PROJETO PORTO DE MEMÓRIAS: Interpretação e Paisagem na Zona Portuária Carioca

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Transcrição:

PROJETO PORTO DE MEMÓRIAS: Interpretação e Paisagem na Zona Portuária Carioca Sonia Maria de Mattos Lucas 1. Cultural Biz Consultoria Av. Rodolfo Amoedo 449 ap.103 Barra da Tijuca Rio de Janeiro RJ 22620-350 soniamattos@preservale.com.br RESUMO Estrategicamente localizada, a Zona Portuária carioca, no processo de reorganização espacial, viária, habitacional, de negócios, urbanística e cultural em curso (Projeto Porto Maravilha) necessariamente terá que considerar a história como informação prioritária e privilegiada para a ambiência cultural da região, sem o que a mesma corre um sério risco de gentrificação e esvaziamento social e cultural. Considerando a importância e significação do imenso legado histórico da região para toda a memória da cidade e do país, o Projeto Porto de Memórias pretendeu contar, através de espetáculos teatrais de rua baseados em extensa pesquisa histórica e iconográfica, alguns dos episódios marcantes dessa história, tendo por cenários os próprios locais onde ocorreram no passado: as ruas, praças, cais e morros da Zona Portuária. Realizado de 14 a 29 de Junho de 2014, durante a fase preliminar da Copa do Mundo, o projeto levou cerca de 5 mil espectadores para assistir às memórias do Porto, contadas por atores, cantores e bailarinos sob direção de Regina Miranda e textos do poeta Geraldo Carneiro. Em meio ao grande elenco, destaca-se a participação da Companhia Aplauso, criada no Galpão Aplauso, projeto social desenvolvido na região, com jovens em situação de risco. Palavras-chave: Patrimônio, Interpretação, apropriação social da memória

Todo o amálgama histórico, geográfico, econômico, étnico e cultural da zona portuária carioca criou, ao longo do tempo, uma paisagem cultural particular que agora, às vésperas de mais uma grande intervenção urbana (Porto Maravilha), se redescobre e reinterpreta. Os diferentes perfis sociais, culturais e econômicos do passado da região, ainda hoje permitem a recriação de tipos humanos, ambientados em espaços de patrimônio, gerando uma nova leitura sobre a memória social, a partir da qual a comunidade pode buscar no território os seus lugares privilegiados de pertencimento e restabelecer suas narrativas em meio à transformação circundante. Tendo sido construído em função, primeiramente, do tráfico de africanos mais de um milhão de escravos desembarcaram no Cais do Valongo no Rio de Janeiro, de 1780 a 1830, na segunda metade do Séc. XIX passou a ser o maior porto exportador de café do planeta. Se a reforma do Porto do Rio no início do século XX foi um dos vetores de modernização da capital da República, foi também, o momento em que a memória da vida portuária começou a decair. Espaço privilegiado para o desenvolvimento da Capoeira, do Samba e das tradições religiosas de origem africana, a Zona Portuária Carioca concentra ainda hoje os ícones da cultura negra afro-brasileira, que se misturaram com tradições europeias trazidas pelos imigrantes, formando um caldo cultural singular e criativo. Música, dança, patrimônio, gastronomia, religiosidade, história e cultura são as heranças mais fortes e valiosas da região portuária carioca. Desde a sua inauguração em 1910, o universo cultural do Porto do Rio viveu um prolongado período de esquecimento, devido em parte pelas mudanças tecnológicas introduzidas com o aumento de escala e a mecanização da atividade portuária, em parte pela dinamização de outras partes do Centro e, mais recentemente, pela construção do viaduto da Perimetral, que escondeu a região dos olhos dos moradores do Rio. Fato é que a sociedade, a cultura, a história e o patrimônio daquela região entraram num estado de abandono social e econômico por parte de políticas públicas que redirecionaram para outras áreas da cidade os vetores dos investimentos. Isto, além de outros fatores, condicionou a degradação da sua infraestrutura urbana, e de invisibilidade social e cultural, o que fez com que as manifestações, tradições e valores daquela comunidade passassem despercebidas pela sociedade em geral, radicalizando sua marginalidade. Não obstante, no Porto do Rio foram forjados os símbolos maiores da carioquice: a malandragem, o samba, a capoeira, a favela. A importância cultural do Porto Carioca se impõe na história da cidade, e é um ativo simbólico do qual se deve tirar partido, recuperando e tornando-o marca, ícone, valor.

OS ESPETÁCULOS A cronologia do Projeto tem início com a chegada da Imperatriz Leopoldina, que vem para se casar com D. Pedro 1 em 1817. O Triunfo de Leopoldina foi realizado no Paço Imperial, dando destaque às personagens de Leopoldina e Carlota Joaquina e suas cortes. Ao final, a bateria da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense invadiu a Praça XV, e botou todo o povo para cantar. A segunda apresentação foi a encenação de um evento real, ocorrido em 1830, no Cais do Valongo, retirado das crônicas policiais da época, que foi o resgate do filho de um Rei de Cabinda (nação africana), traficado para o Brasil por engano. O Mercado Negro, encenado no próprio Cais hoje descoberto por escavações arqueológicas fala da brutalidade da escravidão, jogando luz sobre a descriminação, o preconceito e a exclusão social dos negros ainda hoje no país. O terceiro espetáculo, o Baile dos Capoeiras, parodia Shakespeare na releitura de um Romeu e Julieta que teria hipoteticamente ocorrido com a volta dos soldados da Guerra do Paraguai, quando maltas de capoeiras baianos (Zuavos) e cariocas (Guayamuns), se digladiavam nas ruas da zona portuária em refregas de poder e supremacia. O quarto episódio, O Almirante Negro, encenado no Largo de São Francisco da Prainha, conta a trajetória de João Cândido, líder da Revolta da Chibata que, na virada do século, expõe a violência praticada contra marinheiros e luta por igualdade. Na encenação esteve presente o filho mais novo de João Cândido, que se emocionou com a homenagem.o quinto espetáculo, A Pedra Fundamental, contando a história do nascimento do samba foi realizado na Pedra do Sal, reduto da boemia da zona portuária do início do Século XX. Apresentou performances de música e dança, além dos estivadores e prostitutas, figuras características dos portos de todo o mundo. A representação mostrou também Tia Ciata, mãe de santo que acolhia em sua casa as rodas de samba onde Donga, Pixinguinha e João da Baiana se reuniam, trazendo também a memória dos terreiros de candomblé que marcaram a história da zona portuária carioca. O espetáculo de encerramento, A Alma Encantadora das Ruas, reuniu todo o elenco para homenagear João do Rio, célebre cronista da cidade que soube evocar as suas personagens marginais. Celebrando a entrada do Rio na Belle Époque com a introdução da energia elétrica, as primeiras formações dos blocos de Carnaval e a galeria de personagens anônimos que constituem a fauna das ruas, o último espetáculo foi realizado na Rua Marechal Floriano (antiga Rua Larga), em frente ao prédio histórico da Light, inaugurado em 1911.

A Pedra Fundamental Pedra do Sal -Gamboa O Almirante Negro Lgo. De São Francisco da Prainha

O Baile dos Capoeiras Pça. Da Harmonia O Mercado Negro Cais do Valongo