DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO FAMILIAR AOS VÍNCULOS DE AFETIVIDADE ENTRE OS HOMENS/PAIS E FILHOS E O COMPARTILHAMENTO DE GUARDA



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Transcrição:

1 DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO FAMILIAR AOS VÍNCULOS DE AFETIVIDADE ENTRE OS HOMENS/PAIS E FILHOS E O COMPARTILHAMENTO DE GUARDA Aline Ferreira Dias Leite 1 RESUMO Este artigo consiste em expor uma breve reflexão histórica da instituição familiar, apontando as transformações que ela vem sofrendo ao longo dos séculos, destacando principalmente a função paterna dentro deste contexto e a emergência da relação de afeto, principalmente, entre homens/pais e filhos. O objetivo deste trabalho é compreender historicamente como foi sendo construido uma nova forma do relacionamento paterno-filial, na qual o pai vem expressando seu interesse por assumir e compartilhar as responsabilidades e cuidados de seus filhos nas situações em que haja ruptura das relações conjugais. Nesse sentido, este artigo poderá ajudar a compreender também a razão porque um número significativo de pais vem pleiteando a guarda de seus filhos em casos de separação ou divórcio ou, ainda, optando pela guarda compartilhada como alternativa de preservação dos vínculos e ampliação das possibilidades de continuarem presentes no cuidado de seus filhos. Palavras-chaves: Família, relações parentais, guarda de filhos e guarda compartilhada. 1 Assistente Social Judicial do TJMG, lotada na Central de Serviço Social e Psicologia do Fórum Lafayette, B.H/MG. Especialista em Políticas Públicas pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais. Formação em Terapia de Família e de Casais, pelo Centro de Estudos Sistêmicos da Família. Mestre em Serviço Social pela PUC/S.P. Doutoranda em Serviço Social pela PUC/S.P. Docente do curso de serviço social. Linha pesquisa: atuação do assistente social judicial e guarda compartilhada.

2 1- INTRODUÇÃO Para compreender as transformações familiares no decorrer da história e o papel paterno dentro dos diferentes contextos, ainda que de maneira sucinta, a estruturação do ponto de partida será pautado pela descrição de algumas características do estilo da família medieval. No período medieval, segundo nos conta Ariés (1981), a instituição familiar que hoje possui seu espaço particular delimitando sua privacidade organizava-se de forma aberta para o exterior, o que significava que o espaço físico do campo doméstico familiar era compartilhado com o espaço do trabalho e dos negócios, o que dificultava a expansão do sentimento de família. Nele viviam não apenas todos os integrantes da família, mas também os agregados, os servos, e outras pessoas necessárias para a produção e a defesa mútua. Tudo acontecia nas salas: nelas comia-se, eram recebidas as visitas, dormia-se e fazia-se a higiene pessoal. Nesta época, as pessoas viviam em constante relação umas com as outras, não havendo distinção entre a vida profissional, a vida social e a vida familiar. A pressão social limitava os espaços familiares e não concedia à família uma posição significativa nos sentimentos e valores assumidos. Neste contexto, os filhos não detinham a atenção especial de seus pais e familiares, apenas recebiam alguns cuidados para a sua sobrevivência, os quais frequentemente eram delegados à criadagem. Também, os conhecimentos relacionados aos cuidados dos filhos, na época, não valorizavam a presença dos pais como fator primordial para o seu desenvolvimento social, afetivo, físico e psicológico. A partir do século XVI, na Europa, com o surgimento das primeiras escolas é que a criança passou a ser o centro de atenções e a ser vista como um adulto em miniatura (Faria, 2003:60), necessitando atenção especial. Desde então, a família passou a focar mais de

3 perto os cuidados de seus filhos, o que possibilitou a emergência dos primeiros laços afetivos. A família da segunda metade do século XVII começou a se organizar em torno das crianças. Neste período é que as atribuições e papéis específicos de cada pessoa integrante do grupo conjugal foram sendo construídos e consolidados. O elemento masculino, no contexto familiar, assumiu a responsabilidade disciplinadora e, o elemento feminino, a responsabilidade pelos cuidados: alimentação, higiene e afeto. Diante dessa divisão de papéis observou-se que (...) a mãe coloca-se como mais próxima e o pai, como um princípio ordenador representante da lei e criador de hábitos e habilidades para a inserção na sociedade (Faria, 2003:60). Nos caminhos do século XVIII, a família começou a perceber a necessidade de delimitar o seu espaço particular no contexto doméstico, criando cômodos próprios, separando aqueles de uso da criadagem, das refeições, dos dormitórios e dos trabalhos femininos e masculinos. Essa reorganização da casa e os novos costumes possibilitaram um maior espaço para usufruto da intimidade e da privacidade da família. É neste ambiente de intimidade e privacidade que a família passou a se responsabilizar ainda mais pela educação das crianças. São essas características que irão contribuir para o surgimento da família moderna, que passa a assumir a criança como centro de cuidados especiais. Esta família diferenciou-se do modelo medieval pela expansão das suas relações sociais, pelo surgimento da privacidade familiar e do espaço doméstico, numa estrutura hierarquizada, dirigida pelo chefe de família.as crianças começam a conquistar um lugar junto a seus pais, tornando-se componente importante na vida dos casais. Os cuidados especiais que as crianças necessitavam abriam espaços para a efetivação de sentimentos de afeto entre pais e filhos. E assim, séculos após séculos, o sentimento de família foi sendo construído e modificado aos poucos. Ao que se percebe, a família foi se moldando em função das conjunturas históricas, de sua prole e adaptando-se às novas situações sociais e culturais que foram emergindo no decorrer dos tempos.

4 No percurso da família medieval à moderna os sentimentos de afeto foram sendo construídos lentamente entre seus membros e, principalmente, entre pais e filhos, escrevendo uma história de relações.

5 2. O papel do homem e da mulher na sociedade moderna Ao se pensar na guarda compartilhada, com um breve destaque da participação paterna, torna-se importante mencionar a construção dos papéis desempenhados pelo homem e pela mulher na sociedade e na família: no provimento, nos cuidados, na responsabilização e na educação de seus filhos. Considera-se que somente após entender e analisar a construção social e cultural das relações de gênero, é que é possível compreender as desigualdades do exercício dos papéis parentais. No desempenho desses papéis, é importante deixar claro que tomo por referência os aspectos psicológicos, sociais e culturais do feminino e do masculino e não apenas as características biológicas e anatômicas. Assim, o papel de gênero pode ser entendido como o conjunto de comportamentos sociais que a sociedade espera das pessoas de um determinado sexo. Cada sociedade, de acordo com sua cultura, sua divisão em classes sociais, suas crenças e épocas sócio-históricas, constroem demandas diferenciadas de funções a serem exercidas pelo homem ou pela mulher. Essas funções são transmitidas basicamente pela família, que é a principal fonte de socialização do ser humano. Cabe à família a transmissão das normas e valores da cultura: é ela quem ensina a criança a comer, a se vestir, a tomar banho e, também, a ser menino ou menina, isto é, o que significa ser masculino ou feminino. A mulher é educada desde criança para investir mais nos cuidados dos filhos, em seu espaço doméstico e nos relacionamentos familiares, mesmo trabalhando ou não para o mercado. Ela é ensinada a dedicar sua energia psíquica e emocional para esses cuidados. (...) as brincadeiras das meninas são sobretudo uma repetição das futuras tarefas domésticas, aliada à preocupação com o não se sujar, não rasgar as roupas, ter uma expressão corporal contida, "modos de mocinha (...) (Grupo CERES, 1981:331).

6 O homem é preparado desde cedo a enfrentar e superar desafios, sendo estimulado a desenvolver o seu lado intelectual, além de receber o rótulo cultural de que nasceu para ser provedor, reprodutor e protetor de sua família. Os homens, por sua vez, são estimulados a se defenderem e a atacarem, sendo socializados, desde cedo, para responderem às expectativas sociais de modo próativo, em que o risco não é algo a ser evitado ou prevenido, mas enfrentado e superado (Lyra et al, 2003:79). Culturalmente, o homem ainda é pouco preparado para desenvolver cuidados e demonstrar afetos pelos filhos, a função que a sociedade espera dele é ainda de produzir e administrar as riquezas, garantindo o sustento familiar, além da segurança e preservação dos valores morais da família (Lyra et al, 2003:82). Cada família transmite aos seus descendentes quais são as posturas cabíveis ao homem/marido e à mulher/esposa. Isso leva a crer que para cada tipo de família há uma maneira diferente de desempenhar os papéis conjugais e parentais. Segundo Marodin (1997): Cada casal traz um sistema de crenças e expectativas das experiências da família de origem ou de outras experiências matrimoniais, bem como da cultura de uma específica comunidade e sociedade. São valores que permeiam o pensar sobre casamento e modo de ser marido e mulher. Essas heranças garantem a continuidade intergeracional com seus papéis determinados, estabelecendo um "ideal normativo" para o casamento e definindo a priori como cada um do casal "deve ser", bem como deve ser o relacionamento entre os dois. Seus valores definem as regras do relacionamento entre o casal, estabelecendo os papéis de gênero (Marodin, 1997:10-11). Dependendo da época e das interações estabelecidas entre o casal, os papéis de gênero e como estes são transmitidos assumem características diferenciadas. Na sociedade patriarcal, por exemplo, na qual a relação entre os gêneros era baseada na dominação masculina, o exercício dos cuidados e da transmissão da cultura cabia à mulher. Ao homem cabia mandar e prover, sendo que seu espaço de atuação era o "mundo da rua. À mulher, cabia obedecer, cuidar, ser reprodutora, administrar o lar, portanto, sua ação ocorria no "mundo da casa, não lhe cabendo a vida pública. As tarefas do homem tinham maior status, enquanto as tarefas da mulher eram consideradas de menor valor.

7 A expansão do capitalismo industrial trouxe consigo mudanças significativas nas relações entre o homem e a mulher e na relação familiar. As mulheres foram lançadas para a rua, para a vida produtiva, assumindo atividades laborais tradicionalmente masculinas, no espaço público. O divórcio surgiu como uma nova realidade na qual o homem e a mulher se veem mais livres para se separarem ou manterem-se casados. Os movimentos feministas discutem e levam a sociedade ao questionamento quanto aos estereótipos culturais e sociais dos papéis de gênero. Essas interferências históricas na família e nas relações de gênero produziram modificações nas relações entre o homem e a mulher, e nos papéis de cada um deles no contexto familiar. As divisões dos papéis desempenhados no seio familiar, que eram bem claras e definidas, após essas várias transformações, foram se modificando. As mulheres começaram a contribuir financeiramente para o sustento familiar e os homens, timidamente, passaram a participar dos cuidados dos filhos e de algumas tarefas domésticas. As mulheres, tendo entrado no mercado de trabalho, passaram a administrar seu próprio dinheiro. Entretanto, por levarem ainda com elas o papel de cuidadoras da família, tiveram sua jornada de trabalho ampliada. Romper com os padrões culturais da sociedade ainda é uma tarefa difícil. Por outro lado, no trabalho com famílias é possível perceber que vem se ampliando o desejo que os homens/pais possuem de cuidar e de se responsabilizar pela guarda de seus filhos, revelando sentimentos de afeto imensuráveis. Percebe-se que, para conquistar uma nova visão em relação a conceitos instituídos pela sociedade, é uma luta árdua. Há ainda a prevalência da ideia de que apenas a mulher é capaz de cuidar de sua prole. É difícil modificar esse padrão enraizado culturalmente, ainda quando se tem exemplos permanentes de situações em que ambos os cônjuges demonstram desenvolver potencialidades para assumir responsabilidades parentais anteriormente apenas assumidas pelo outro.

8 3- A participação paterna A possibilidade do homem/pai estar presente e participativo no cotidiano dos filhos revelou um novo desejo, o de participar de situações rotineiras que antes eram realizadas apenas pelas mulheres. Essa exposição mostra que vislumbrando a inclusão do pai no exercício da guarda após uma separação conjugal ou divórcio associado ao interesse e bem estar dos filhos envolvidos, uma lei foi aprovada cujo seu instituto, de um certo modo, busca permitir a ampliação da participação paterna no cuidados dos filhos. É a Lei Nº. 11.698 de agosto de 2008, a lei da guarda compartilhada. De acordo com alguns estudos realizados, a luta pela efetivação da guarda compartilhada surgiu de um movimento que se fixava em objetivos que se relacionavam mais diretamente às questões de convivência entre pai e filho. Foi através do desejo dos pais de terem resguardado o dever de continuar acompanhando o processo de desenvolvimento de seus filhos e, destes últimos, do direito de conviver com seus pais, que a guarda compartilhada se transformou em projeto de lei e foi regulamentada. É claro que com a aprovação da lei puderam florescer outras possibilidades, que chamaram a atenção dos pais e os convidaram a uma maior participação e responsabilização pelos cuidados de seus filhos, não se limitando apenas à convivência, à contribuição financeira e ao acompanhamento de boletins escolares. Frente ao desejo dos homens/pais de serem incluídos como guardiões, percebe-se que esse caminhar foi construído lentamente, transformando-se em lutas contínuas. Primeiro, porque ele não fazia parte dos cuidados diretos do filho e, ser inserido neste processo, requer mudança de mentalidade cultural, principalmente, dos papeis atribuídos socialmente ao homem e à mulher. Segundo, porque envolve a aceitação da mulher em ceder, compartilhar e permitir a aproximação do homem. Terceiro, porque o homem/pai teve que construir um elo com seu filho e cultivar o afeto que, em muitos casos, não era expresso de forma clara. Esta luta não foi empreendida pelo fato de considerar que o homem não pudesse cuidar de um filho de forma adequada, mais sim, que este era um desafio que requeria superação.

9 O eixo do desejo de compartilhamento dos cuidados manifestados pelos pais situa-se no afeto. Nesse sentindo, este artigo tenta conceituar o que pode ser entendido como afeto. Ele pode ser apreendido como o exercício do cuidado com o outro, como preservação da convivência e como dedicação ao exercício atribuído às funções parentais. O afeto paterno pode estar expresso numa situação que implica que o pai passe a participar mais, do cuidado, mesmo que sozinho, sem estar presente com a guarda criança, Ou seja, o pai pode revelar sentimentos de afeto por seu (s) filho(s) mesmo não possuindo a guarda, mas para demonstrá-lo, é preciso que seu direito de conviver seja resguardado. Após o rompimento do relacionamento conjugal, sempre houve necessidade do casal definir a guarda dos filhos em comum. Inicialmente, a legislação defendia que a guarda deveria ser atribuída àquele que não fosse o responsável pelo término do casamento, sendo que ainda existe essa presença cultural, principalmente entre os ex-cônjuges, que procuram identificar o culpado, para puni-lo com a perda dos filhos. Isso, mesmo agora, quando o ordenamento jurídico modificou-se. Também, foi se construindo historicamente uma posição de defesa da permanência dos filhos com suas mães, por considerá-las as únicas capazes de oferecer cuidados, educação e afeto. Esse é o motivo pelo qual, muitos operadores do direito, na maioria, segundo pesquisas, ainda tem tem deferida às mães. Há, também, outra perspectiva que de alguma maneira tenta explicar à homologação da guarda exclusivamente materna. Ela ocorre porque, frequentemente trata-se de situações, mesmo durante o tempo da vigência do casamento, onde se evidencia a ausência paterna no convívio, na participação, na educação e na vida dos filhos durante longos períodos. Estas situações seriam justificadas por um processo histórico de educação, do contexto social e das definições de papéis que eram atribuídos ao homem e à mulher. Durante a existência marcante do modelo da família patriarcal, o espaço feminino no contexto familiar se limitava ao cuidado da casa, do marido e dos filhos, razão pela qual, atualmente, ainda se carrega o estigma de que a mulher seja a mais preparada para essas funções. Ao homem cabia o dever de trabalhar em atividades remuneradas, administrando suas posses, visando o sustento material do lar e da família. Essa situação colocou-o em

10 desvantagem na atribuição dos cuidados diretos com seus filhos, limitando-os apenas às funções de controle, autoridade, imposição de respeito e a imposição de limites aos filhos. Sendo assim, após a separação, era comum os filhos ficarem com a mãe pelo simples fato dela sempre ter cuidado deles. O pai era uma figura mais ausente e mais provedora. Aparecia apenas na hora das decisões e para dar bronca. As mulheres perdiam o direito à guarda apenas naquelas situações em que sua conduta fosse considerada inadequada ao seu papel de mãe. Percebe-se que essa postura fortaleceu o mito do amor materno, contribuindo para a efetivação da ausência paterna, além de construir o imaginário de que ser pai é sinônimo de ser provedor. Ante este novo contexto, é possível perceber a existência de grandes transformações na instituição familiar, inclusive nas atribuições desempenhadas pelos pais em relação a seus filhos. As atribuições que eram bem definidas de que o homem era o provedor exclusivo e a mulher a cuidadora exclusiva começaram a ser redefinidas aos poucos, já há aproximadamente cinquenta anos. Houve uma movimentação por parte da mulher que começou a assumir o papel de provedora para auxiliar o marido na manutenção da casa. Quanto ao homem, o papel de cuidador permaneceu ainda por algum tempo, muito ausente. Percebe-se, ao se pensar nessa questão, que a condição do homem como cuidador ainda é pouco desenvolvida embora ele esteja buscando igualar-se à mulher nos cuidados dos seus filhos, no que concerne aos direitos. Esta situação começou a sofrer modificações: cada vez mais os pais vêm mostrando empenho e preocupação em não serem apenas pais visitadores, mas sim desejosos de participar efetivamente do cotidiano dos seus filhos. Podese dizer que esta condição começou a ganhar destaque com a reconfiguração da posição da mulher na sociedade, principalmente pela sua inserção no mercado de trabalho e pela divisão das tarefas domésticas e dos cuidados dos filhos, que passaram também a serem desempenhados pelo homem. A situação do divórcio pode ser um outro fator que justifica essa mudança no perfil dos homens, levando-os a compartilhar na divisão das tarefas domésticas e no cuidado dos filhos. Essa conjuntura permitiu também que o homem descobrisse e valorizasse o prazer, a gratificação, a realização como pai, de estar mais próximo dos seus filhos. Por isso, cada vez

11 mais, os pais se interessam e buscam lutar por seus direitos de exercer a guarda, de estarem presentes e compartilharem das responsabilidades, reconhecendo a importância, o significado e a contribuição de cada genitor na formação de seus filhos. Atendendo ao novo perfil dos guardiões e, principalmente, às demandas paternas e sociais advindas do desejo de guarda paterna de crianças e adolescentes e a defesa pelo melhor interesse da criança em qualquer situação vivenciada pela mesma, o nosso ordenamento jurídico foi se adaptando a essas transformações, criando novas leis e novos códigos que se posicionam sobre as organizações familiares, os direitos e os deveres dos pais, no que tange aos cuidados e educação dos filhos. 4- Considerações finais: Nossa cultura foi moldando e estabelecendo valores de que a mulher tinha por função ser reprodutora: nasceu para procriar e manter a linhagem familiar, por isso, competia-lhe, única e exclusivamente, os cuidados cotidianos de sua cria. Durante muito tempo, foi sendo construído o pensamento de que após o rompimento de uma relação conjugal ou de um relacionamento afetivo entre os pais, deveria ser definido apenas um guardião responsável pela guarda dos filhos. Acreditava-se que pelo fato da mulher ter sido criada e preparada para assumir os cuidados no ambiente doméstico e na assistência a seus filhos, ela seria a pessoa mais qualificada para exercer a guarda numa situação de divórcio. Do homem, foi edificada a imagem de provedor familiar, cujo espaço seria caracterizado pela sua competência na assistência financeira à família. Nesse contexto, a função paterna ficou limitada a apenas auxiliar a mãe nos cuidados dos filhos, dando destaque à mulher como a detentora e reveladora do sentimento de amor, sendo que a expressão dessa afetividade era considerada como sinônimos de maternidade e feminilidade. (Faria, 2003:63).

12 Nesse sentido, o cuidado foi associado ao exercício da maternidade, como decorrente do instinto materno e feminino. (...) quando nasce um bebê, e como consequência surge um pai, a este último é passado a ideia de que um homem não é capaz de exercer de modo competente as tarefas de cuidado que um bebê requer. Mesmo para aqueles que, infelizmente, conseguem ir contra esses modelos que a sociedade tenta impor, ainda resta um ensinamento : ainda que exerçam o cuidado, nunca conseguirão ser tão bons quanto às mães, afinal, a sociedade sustenta o senso comum de que as mulheres possuem um instinto materno a seu favor (Lyra et al, 2003:85). Desta forma, o pai foi perdendo o seu espaço de direito de permanecer com a guarda de seus filhos mesmo diante da ausência materna, seja ela por morte ou separação. Partia-se do princípio de que o homem não nasceu não foi preparado e nem reúne condições e instintos intrínsecos para proporcionar afeto a seus filhos este papel deveria ser exclusivamente feminino. Esse tipo de organização familiar foi sofrendo transformações ao longo dos séculos, mas algumas características foram e ainda são mantidas e preservadas em nossa cultura. A delegação da guarda unilateral é entendida como um dos efeitos decorrentes da cultura de que deveria haver um titular do poder familiar, que teria um direito de guarda quase absoluto. Essa prática revelou-se muitas vezes responsável pelo enfraquecimento dos laços parentais com o genitor descontínuo na maioria das vezes, o pai e este foi transformado em pai pagador de pensão alimentícia e de final de semana, tendo suas visitas regulamentadas judicialmente. Essa situação foi proporcionando sérios problemas de ordem emocional e psicológica aos filhos, pois se tornavam alvo de disputa e vingança diante do outro genitor. A ausência da convivência direta com uns dos pais é causa de muito sofrimento e mal-estar na vida de crianças e adolescentes.essas mudanças e transformações sociais que vem afetando a família proporcionam modificações nos papéis desempenhados por cada um dos pais. Um novo universo masculino passa a ser construído, evidenciando talentos da paternidade mesmo que de maneira tímida. Assim, a figura paterna começou a mostrar que reúne condições para exercer a guarda de seu filho. Alguns autores e pesquisadores passaram a defender ideias de que a situação de divórcio, a separação e a experiência no cuidado dos filhos permitiu que o homem descobrisse e valorizasse o prazer, a gratificação de estar mais próximo com estes e também mais aptos a exercerem sua guarda. Essa nova faceta da paternidade começa a ser introjetada na sociedade como mais uma possibilidade de ofertar cuidados aos filhos, pois, como defendem alguns psicólogos, o exercício da paternidade e a possibilidade do pai de ofertar cuidados e dedicar-se à

educação de sua prole têm trazido novas vantagens e possibilidades para o desenvolvimento das crianças. 13

14 REFERÊNCIAS AIRÉS, Philippe. História Social da Criança no Brasil. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1981. FARIA, Durval Luiz de. O pai possível: conflitos da paternidade contemporânea. São Paulo: FAPESP Educ, 2003. GRUPO CERES. Espelho de Vênus: Identidade sexual e social da mulher. São Paulo: Brasiliense, 1981. LEITE, Aline Ferreira Dias. A disputa pela guarda dos filhos e a guarda compartilhada:a atuação dos assistentes sociais judiciários. São Paulo: PUC- SP [Mestrado em Serviço Social], 2010. LYRA, J. et al. Homens e cuidado: uma outra família? In: Acosta, A.R. & VITALE, M. A. F. (Orgs.) Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez e Instituto de Estudos Especiais, PUC-SP, 2003. MARONDIN, Marilene. As relações entre o homem e a mulher na atualidade. In: Mulher, estudos de gênero. Marlene Neves Strey (Org.). São Leopoldo: Ed. Unisinos, p. 10-11, 1997.