REDUÇÃO DA PROGRAMAÇÃO INFANTIL DA TV ABERTA E AUSÊNCIA DE POLÍTICA PÚBLICA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA BRASILEIRA



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Transcrição:

REDUÇÃO DA PROGRAMAÇÃO INFANTIL DA TV ABERTA E AUSÊNCIA DE POLÍTICA PÚBLICA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA BRASILEIRA Vânia Lúcia Quintão Carneiro - Universidade de Brasília (UNB) Na década de 1990, as crianças brasileiras foram brindadas com ofertas frequentes de programas infantis que ensinavam, divertiam e desafiavam os tradicionais programas de auditório. Rá-timbum! foi o primeiro a ecoar. Outros se seguiram, sob a liderança da TV Cultura, como Mundo da Lua, Castelo Rá-tim-bum, Cocorocó e X-Tudo. Criaram novos formatos, conquistaram audiências e afirmaram possibilidades de fazer programa infantil com qualidade educativa. Contudo, desde a primeira década do século 21, as notícias sobre programação infantil tratavam de sua redução nas principais emissoras de televisão aberta do Brasil. Em 2012, um espaço tradicional da TV Globo foi retirado do ar durante a semana e ficou restrito aos sábados. Tratavase da programação diária TV Globinho, que transmitia variados programas infantis, do Xou da Xuxa até programas de qualidade premiados, como os pioneiros em unir diversão televisiva e educação Vila Sésamo e Sítio do Pica-pau Amarelo. Ao tempo em que se retirava do ar a TV Globinho, anunciava-se o novo canal infantil Gloob, fechado, pago. Recentemente, uma das poucas emissoras abertas que continua exibindo programação infantil no período da manhã, o SBT, ameaça rever seus planos de investimento em programação infantil (Jimenez, 2014). Diante dessa redução incessante, as crianças têm poucas opções na televisão aberta. Ficam à mercê de qualidade cada vez mais inadequada, ao priorizarem audiências de adultos. O acesso a novas programações por canais a cabo ainda não atinge o grande público de baixa renda, que busca informação e entretenimento nos circuitos abertos gratuitos. Considere-se que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente programação de TV para o público infanto-juvenil é um direito, uma vez que As emissoras de Rádio e Televisão somente exibirão no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Até que ponto essa situação não viola os direitos das crianças

brasileiras? Que alternativas estão sendo propostas pela política pública de proteção e promoção dos direitos das crianças? O presente artigo analisa a redução da programação infantil da televisão aberta brasileira nos canais com maiores audiências. Para tanto se apoia em textos da legislação referente a televisão e a direitos da criança e em nossa observação contínua quanto à programação infantil e sua recepção por crianças, com a contribuição de bolsistas de PIBEX e PIBIC e alunos da disciplina Usos TV/vídeo na Escola ( FE-UNB). Partindo dos pressupostos de que a televisão é a principal fonte de informação e diversão da maioria das crianças e de que o atendimento prioritário a interesses das crianças é universal, este trabalho busca apreender motivos e implicações dessa progressiva redução. A análise se inicia abordando a ampliação dos programas concomitantemente aos avanços dos direitos das crianças e, em contraposição, a redução de programas e a inexistência de políticas públicas, no caso brasileiro, para salvaguardar os direitos da criança no acesso a programação de qualidade. 1. Ampliação da programação e os direitos da criança Os anos 90 marcam a ampliação da produção e da oferta de programas inovadores para crianças brasileiras. Destaca-se um novo educativo, que se afasta dos conteúdos escolares e se aproxima do entretimento, do lúdico, do imaginário, enfocando a criança como protagonista de narrativas variadas, divertidas e comprometidas com o atendimento a necessidades afetivas, sociais de valores, cognitivas. Sob a égide da Convenção Sobre os Direitos da Criança (1989), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990, foi fonte inspiradora ao legislador nacional na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Tal documento normativo, de grande capacidade mobilizadora, teve o mérito de mudar o então paradigma vigente, elevando as crianças à figura de sujeito de direitos, que hoje constitui o segmento da população mundial que mais goza de atenção ( Valera, 2012).

Nesse texto, o direito à educação é o direito principal da criança. O direito ao lazer, ao acesso a atividades culturais e artísticas em condições de igualdade também é destacado. Mais precisamente no artigo 31 é reconhecido o direito ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, acrescentando o direito `a livre participação na vida cultural e artística e atribuindo a promoção pelo Estado de oportunidades adequadas para que a criança, em condições de igualdade, participe plenamente da vida cultural, artística, recreativa e de lazer. Em relação aos meios de comunicação há o reconhecimento (art. 17) da importância do papel que desempenham e do cuidado para garantir o acesso da criança a informações e materiais de diversas fontes nacionais e internacionais, em especial que visem promover seu bem-estar social, espiritual e moral e sua saúde física e mental. Essa difusão informativa de interesse social e cultural para a criança deverá ser incentivada pelo Estado. O atendimento preferencial às finalidades educativas, culturais e informativas constitui o primeiro princípio a orientar produção e programação de emissoras de televisão, respaldado no artigo 221 da Constituição Brasileira (1988), presente no artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Desde a última década do século 20, a TV Cultura atua com sucesso para conquistar audiência com seus programas educativos de entretenimento infanto-juvenil. Em 1991 pôs no ar o programa RÁ-TIM-BUM, o projeto mais ambicioso, lançado para divertir e ensinar. Antes de estar pronto, já lhe atribuía a missão de competir com a TV Globo, líder nacional de audiência. O Rá-Tim-Bum marcou presença na produção de programas infantis pela televisão. Sua competência em ensinar e divertir foi reconhecida. Recebeu, entre vários prêmios, a medalha de ouro do Festival Internacional de Cinema e Televisão de New York, 1991, na categoria de programa educativo infantil. As repercussões da premiação o colocaram em primeiro plano na agenda da mídia brasileira. E com ele a reafirmação da possibilidade da integração entre diversão, linguagens audiovisuais e finalidades pedagógicas. A TV Cultura abriu com Rá-Tim- Bum e manteve um espaço de reflexão/discussão sobre programas educativos, através de novas produções. No lançamento do Rá-Tim-Bum anunciava-se a próxima atração de sucesso da TV

Cultura, o seriado de ficção Mundo da Lua, que sucedeu, em janeiro de 1993, ao Xou da Xuxa, na Rede Globo. Observava-se um esgotamento da fórmula auditório-apresentadora. O infantil TV Colosso trouxe a linguagem dos bonecos e das vinhetas que faziam sucesso nos programas do gênero na TV Cultura. Outro programa inovador (da TV Cultura), até hoje no ar, é o Castelo Rá-Tim-Bum, lançado em 1994, constituiu-se um novo gênero de entretenimento educativo (Carneiro, 1999). A influência do Castelo na produção de mais e melhores infantis por outras emissoras foi visível. Record e SBT colocaram no ar programas infantis bem feitos e instrutivos inspirados no Castelo. A TV Cultura teve retorno explícito de audiência constatado por todos os órgãos de aferição de índices. Essas novas tendências na produção infantil foram impulsionadas pelos avanços em outros países, dos quais também chegaram novas produções interessantes. Nos Estados Unidos também ocorreram avanços na produção de programas para o público infanto-juvenil que resultaram em ampliação da quantidade e da qualidade educativa. Além disso, nas regras estabelecidas pela Children s Televison Act (1990) e adotadas em 1991 pela Federal Communications Comission (FCC), as emissoras de televisão comercial incluindo TVs a cabo passaram a ter de veicular programas com finalidades educativas/informativas (E/I) para crianças, como condição para renovar licenças de operação. Em 1996, especificou-se em 3 horas por semana o tempo de transmissão de programas (E/I) para crianças pelas emissoras. O desempenho da função educativa para as crianças pelas emissoras comerciais continua sendo cobrado atualmente pelos órgãos oficiais competentes. A importância de decisões políticas tomadas em favor da promoção de uma programação de qualidade se deve à constatação comprovada de que fornecem às crianças acesso a produtos que podem melhorar seu bem-estar social, emocional, sua cognição (Calvert & Kotler, 2003: 312) Em 2004, relatório da FCC reafirmou que com a implantação do sistema de televisão digital, as exigências básicas adotadas continuariam sendo cobradas para as televisões no novo sistema

pelos órgãos oficiais competentes. Vale lembrar que as crianças americanas também dispõem de um canal público infantil PBS Kids.

2. Redução da programação e políticas públicas Ante a redução dos espaços da TV aberta e o crescimento dos canais infantis pagos, a implantação do sistema de televisão digital possibilita a multiplicação de canais e a criação de um canal digital infantil público para exibir programas específicos parece ser a saída. A redução da programação infantil das televisões abertas e sua migração para canais pagos não é fenômeno recente. Tampouco o sucesso dos programas específicos bem produzidos, junto a audiências de crianças. De 2000 a 2005, o tempo de programação destinada às audiências infantis nas três principais emissoras brasileira se reduziu aproximadamente à metade. Uma das consequências observadas foi a mudança quanto aos programas preferidos. Os programas infantis que em 2000 ocupavam o segundo lugar passaram para o terceiro, e as novelas subiram para o segundo lugar. Os desenhos continuaram em primeiro. As crianças passaram a consumir mais programas para adultos. Contudo, embora programas de adultos fossem os mais assistidos pelas crianças, tanto pela curiosidade e a atração que exerce o mundo dos adultos, como pela falta de programas infantis, principalmente no horário nobre quando a maioria está em casa. Em nossa pesquisa (2005) com 424 crianças, quando perguntadas sobre o programa mais assistido geralmente citaram programa de adulto, mas quando perguntadas sobre de que programas mais gostavam, sempre indicaram um programa dirigido a crianças, principalmente desenho. (Carneiro, 2005). Apesar da visibilidade da redução dos programas infantis, a política pública de defesa dos direitos das crianças não atua na defesa e promoção dos benefícios da programação infantil. Sua atuação combativa restringe à proteção das crianças diante dos abusos da televisão aberta como o processo de Classificação Indicativa amplamente divulgado (CLASSIFICAÇÃO, 2006) e

regulamentado pela Portaria e o combate a publicidade infantil na televisão, que culminou com recente aprovação pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda, composto por entidades da sociedade civil e ministérios do governo federal, da resolução que, na prática, proíbe a veiculação de propagandas voltadas para crianças. (CONANDA, 2014). Algumas emissoras apontam essa política pública como responsável pela situação de fechamentos dos espaços infantis. O motivo maior para essa transformação é, entretanto, o fato de ser mais lucrativo o investimento nos canais pagos infantis. Daí que programas específicos para crianças migram para canais infantis por assinatura. Estes canais infantis têm tido grande sucesso de audiência junto as crianças que podem pagar por tais canais. Vale assinalar que os canais infantis são os que mais ampliaram a base de assinantes e estão na liderança dos canais pagos. O Discovery Kids, destinado a crianças em idade pré-escolar, possui o maior número de assinantes entre todos os canais pagos. Produzir programas de qualidade para crianças tem sido um grande negócio. (Mattos, 2012). Simultaneamente à extinção da TV Globinho já se anunciava o novo canal infantil da Globosat, o Gloob. Para a Globo trata-se de tendência internacional entregar as audiências de crianças para a TV paga, com a vantagem de não ter controle externo, como classificação indicativa e proibições à publicidade infantil. A redução da oferta de programas infantis na televisão aberta não ocorreu apenas na TV brasileira. Tendência semelhante também pode ser observada na Espanha. No período de 1999/2000, o total da programação infantil em todas as emissoras abertas correspondia a 10,3% de toda a programação; e no período seguinte, 2001/2002, reduziu-se a 7,3%. (LIBRO BLANCO, 2003; p. 39-41).

Na Espanha, a perda de programação infantil da televisão aberta com a migração para os canais pagos foi compensada com a implantação do sistema de TV Digital. Foi o terceiro país a implantar o sistema de televisão digital, precedida pelos Estados Unidos e Inglaterra. (Bustamonte, 2006). Entre os primeiros cinco canais digitais públicos autorizados a funcionar, em 2006, um deles é o Clan TVE, canal infantil gratuito, público e acessível aos lares espanhóis, beneficiando todas as crianças espanholas. Possui programação variada orientada para atender às demandas de entretenimento de crianças até os 13 anos, com produções basicamente em espanhol, transmitidas 24 horas. A programação caracteriza-se como educativa, informativa, divertida e participativa, enfatizando valores éticos e democráticos: respeito, amizade, proteção do meio ambiente, colaboração e esforço. Trata-se de um canal de televisão pública de temática infantil e juvenil pertencente à TVE, que emite através da TDT e da plataforma de televisão paga Digital+. Estreou em 12 de dezembro de 2005. (RTVE, 2012) No primeiro trimestre de 2010, uma comparação entre os canais infantis específicos e os canais voltados a todos os públicos mostrou que dos quarenta programas mais assistidos pelas crianças, mais da metade, 57,5 %, correspondia a programas de canais infantis, e entre esses o líder era a Clan TVE, seguido pela Disney Channel, enquanto o restante correspondeu a emissoras abertas. Portanto, umas das consequências visíveis da existência da Clan TVE é o aumento do consumo de programação infantil específica pelas crianças e a diminuição do consumo de programa de adultos oferecidos pelos canais voltados para todos os públicos, como as tradicionais televisões abertas (Barrios, 2011). No Brasil, com a instituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital SBTVD houve expectativas de criação de um canal de televisão pública infantil, de modo que todas as crianças brasileiras pudessem ter acesso a opções de programação divertida e educativa, como o fazem as crianças dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália, Canadá, Holanda, Japão, Chile, entre outros. Contudo, em 2006, pelo Decreto nº 5.820, sobre a implantação do SBTVD-T, não se destinou nenhum canal digital público para as crianças brasileiras.

Uma investigação sobre ordenamentos jurídicos da mídia e direitos das crianças e adolescentes em quatorze países da América Latina, inclusive o Brasil, constatou que uma das ausências mais notórias está relacionada à legislação específica que trata sobre a relação tevê pública e direitos de crianças e adolescentes (ANDI, 2012, p.54-55), o que confirma a ausência de políticas públicas e o desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes em relação a televisão. Conclusão Da análise de documentos da legislação (decretos, Constituição, estatuto, convenção) em relação a TV e a direitos das crianças constata-se não haver no Brasil políticas públicas de defesa dos direitos das crianças, quanto ao acesso a programação gratuita que atenda às suas necessidades educativas e de divertimento específicas. Tampouco houve até agora responsabilidade política para conceder um canal digital público exclusivamente para as audiências infantis, apesar de ter havido avanço não apenas dos direitos, como do conhecimento sobre o papel benéfico na educação e na diversão infantil pela televisão, produzida em função de necessidades, conhecimentos e interesses das crianças. Com a migração da programação infantil da TV aberta para a TV paga, e na falta de um canal de TV público infantil, a maioria das crianças brasileiras fica privada de acesso a um canal infantil, ao contrário de crianças que têm poder aquisitivo para assinar canais pagos. Como Basílio (2003, p.122), indago: Sem políticas públicas voltadas para crianças e televisão pública, como falar em direitos da criança? Bibliografia AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DOS DIREITOS DA INFÂNCIA ANDI.. Regulação de mídia e direitos das crianças e adolescentes: uma análise do marco legal de 14 países latino-americanos, sob a perspectiva da promoção e proteção. Brasília, ANDI, 2008. Disponível em:

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