CONTO E RECONTO DE UMA NARRATIVA DE CHARLES PERRAULT José Ricardo Carvalho da Silva 1 (UFS) Manoela Barreto Borges 2 (UFS) INTRODUÇÃO O trabalho que se segue tem o intuito de compreender o funcionamento do discurso oral da criança em atividades de reconto de narrativas com alunos do ensino fundamental. Observamos que há pouco aproveitamento dos trabalhos em que a oralidade se faz mais presente na interação entre alunos e professores. Este fato se deve principalmente ao pouco conhecimento que os professores possuem sobre a natureza do discurso oral. Dessa forma temos por objetivo investigar o comportamento lingüístico oral dos alunos em interações verbais com intuito de aproximar as práticas orais das práticas letradas. Para isso nos debruçamos sobre as propriedades da fala que ora se apresenta semelhante da escrita e ora se apresenta com suas peculiaridades. O falante se utiliza de instrumentos lingüísticos diversos de acordo com o gênero textual ou o uso da modalidade falada e escrita. Nesse contexto examinamos atividades de reconto oral que resultaram em uma ampla reflexão da linguagem falada por alunos que não dominam, ainda, totalmente os princípios do discurso escrito. Para isso levamos em conta a compreensão da natureza da fala e como esta se utiliza de elementos variados e singulares para interagirem verbalmente. Evidenciamos recursos ímpares no funcionamento do discurso falado que nos leva a crer a importância de estudar suas propriedades a partir da análise de textos recontados oralmente por alunos do ensino fundamental. Tais atividades resultam de atividades desenvolvidas no projeto PIBID (Produção textual no ensino fundamental: oralidade e escrita na formação do professor-pesquisador) no ano de 2012 em uma escola do município de Itabaiana/SE. Do ponto de vista pedagógico, a atividade do reconto oral valoriza a bagagem linguística da criança, pois envolve uma série de processos cognitivos e internacionais que atuam sobre o domínio da competência sociocomunicativa. Nesse sentido, o gênero contos de fada, por ser oriundo da tradição oral, afina-se com os propósitos de compreensão da oralidade em textos narrativos. Durante o processo do reconto, o falante necessita ter o conhecimento estrutural do gênero que 1 Doutorado em Educação, Profº Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Professor do Departamento de Educação (DEDI). ricardocarvalho.ufs@hotmail.com 2 Graduanda em Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe, Bolsista PIBID UFS, Pesquisadora em educação. manubela86@hotmail.com 1
deseja comunicar-se e ter em mente os elementos lingüísticos a serem utilizados para poder organizá-los com unidade. Como atividade prévia diagnóstica para identificar o que os alunos já sabem, fazemos sempre uma discussão inicial com os alunos sobre as interações que já fizeram com os contos de fadas. Neste percurso, contamos a história e exploramos aspectos que levavam os alunos a reconhecerem propriedades particulares do conto de fadas que diferenciam de outros gêneros. Em seguida, realizamos a leitura do conto de fadas por parte, tendo o cuidado de examinar a estrutura narrativa e o modo como se textualizava a narrativa por meio de seus recursos linguísticos e dos enunciados proferidos pelo narrador. Observamos o modo como o autor introduz os fatos, por meio da apresentação dos personagens e do cenário e desenvolvimento do narrador. Em seguida buscamos ressaltar o conflito vivido pela personagem, fazendo com que os alunos se colocassem na situação vivida. Muitas formas de reagir ao conflito foram levantadas pelos alunos, levando-os a prever o que poderia acontecer no decorrer da narrativa. De acordo com Bakhtin (1992): Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem auto-suficientes, conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunidade verbal (BAKHTIN, 1992, p. 317). Para evidenciar o clímax, a narrativa foi interrompida a fim de levar os alunos a criar novas hipóteses de como seria o fim da história. Por fim, narramos a resolução do conflito central, explorando a solução mágica dada por Perrault para projetar o conto de fadas. Convém mencionar que os recursos do conto de fadas possuem uma certa regularidade que a são ressaltadas nos diálogos realizados com os alunos. Por meio de um amplo diálogo com a turma, os alunos vão aos poucos internalizando a estrutura e se motivando para a realização do reconto oral e a reescrita dos contos de fadas. Nas atividades de contação de história evidencia-se, normalmente, a presença de variados usos linguísticos, em que se verifica a alternância do registro culto na voz do narrador e o registro coloquial na fala dos personagens. No domínio do narrador de conto de fadas encontramos expressões rebuscadas, estruturas sintáticas pouco usadas pelos alunos, além de vocábulos utilizados em outras épocas. Somente por este fato o contato com as narrativas maravilhosas já seria algo bastante interessante para criança, nota-se, todavia, que o ato de interação em si quando se conta este tipo de história promove uma intensa comoção e interesse quando se estimula o diálogo no momento da contação da história. Uma das grandes dificuldades de se promover esta atividade é, 2
justamente, a compreensão de oralidade e diálogo instalado na tradição escolar, visto que a noção de roda de leitura é trabalhada de uma maneira onde os alunos são passivos e não possuem a oportunidade de falar no processo da contação de história. Observamos algumas práticas de sala aula que a atividade de contação de história se restringia a dois momentos: a leitura do conto, seguido do desenho da história. Desta maneira, verificamos que muitas escolas perdiam a oportunidade de trabalhar a dinâmica da oralidade em diversos momentos em que se configura a atividade de contação de história. O TRABALHO COM A ORALIDADE NA SALA DE AULA A fim de promover atividades dialógicas na sala de aula, organizamos um planejamento de atividades de leitura de conto de fadas em turmas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Elegemos a narrativa As Fadas, de Charles Perrault, adaptada por Ruth Rocha. Registramos a produção de texto oral com os alunos dos dois segmentos utilizando dois procedimentos a fim de examinar os recursos linguísticos e os procedimentos para realizar a atividades do reconto. Tanto na turma de Educação Infantil como na do Ensino Fundamental, realizamos a atividade em três etapas: a) diálogo de motivação para o texto; b) a contação da narrativa; c) o reconto com a mediação da professora. A primeira etapa consistiu na possibilidade de confrontar a vivência dos alunos com a história a ser narrada, promovendo antes da narrativa uma discussão sobre o tema a ser abordado. A segunda etapa diz respeito ao diálogo com os alunos durante o processo de contação da história, desenvolvendo a oralidade em todos os seus sentidos. Trabalhamos procedimentos de organização dos enunciados e trabalho com a linguagem verbal quer em seu registro coloquial quer em ser registro culto, visto que no processo de interação é possível perceber a dinâmica entre os dois registros e intervenções de professora a fim de ajustar os usos verbais no processo de interação. Apresentamos a seguir um fragmento do reconto oral, com auxílio da professora que arregimenta as vozes dos alunos para realizar a atividade do conto As fadas de Charles Perrault, em uma classe de Educação Infantil com alunos na faixa entre 3 a 6 anos. A narradora diz: A história que a gente contou é de uma autora chamada Ruth Rocha... O nome da história é?!... (Todos falam ao mesmo tempo em tom alto) AS FADAS!.. A narradora pergunta: Como é que começava? (Falam ao mesmo tempo) Era uma vez a voz de Joana sobrepõe uma mãe com duas filhas... má. A narradora pergunta: Alguém lembra? ((Vitória balança a cabeça e diz)): ahã! Maria diz: Eu! Branca diz: Eu! Mas a voz de Maria sobrepõe. Alice diz: Boazinha Maria diz: O..A filha mais velha foi buscar água...a narradora pergunta: A filha mais velha foi buscar água? ((Vitória diz levantando a mão)): Eu sei.. Ana diz: Eu sei...a narradora pergunta: Quem foi primeiro buscar água? Ana diz: A filha mais nova...foi buscar água aí uma velha apareceu porque pensou que ela era bonita e disse...maria interrompe dizendo: pediu um pouco um copo de água...ela disse assim... Vitória interrompe dizendo: oh menina como você é bonita! Branca interrompe dizendo: me ofereça um pouco um copo de água...e Vitória completa: me dê-me um pouco de água por favor Maria diz: Aí ela deu... aí depois a a fada... Ana interrompe e diz: ela ofereceu um dom... Maria diz: quando ela falasse...vitoria diz: disse assim... Maria diz: que quando ela falasse ia sair jóias.. pérolas... flores e pedra. 3
Podemos observar que a professora busca coordenar as vozes do narrador e dos personagens para realizar a atividade de recontação de uma narrativa no gênero conto de fadas. O professor, nesta perspectiva, funciona como arregimentador das vozes para que a estrutura da narrativa e sua a função comunicativa seja cumprida pelos agentes que produzem a narração. Por meio da dinâmica transcrita, é possível identificar o funcionamento da oralidade com toda a sua intensidade, visto que os sujeitos interagem utilizando todos os recursos da fala para promover a ação de recontar uma história ouvida. Diríamos que houve um trabalho de produção texto com toda a sua complexidade, pois os alunos, com a mediação da professora, foram capazes de formular a sequência com enunciados pertinentes e expressivos, demonstrando a apropriação do texto pela via da oralidade. Em uma primeira impressão podemos observar falas sobrepostas, hesitações, o uso de poucos conectores para ligar os enunciados, frases interrompidas. Estes elementos, entretanto, fazem parte da dinâmica de formulação do texto oral. Acreditamos que a compreensão sobre o modo como os textos orais são formulados poderá nos ajudar a compreender procedimentos que os alunos adotam para produzir seus textos escritos. Neste sentido, a compreensão das regras da interação face-a-face apresenta-se como um ponto chave para reconfigurar a relação oralidade-escrita na dinâmica da escola. Identificamos um modo próprio de organização dos enunciados na fala, visto que as práticas orais se configuram como um tipo de interação centrada, em torno de um propósito comunicativo por meio de recursos linguísticos e extralinguísticos. Na atividade de conversação, ou interação verbal oral, é necessário que haja pelo menos dois interlocutores que interajam em torno de um tema de forma alternada. Com base neste princípio Fávero et alli (2007), com base no modelo conversacional de Ventola (1979), descreve os componentes envolvidos na conversação que são: tópico ou assunto abordado, situação, papéis dos participantes, modo e o meio de interação. É possível identificar no reconto dos alunos da classe de Educação Infantil estes elementos que nos ajudam a descrever o contexto de interação da seguinte forma: O tema abordado foi a bondade de uma moça recompensada por suas atitudes. A situação de interação foi o reconto onde cada participante conta um pequeno trecho sem um prévio planejamento. Observa-se que os papéis dos participantes são bastante claros, visto que a professora coordena as falas e os alunos interagem para cumprir a função de recontar a história. Por se tratar de uma situação escolar uma preocupação em privilegiar o modo da linguagem culto, todavia este se apresenta de forma heterogênea pelo meio de interação face-a-face. 4
A narradora diz: Você agora... conte! Joana diz: A filha mais velha foi buscar água... quem apareceu foi uma madame e a madame e a madame pediu água e ela não deu...a madame disse que quando ela falasse ia sair sapo e serpente da boca dela. A narradora pergunta: E agora? Ela faz o quê quando fica sabendo disso? Vitória diz: Aí ela ficou assustada...aí quando ela foi para a casa da mãe...eh minha filha como foi lá? Ela disse...aí quando quando ela foi falar...aí saiu dois sapos e duas serpentes aí foi... aí point... aí point. Maria diz: Aí aí Aí... a mãe dela chamou a filha... foi na cozinha tava...a filha tava a mais nova tava fazendo as coisas ( ) Vitória interrompe: não foi assim não! A narradora intervem: foi foi...assim! Maria diz: Aí a filha A narradora pergunta: Peraí uma fala depois a outra fala vamos lá? Maria diz: Aí a filha... correu prum mato Aí depois... o príncipe apar ela tava chorando aí depois o príncipe apareceu e pediu ela em casamento A narradora pergunta: E agora? E depois? Maria diz: ela aceitou Joana diz: E ela aceitou aí e eles foram pro castelo. Dizem juntos: E se casaram e viveram felizes para sempre. A narradora pergunta: Aí o que foi que aconteceu com a filha mais velha? Todos falam juntos: Morreu Por causa ( ) A narradora pergunta: O que foi que aconteceu com a filha mais velha? Vitoria diz: Ela ela ficou muito feia por isso... quando as pessoas passavam não poderia nem falar por causa toda vez que ela saia... falava... saia um bicho. De acordo com Andrade (1998, p. 22), os enunciados conversacionais se configuram como unidade discursiva. Estas unidades podem expressar relativa coincidência com orações ou atos de fala, porém reflete a experiência do falante a respeito do que seja um bloco textual. Evidencia-se nos enunciados da conversação certa regularidade no modo de organizar as porções de informações, garantindo coerência entre as partes, promovendo, assim, uma unidade textual. Andrade (1998) esclarece, então, a importância dos marcadores textuais como elementos constitutivos do discurso oral que permite a articular a linguagem falada. A unidade discursiva é delimitada, geralmente, por marcadores conversacionais. Estes, por sua vez, são elementos característicos da oralidade, mas não exclusivos. Operam na monitoração das relações interpessoais e na relação com os conteúdos desenvolvidos, sendo, portanto, considerados multifuncionais. Os marcadores podem ser lingüísticos - incluindo os prosódicos (pausas, alongamentos) e os verbais (lexicalizados e não lexicalizados) -, e não lingüísticos: gestos, olhar, riso, etc. Os marcadores verbais apresentam uma variada gama de partículas, palavras, sintagmas, expressões estereotipadas e orações de diversos tipos, tais como: ahn, uhn, eh, ah, certo, né, sabe, viu, então, aí, daí, mas, então daí, eu acho que, quer dizer, então eu acho que, etc. (ANDRADE, 1998, p. 22) Por meio destas observações, buscamos compreender o funcionamento da oralidade, reconhecendo aspectos orais que podem ser mais trabalhados na sala de aula. Evidenciamos, neste contexto, algumas diferenças entre o discurso oral culto e o registro da linguagem coloquial, quando o professor monitora a linguagem verbal. Desta forma, a preocupação com o modo de arregimentar os discursos, bem como o cuidado com a linguagem, aponta para caminhos de como trabalhar com a oralidade na sala de aula. REFERÊNCIAS 5
ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V. de O. O Texto Oral e Sua Aplicação em Sala de Aula: Unidade Discursiva e Marcadores Conversacionais como Estruturadores Textuais. Anais do 6º. Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa. São Paulo: IP-PUC/SP, 1998. BAKTHIN, Michail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1980. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais de língua portuguesa 1ª a 4ª série. Brasília, MEC/SEF, 1997. FÁVERO, Leonor L. ANDRADE, Maria Lúcia C. V. AQUINO, Zilda G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. 6. Ed., São Paulo: Cortez, 2007 GRIMM, J. e W. Os contos de Grimm. Trad. Tatiana Belinky. São Paulo: Paulinas, 1989. FRANZ, Marie Louise Von. O feminino nos contos de fadas. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. KODIC, M. T. A caracterização do discurso oral por meio de Marcadores Conversacionais. Revista Anagrama, ano 1, 3ª edição. 2008 MILANEZ, WÂNIA. Pedagogia do oral: condições e perspectivas para sua aplicação no português. Campinas, SP: Sama, 1993. 6