GRUPO DE TRABALHO 8 CULTURA E SOCIABILIDADES A RELAÇÃO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE NO CONTEXTO DA FEIRA POPULAR E DOS FREE SHOPS EM RIVERA/UY Rut Maria Friedrich Marquetto
2 A RELAÇÃO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE NO CONTEXTO DA FEIRA POPULAR E DOS FREE SHOPS EM RIVERA/UY Rut Maria Friedrich Marquetto 1 Resumo Este artigo é uma discussão sobre o contexto da relação entre o tradicional representado pela tradicional feira popular, e a modernidade - representada pela presença dos free shops, ambos de Rivera/UY. Trata-se de um lugar cosmopolita, marcado pelo transito diário e intenso fluxo de pessoas de diversas etnias e nacionalidades, muitas das quais se deslocam até Rivera motivadas pela zona de livre comércio, especialmente para adquirir produtos importados. A instalação dos free shops constituiu um território mercantilizado, internacionalizado e característico do consumo de massa, através do qual impulsionou a geração de postos de trabalho nos diversos setores de produção, tanto de serviços como de bens, resultantes da oferta e procura por eletrodomésticos, eletrônicos, eletropeças, vestimentas, calçados, artigos de decoração, bebidas alcoólicas, especiarias e condimentos. Essa realidade contrapõe-se com expressões que traduzem os costumes e hábitos tradicionais, campeiros e rurais, característicos da vida fronteiriça. Há uma cultura latente que resguarda as tradições presente na gastronomia, idioma, jeito das pessoas. Por meio da observação simples e registros fotográficos, constatou-se que os riverenses destinaram espaços públicos visando acolher a feira popular atraves da qual são vendidos os produtos das colônias, ferragens, artesanatos, antiguidades. Palavras-chave: Tradição. Modernidade. Rivera/YU. Introdução Este artigo é uma discussão sobre o contexto da relação entre o tradicional representado pela tradicional feira popular, e a modernidade - representada pela presença dos free shops, ambos de Rivera/Uruguai. Trata-se de um lugar cosmopolita, marcado pelo transito diário e intenso fluxo de pessoas de diversas etnias e nacionalidades, como italianos, alemães, árabes, espanhóis, argentinos, chilenos, brasileiros, muitas das quais se deslocam até Rivera motivadas pela zona de livre comércio, especialmente para adquirir produtos importados. A instalação dos free shops constituiu um território mercantilizado, internacionalizado e característico do consumo de massa, através do qual impulsionou a geração de postos de trabalho nos diversos setores de produção, tanto de serviços como de bens, resultantes da oferta e procura por eletrodomésticos, eletrônicos, eletropeças, vestimentas, calçados, artigos de decoração, bebidas alcoólicas, especiarias e condimentos. 1 Turismóloga, docente no Curso em Turismo da UNIFRA; MBA em Gerenciamento de Projetos - FGV-POA; Mestre em Engenharia de Produção área de concentração Gerência da Produção - UFSM; Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em Desenvolvimento Regional - UNISC. Contato: rutmarquetto@gmail.com
3 Essa realidade contrapõe-se com expressões que traduzem os costumes e hábitos característicos da vida fronteiriça, campeira e rural de da cidade considerada. Há, portanto, uma cultura latente que resguarda tradições e, embora fragmentada, está presente na gastronomia, idioma, jeito e modo de vestir das pessoas. Além disso, por meio da observação simples e registros fotográficos, constatou-se que os riverenses destinaram espaços públicos que abriga uma feira popular itinerante onde estão à venda produtos colônias, hortifrutigrangeiros, ferragens, artesanatos, briques, antiguidades e curiosidades. Numa expressão metafórica, é praticamente um museu a céu aberto por estarem ali expostos artigos que remontam época, muitos dos quais, vendidos para fins decorativos, outros de utilidade. 1. Tradição X modernidade A tradição está vinculada ao tempo, á memória, a inventividade e, embora decorra do passado, é um ato do presente. Sua restituição tem cunho político na medida em que vai filtrando o que pode e o que não pode vir a tona de acordo com os significados no tempo, das imagens convenientes, dos interesses vigentes, seja no âmbito individual ou social. As tradições aparentam ser antigas e baseadas na idéia de um povo original. [...] a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência (...) para o presente (BECK et al., 1997, p. 80). Vinculada ao futuro, as tradições são remodeladas a partir das representações do passado e do presente. Sua preservação e continuidade se dão pelos rituais que, reinventados, reformulado e reincorporado, são entendidos como mecanismos da memória coletiva e das verdades tradicionais. As tradições se fundamentam pelas experiências do cotidiano mediadas pela linguagem, símbolos, mitos e rituais vivenciados no local. No entanto, o global influencia o local e vice-versa. Para Giddens (1991) as tradições são reconfiguradas pelas transformações geradas pela globalização. Com a velocidade da disseminação de informações está se criando novos estilos de vida mundializados. Para Oliven (2006, p. 207), é natural que esse processo também se reflita no âmbito da cultura. Alguns padrões de consumo e de gosto indicam que existe uma série de manifestações culturais que se internacionalizaram, gerando um cruzamento das fronteiras culturais. Ao migrar para outros contextos, a cultura sofre o fenômeno da desterritorialização e recontextualização e, na medida em que ela é adotada noutro contexto cultural e reelaborada, se configura na hibridização cultural.
4 2. Turismo Com o surgimento do Turismo Moderno, logo após a II Guerra Mundial, houve uma mudança de paradigma causada pela invasão dos recursos tecnológicos, os quais modificaram o cenário global. Surgiram os aviões a jato, telecomunicações, computadores, trocas de informações instantâneas e a internacionalização dos mercados, os quais se tornaram forte aliados para o sucesso das destinações turísticas. Tais inovações são desafiantes e conduzem os gestores a tomadas de decisões no sentido de romper com sistemas tradicionais e avançar na conquista e domínio de novas tecnologias. Esta realidade impõe novos posicionamentos organizacionais no mercado, nova postura empreendedora e uma cultura diferenciada que inclua competitividade organizacional e crescimento empresarial. O Turismo é um fenômeno social que inclui as atividades de deslocamento e permanência em locais fora de seu ambiente de residência, por um período inferior a um ano consecutivo, por razões de lazer, negócios ou outros propósitos (OMT Organização Mundial do Turismo in GOELDNER, McINTOSH, RITCHIE, 2002, p.24). 2.1. Turismo de compras Para Moletta (1998, p.9) o Turismo de Compras diz respeito ao deslocamento de pessoas para centros urbanos organizados, que possuem o comércio como atrativo principal. Ele se caracteriza pelos destinos que se preocupam em atrair e receber turistas/visitantes que desejam comprar, utilizar a estrutura turística local, como hotéis, pousadas, restaurantes, lancherias, e outros, e esperam encontrar qualidade, preço, diversidade e comércio organizado. É um segmento geralmente realizado em centros comerciais desenvolvidos onde há fábricas e oferta, tanto pelo atacado como pelo varejo, importados ou nacionais, em diversos estabelecimentos, muitos dos quais especializados em determinados produtos, como por exemplo: móveis, malhas, calçados, bolsas, porcelanas, cristais, cama, mesa, banho, condimentos, bebidas, especiarias. Outro fator que encanta o consumidor são os preços promocionais e/ou liquidações sazonais. O comércio de fronteira sempre provoca curiosidade ao consumidor devido as novidades e principalmente aos preços dos produtos quando o câmbio está favoravel. Ocorre que o intercâmbio de compras pode ser motivador ao consumo entre os países vizinhos, envolvendo o deslocamento de turistas/visitantes dos mais diversos lugares e distâncias. Esse fluxo de pessoas também depende
5 da capacidade que o município tem para divulgar sua oferta, a qual está sujeita a gestão e as políticas públicas do local. Entretanto, como a economia capitalista gerou o mercado especulativo e inflacionário o uso do espaço público fica exposto as diferentes e desiguais capacidades de pagamento determinando o grupo social a ocupar e usar um dado lugar da cidade. (MARICATO, 2002). Por isso, vale ressaltar que, entre a diversidade setorial que incide sobre o turismo, inserir os menos favorecidos nos processos turísticos de um determinado destino significa que direitos e deveres sejam exercidos em sua plenitude pelo cidadão-anfitrião, principalmente no que diz respeito ao trabalho e educação. 3. Contextualizando Rivera: free shops X feira popular O município de Rivera/Uruguai faz divisa com a cidade de Sant Ana do Livramento/Brasil, marcada por sucessivas demarcações ao logo da história da colonização. Segundo Martins (2005) Rivera surge por volta do início do século XX que, a pedido dos santanenses ao governo Uruguaio, foi planejada junto a Sant Ana do Livramento visando selar as boas relações entre ambas. As relações entre o Brasil e o Uruguai ocorrem intensamente desde muito antes do processo de globalização atual. Além de histórica, as duas cidades são divididas territorialmente por um obelisco internacional (Figura 1), que simboliza a união das duas pátrias, situado no Parque Internacional. Figura 1: O obelisco: símbolo da união das duas pátrias. Fonte - Arquivo da autora Acordados, Brasil e Uruguai implantaram políticas globalizantes que afetou tanto a vida da sociedade anfitriã como a vida dos turistas/visitantes, estimulando o Turismo de Compras e ignorando os atrativos que reportam a história e identidade presentes no local. A expansão do Turismo de Compras revela o caráter contraditório e conflituoso da produção do espaço cultural, pois paralelo a oferta dos produtos importados e globalizados, está o interesse
6 em vender também os produtos locais e nacionais do Uruguai, tais como queijos, doce de leite, pães, doces, gastronomia típica. A atividade primária igualmente poderia ser melhor explorada no sentido de promover visitações no meio rural. Dessa forma os visitantes conheceriam a produção do trinômio bovinocultura de corte, ovinocultura e rizicultura. Outro item interessante reside no aproveitamento do potencial logístico (armazenamento, distribuição e intermediação comercial), de integração com os países vizinhos que pode favorecer a comercialização dos produtos locais. Dependendo da articulação social e da vontade política, podem as expressões tradicionais do local se converterem em atrativo turístico, uma vez que resguardam ícones históricos capazes de estabelecer uma ligação entre o passado e o presente, significando e fornecendo os sentimentos de pertencimento à população residente. 3.1. Free shops A principal atividade comercial de Rivera é a presença dos free shops (Figura 2) que oferecem produtos genuínos, de origem controlada, de qualidade e com severa supervisão por parte das autoridades Uruguaias. Figura 2: Lojas Duty Free Fonte - Arquivos da autora Na Avenida Sarandi há o intenso centro comercial com fluxo de turistas/visitantes impulsionados pela diversidade e facilidades na aquisição de produtos importados, principalmente pela forma de pagamento (cartões ou uma das três moedas: peso, dólar e reais) encontrados nos free shops. Em relação aos postos de trabalho ofertados pelos free shops, uma grande maioria dos trabalhadores exerce funções operacionais e repetitivas (balconistas, empacotadores, caixas etc.) características da produção fordista que limitam o desenvolvimento das capacidades humanas, cognitivas, críticas e de ampliação de seus conhecimentos. Também se caracteriza pela precariedade salarial que fortalece o processo de segregação urbana. Outro aspecto característico da modernidade é com relação ao aumento do deslocamento transfronteiriço das pessoas. É intensa a passagem de turistas pela aduana (porto seco) e que seguem
7 viagem adentrando no território brasileiro ou uruguaio, muitos dos quais não interagem com a comunidade local. Geralmente são pessoas que não dispõe de muito tempo, e/ou apenas com interesses individuais voltados ao consumo gastronômico e/ou a compras de produtos importados nos free shops. Ignoram, portanto, os moradores locais bem como de prover um bom papo, com sotaque fronteiriço e ouvir histórias interessantes sobre a história, e a cultura da fronteira. Como estímulo as vendas para os alienígenas, ou seja, aos forasteiros e/ou moradores de outros países, o governo uruguaio reduziu ou eliminou alguns impostos para que brasileiros, argentinos, chilenos, paraguaios tenham livre acesso, a semelhança dos free shops instalados nos aeroportos internacionais. No entanto, grande parte da população local fica excluída dos benefícios sócio-econômicos gerados pelas divisas deixadas nos free shops. Evidenciou-se in loco, a inexistência de programas capazes de dispertar a atenção e a curiosidade nos turistas/visitantes em conhecer melhor a cidade de Rivera. Assim, as políticas públicas acabam por excluir os demais atrativos histórico-culturais, tais como: queserias, patrimônio arquitetônico, expressões culturais, feira itinerante popular, patrimônio religioso, praça pública, monumento e marco divisórios, paisagem pampeana e propriedades rurais. Caso tais atrativos fossem utilizados para fins de visitação turística poderia gerar mais postos de trabalho e renda na localidade. A feira popular é um bom exemplo de autenticidade, pois é composta por trabalhadores que vendem os produtos de sua terra como frutas e verduras. Além disso, as pessoas interagem umas com as outras em meia a uma miscelânea de produtos, entre eles artigos de utilidade e de decoração, muitos dos quais fabricados e utilizados no início do século passado bem como de selaria e outros utilizados na lida campeira. Assim, o contato entre turista e anfitrião poderá ser experienciado de forma construtiva através do exercício da cidadania e da alteridade de forma a gerar ações que respeitem as diferenças culturais. A percepção do turista/visitante poderá converter-se de forma a ampliar suas vivências e experiências culturais e, ao retornar para seu lugar de origem, carregará consigo experiências enriquecedoras e diferentes. Considerações finais A presença dos free shops em Rivera resulta de um processo histórico relacionado às crises econômicas resultantes da oscilação cambial, que hora atraía hora expulsavam os compradores advindos dos países visinhos do Uruguai. Para incrementar as vendas e gerar maior fluxo de capitais, o governo uruguaio incentivou a zona de livre comércio na fronteira desse país. A zona de livre comércio foi um fato social que, somado a outros eventos contraproducentes da modernidade, impactam positiva ou negativamente nessa localidade, com reflexos
8 socioeconômicos importantes, também evidenciados pelos comportamentais individualizados dos turistas/visitantes. Esse movimento evidencia conflitos entre o antigo e o moderno através dos quais a população é afetada, principalmente com relação á manutenção das tradições. Quanto a feira popular de Rivera, poucos são os turistas/visitantes que a freqüentam, uns por desconhecimentos; outros por desinteresse. O público circulante são, em sua maioria, moradores locais ou santanenses, que compram frutas e verduras. Alguns adquirem peças de vestimentas de lã, ferramentas para equipamentos e automóveis antigos além de artigos de antiguidades. Tanto a feira como os free shops compõe realidades convergentes e divergentes. Ambos ocupam espaços urbanos muito próximos e se beneficiam de subsídios governamentais como a infra-estrutura física municipal (calçamento, acesso, iluminação pública, policiamento, etc.) e da isenção de impostos. Porém, a feira popular não compartilha de privilégios e concessões para vender com cartão de crédito e, também, ao contrátio dos free shops, não é conhecida pela maior parte dos turistas/visitantes. Neste caso, tanto os aspectos modernizantes como os tradicionais, são fatos sociais e econômicos geradores de conflito e segregação. Entretanto, a presença dos free shops em Rivera deixa muito claro que as manifestações culturais mundializadas não significam que as questões locais estão desaparecendo. Evidencia-se, portanto, que em Rivera, a comunidade rural e urbana mantem-se interessada pelo ingresso dos produtos importados globalizados, porém, valorizam sua cultura tradicional cujas fronteiras simbólicas precisam ser preservadas.
9 Bibliografias Consultadas BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernidade reflexiva: trabalho e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001. GOELDNER, Charles R.; RITCHIE, J. R. Brent; MCINTOSH, Robert Woodrow, Turismo: princípios, práticas e filosofias. 8. ed Porto Alegre: Bookman, 2002. MARICATO, E. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In: Arantes, O. B. F.; Maricato, E.; Vainer, C. A cidade do pensamento Único: Desmanchando Consensos. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: Vozes, 2002. MOLETTA, V. F.; GOIDANICH, K. L. Turismo de Compras. Porto Alegre: SEBRAE/RS, 1998. OLIVEN, Ruben. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2006.