fora demonstram que o tempo de festas, vivenciados pelos baianos, é afrocatólico. (p.215). O livro de Edilece Souza Couto tem o mérito de levar o leitor a refletir sobre os esforços, as resistências, as influências e adaptações que homens e mulheres demandaram para conservar manifestações religiosas e festivas que em tempos atuais são apresentadas como um atrativo cultural. É uma leitura que demonstra o que estava por detrás do discurso da modernidade entre o final do século XIX e no início XX e a quem estavam dirigidas as ações por ele justificadas. No que tange as festas, é possível concluir que as manifestações sofreram mudanças ao longo do tempo, porém estão amarradas na fé a qual, mesmo que se tente controlar a sua demonstração, continua sendo fé, ainda mais se for na cidade que vivencia a crença no seu dia a dia. 171 Fabiano Moreira da Silva Graduando em História Universidade Federal da Bahia