Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências

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Transcrição:

Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências Mediatization theory: a semio-anthropological perspective and some of its consequences ELISEO VERÓN* RESUMO O texto expõe uma perspectiva de longa duração, qualificada como antropológica, a respeito da midiatização, observando que os fenômenos midiáticos são uma característica universal de todas as sociedades humanas, desde um primeiro estágio de semiose humana, iniciado a cerca de dois e meio milhões de anos atrás, com a produção de ferramentas de pedra. As consequências do fenômeno midiático da exteriorização dos processos mentais são discutidas, sendo destacados os momentos cruciais da midiatização, com respeito à aceleração do tempo histórico, bem como as rupturas entre espaço e tempo produzidas pelos dispositivos técnicos. Os fenômenos midiáticos são uma precondição de sistemas sociais complexos, e por isso a midiatização possui tanta importância quanto estes. Palavras-chave: Midiatização, fenômenos midiáticos, semiose, sistemas sociais * Licenciado em Filosofia, na Argentina, posteriormente trabalhou dois anos no Collège de France, com Claude Lévi- Strauss, tendo realizado doutorado na Universidad de París VIII. Regressou definitivamente à Argentina em 1995, onde foi professor emérito do Departamento de Ciências Sociais da Universidad de San Andrés, Victoria, Argentina. Faleceu em abril de 2014. ABSTRACT This article presents a long-term perspective, described as anthropological, about the mediatization, underlining that the media phenomena are a universal characteristic of all human societies, since a first stage of human semiosis, with its beginning at about two and a half million years ago with the production of stone tools. The consequences of the media phenomenon of mental processes externalization are discussed, having the mediatization crucial moments highlighted, regarding the acceleration of historical time and the ruptures between space and time produced by the technical devices. The media phenomena are a precondition of complex social systems and that is why the mediatization has so much importance as they do. Keywords: Mediatization, media phenomena, semiosis, social systems DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v8i1p13-19 13

Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências 1. No que se refere aos desenvolvimentos de pesquisa e teoria ao redor da midiatização na América Latina, ver Verón (1987, 1994a e b, 1995, 2001, 2004); Carlón (2004, 2006); Carlón e Scolari (eds.) (2009); Fausto Neto, Mouchon e Verón (eds.) (2012); Ferreira, Sampaio e Fausto Neto (eds.) 2012. 2. A esse respeito ver também o clássico de Thompson (1995). DURAÇÃO DA MIDIATIZAÇÃO O (relativamente) velho problema das relações entre a mídia e as sociedades, nas quais a expansão das redes de comunicação se ambienta, tomou um enorme impulso no período das últimas duas décadas, e, consequentemente, ganhou nova forma. Nos anos recentes, muitos projetos de pesquisa e perspectivas teóricas ao redor desse problema têm sido vagamente identificados como pertencendo ao estudo da midiatização. Como a midiatização é, linguisticamente falando, um substantivo que dá nome a um processo, as entidades consideradas como sujeitas a tal processo são, na maioria dos casos, as sociedades em si ou subsistemas particulares delas 1. Também, na maioria dos casos, o período histórico sob escrutínio é aquele da modernidade, e em alguns casos, da modernidade tardia, como expressado, por exemplo, no uso que Hjarvard faz do conceito: Midiatização não é um processo universal que caracteriza todas as sociedades. É primariamente um desenvolvimento que se acelerou particularmente nos últimos anos do século XX, em sociedades modernas, altamente industrializadas e predominantemente ocidentais, ou seja, Europa, EUA, Japão, Austrália e assim por diante (Hjarvard, 2008: 113). 2 Argumentarei aqui uma visão quase oposta, a favor da perspectiva histórica de longo prazo da midiatização. Quão longa deveria ser essa perspectiva? Como veremos, quanto mais longa, melhor, e isso justifica a qualificação de tal perspectiva como antropológica. A midiatização certamente não é um processo universal que caracteriza todas as sociedades humanas, do passado e do presente, mas é, mesmo assim, um resultado operacional de uma dimensão nuclear de nossa espécie biológica, mais precisamente, sua capacidade de semiose. Essa capacidade foi progressivamente ativada, por diversas razões, em uma variedade de contextos históricos e tem, portanto, tomado diferentes formas. Entretanto, algumas das consequências estiveram presentes em nossa história evolucionária desde o início e afetaram profundamente a organização das sociedades ocidentais muito antes da modernidade. Precisamos também de algumas ferramentas conceituais para ir além. A capacidade semiótica de nossa espécie se expressa na produção do que chamarei de fenômenos midiáticos, consistindo da exteriorização dos processos mentais na forma de dispositivos materiais. Fenômenos midiáticos são, de fato, uma característica universal de todas as sociedades humanas. O primeiro estágio da semiose humana tem sido a produção sistêmica de ferramentas de pedra, começando cerca de dois e meio milhões de anos atrás. As indústrias de pedra, de um ponto de vista semiótico, são sistemas-sígnicos secundários (comparados 14

ELISEO VERÓN DOSSIÊ com os sistemas-sígnicos como a linguagem) em termos da distinção clássica proposta há muito tempo por Claude Lévi-Strauss (1958). A percepção, de uma flecha com ponta de pedra por um membro primitivo da comunidade um elemento material dentro do espaço psicológico imediato da comunidade implica na ativação de um processo semiótico, propriamente falando: de trás para frente, em direção à sequência de comportamento técnico que leva à sua fabricação; adiante, em direção ao seu uso como instrumento para obter comida. Ambos os movimentos mentais são seguindo as dimensões da tríade de Peirce sequências indiciais (secundidade) contidas na configuração icônica (primeiridade) da ponta de flecha. Se na comunidade o apreensor for, digamos, um caçador, o movimento mental no que se refere às regras para o uso correto do instrumento (uma terceiridade) também provavelmente será ativado 3. A discussão vigorosa em curso sobre as origens da linguagem deveria levar em conta o funcionamento subjacente dos processos semióticos implícitos nas exteriorizações visuais icônicas e nas sequências indiciais das operações técnicas de produção de instrumentos, ambos os processos que precedem o surgimento da linguagem e qualitativamente diferentes dela (Verón, 2013, cap. 11). O ponto central aqui é que o fenômeno midiático da exteriorização dos processos mentais tem uma consequência tripla. Em termos peircianos, mais uma vez, sua primeiridade consiste na autonomia dos emissores e receptores dos signos materializados, como resultado da exteriorização; sua secundidade é a subsequente persistência no tempo dos signos materializados: alterações de escalas de espaço e tempo se tornam inevitáveis, e a narrativa justificada; sua terceiridade é o corpo das normas sociais definindo as formas de acesso aos signos já autônomos e persistentes. Em outras palavras: criação tríplice de diferenças. As condições estão, portanto, dadas para a história da midiatização começar. Alguns de seus momentos já foram alvos de escrutínio histórico: a ascensão da escrita; a passagem dos rolos aos códices, ou seja, o nascimento do livro; a revolução não reconhecida da imprensa, na expressão feliz de Elizabeth Eisenstein; a proliferação de panfletos e a subsequente ascensão dos jornais; começando no meio do século XIX, novos dispositivos técnicos permitiram o surgimento, pela primeira vez, de fenômenos midiáticos consistindo na produção indicial de imagens e sons que enquadram e sequenciam o tempo, dispositivos que culminam, no século seguinte, com a invenção da televisão (para esses momentos cruciais, ver Verón, 2013, e a bibliografia lá inclusa). Neste contexto, a midiatização é apenas o nome para a longa sequência histórica de fenômenos midiáticos sendo institucionalizados em sociedades humanas e suas múltiplas consequências. A vantagem conceitual da perspectiva 3. Como é bem sabido, Peirce discute seu modelo das três categorias de muitas maneiras diferentes em seus textos. Uma apresentação particularmente interessante e clara, provavelmente composta em 1894, foi incluída na seleção recentemente publicada pelo Peirce Edition Project: Peirce (1998) volume 2, capítulo 2, p. 4-10. 15

Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências de longo prazo é nos relembrar que o que está acontecendo nas sociedades da modernidade tardia começou, de fato, há muito tempo. O estágio inicial de cada momento crucial de midiatização pode ser datado, pois consiste de um a dispositivo técnico-comunicacional que surgiu e estabilizou-se em comunidades humanas identificáveis, o que significa que foi, de uma maneira ou de outra, adotado. Não há determinismo tecnológico implícito aqui: em qualquer tempo, a apropriação pela comunidade de um dispositivo técnico pode tomar muitas formas diferentes; a configuração de usos que finalmente se torna institucionalizada em um lugar e tempo particular ao redor de um dispositivo de comunicação (configuração que pode ser propriamente chamada de meio) só necessita de explicação histórica. 4. A comunicação não midiática também é um processo não linear. A midiatização pode ser descrita como macrogeneralização dessa condição de circulação humana de signos, consistindo na brecha entre produção e recepção (reconnaissance). O desenvolvimento conceitual desses pontos vai além dos limites desse artigo; ver: Verón (1987, 2013). ELEMENTOS DA MIDIATIZAÇÃO COMO PROCESSO NÃO LINEAR Façamos três observações globais, claramente justificadas, repetidamente, pela natureza das consequências, seguindo esses momentos da midiatização. Em primeiro lugar, o crescimento de um meio (ou vários) operando através de um novo dispositivo técnico-comunicacional, tipicamente produz efeitos radiais, em todas as direções, afetando de diferentes formas e com diferentes intensidades todos os níveis da sociedade funcional. Em segundo lugar, o caráter radial e transversal dos efeitos produzidos pelos fenômenos midiáticos é resultado de sua natureza sistêmica, implicando em uma enorme rede de relações de retroalimentação: fenômenos midiáticos são claramente processos não-lineares, tipicamente distantes de equilíbrio (ver Prigogine e Stengers, 1984; Kauffman, 2000). Eu tentei representar esse caráter não linear de comunicação com a distinção, dentro do enquadramento de uma teoria de discursos sociais, entre as condições e gramáticas de produção, de um lado, e condições e gramáticas de reconhecimento do outro: no nível social, a circulação discursiva de significado é estruturalmente rompida. 4 Em terceiro lugar, os comentários (1) e (2) explicam a consequência mais importante desses momentos cruciais de midiatização: a aceleração do tempo histórico. Cada caso de aceleração deveria ser, é claro, avaliado de acordo com o ritmo que caracteriza o período histórico ao qual nos referimos. Para uma narrativa mínima (começo, meio e fim), vamos mencionar pelo menos três pontos. (a) Quando as culturas do Alto Paleolítico surgiram, os produtos das indústrias de pedra passaram de vinte tipos básicos de ferramentas para duzentas variedades e Richard Leakey judiciosamente comentou a escala de mudança passou de centenas de milhares de anos para um ritmo de milhares de anos (Leakey, 1994). (b) A prensa surge no meio do século XV; há, acredito, um amplo consenso entre historiadores de que durante os dois séculos seguintes à invenção de 16

ELISEO VERÓN DOSSIÊ Gutenberg, a Europa mudou economicamente, politicamente, socialmente e culturalmente, mais do que nos mil e quinhentos anos anteriores (ver Eisenstein, 1979, 1983, 2011). (c) Nos últimos dez anos, a internet alterou a condição de acesso ao conhecimento científico mais do que essa condição mudou desde o surto moderno de instituições científicas durante o século XVII. Muitos outros exemplos dessa aceleração de tempo histórico resultantes do crescimento de fenômenos midiáticos podem ser identificados, é claro, de uma maneira muito mais precisa, no que se refere a praticamente qualquer setor particular de atividades sociais e/ou culturais. A transformação do mundo musical (em todos os seus aspectos: composição, performance e audiências) durante as duas ou três décadas posteriores à invenção da gravação no fim do século XIX é incomparavelmente mais profunda do que a ocorrida no mundo musical durante os três ou quatro séculos anteriores (Philip, 2004). A invenção da fotografia, e suas consequências na tradicional fronteira entre o espaço público e privado da vida cotidiana é outro caso que vale ser mencionado (Verón, 1994). ALTERAÇÕES DE ESCALA Já sublinhamos o fato que os fenômenos midiáticos produzem a autonomia de emissores e receptores, e a persistência dos discursos pelo tempo. A primeira consequência da autonomia e persistência é a des-contextualização do significado, que marcou desde seu início a história da localização, salvaguarda, leitura e interpretação primeiro dos rolos e posteriormente dos códices. A descontextualização abre a porta para múltiplas quebras de espaço e tempo produzidas por qualquer dispositivo técnico de uma forma específica, ao longo de toda a história da midiatização. A invenção da prensa democratizou, por assim dizer, a descontextualização e a tornou disponível a todos. Deste ponto de vista a história da midiatização pode ser contada como a interminável disputa entre grupos sociais confrontados, tentando estabilizar sentidos; disputa que se torna, no decorrer da história da nossa espécie, cada vez mais complexa e condenada ao fracasso. Nas ciências sociais, as comunicações interpessoais ou face a face foram muito frequentemente conceituadas como diretas, trocas lineares, ao invés de processos de comunicação mediados por um dispositivo técnico. No meu ponto de vista, a comunicação humana é completamente não linear, em todos os seus níveis de funcionamento, pois é um sistema auto-organizador distante do equilíbrio. A especificidade do face a face da comunicação não é sua suposta linearidade, mas a ausência de fenômenos midiáticos. Como consequência, em trocas interpessoais, as posições de enunciação (enunciador, discurso e destinatário) 17

Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências são localizadas no mesmo espaço-tempo homogêneo. Neste contexto, poderia a descontextualização tomar lugar em um nível não midiático de comunicação? Sim, pois a linguagem oral, em uma comunidade humana antes do surgimento da escrita, torna possível as alterações imaginárias do espaço e tempo, mesmo que fugazes, frágeis e sem persistência material: por exemplo, um adulto explicando a um grupo de crianças, em uma sociedade iletrada, como se comportar durante a cerimônia ritual que acontecerá no dia seguinte. Podemos considerar este tipo de situação como implicando uma distorção imaginária do tempo e espaço. Fenômenos midiáticos materializam as distorções e produzem as rupturas do espaço-tempo. A metodologia recentemente desenvolvida de análises de cognigrama de uso de ferramentas pré-históricas formaliza a distância entre o problema e solução: um determinado uso da ferramenta é orientado à produção material de um objeto, digamos, uma ferramenta de talha, com qualidades materiais que serão significativas em outros lugares e/ou outros momentos (Haidle, 2009). Com os fenômenos midiáticos, a diferenciação entre sistemas sociais e sistemas psíquicos no sentido de Luhmann (1995 [1984], Verón, 2013) pode começar, e sem retorno possível: com a escrita, o Homo sapiens definitivamente abandonou certo tipo de posição estrutural no espaço-tempo. Façamos uma síntese filogenética final. Fenômenos midiáticos seriam uma precondição dos sistemas psíquicos do Homo sapiens? A resposta é não. De forma inversa: sistemas psíquicos do Homo sapiens são uma precondição dos fenômenos midiáticos? A resposta é sim. Sistemas psíquicos são uma precondição de sistemas sociais? A resposta é sim, não de uma forma linear, mas através do surgimento de fenômenos midiáticos. Os fenômenos midiáticos são uma precondição dos sistemas sociais complexos? A resposta é sim. Os fenômenos midiáticos, e, portanto, a midiatização, são tão importantes quanto estes. REFERÊNCIAS CARLÓN, Mario. Sobre lo televisivo: dispositivos, discursos y sujetos. Buenos Aires: La Crujía, 2004.. De lo cinematográfico a lo televisivo. Metatelevisión, lenguaje y temporalidad. Buenos Aires: La Crujía, 2006. CARLÓN, Mario; SCOLARI, Carlos (eds.). El fin de los medios masivos. El comienzo de un debate. Buenos Aires: La Crujía, 2009. EISENSTEIN, Elizabeth. The Printing Press as an Agent of Change. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.. The Printing Revolution in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. 18

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