MEMÓRIA: CONTINUIDADES OU DESCONTINUIDADES? Nelci Bilhalva Pereira* A memória não se enraíza somente às continuidades temporais, ela está enraizada nas lembranças, nas descontinuidades, nos traumas e em tantas manifestações humanas, pois esta memória está ligada a um tempo vivo, que rompe com as cronologias lineares presas às tradições e que se abre para o passado e para o futuro, é o tempo onde os acontecimentos estão no âmbito do agora, no tempo dos acontecimentos e dos eventos. O tempo está muito presente nas histórias autobiográficas, pois uma autobiografia nunca está estática numa narrativa linear, mas estará sempre reelaborada numa simples sequência de tempo, porém composta de contínuas reestruturações de eventos passados. A memória aparece como enraizada no passado, mas sua elaboração se dá no presente e para responder questões do presente. Ecléa Bosi em seu livro O Tempo vivo da memória, anuncia que existe dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias, tal como nas paisagens, marcos no espaço onde os valores se adensam, pois o tempo biográfico tem andamento como na música desde o allegro da infância que parece na lembrança luminosa e doce até o adágio da velhice. 1 A sociedade industrial, segundo Bosi, multiplica horas mortas que apenas suportamos: são os tempos vazios das filas, dos bancos, da burocracia, preenchimentos de formulários..., como alguns percursos obrigatórios na cidade, que nos trazem acúmulo de signos de mera informação no melhor dos casos; tais percursos sem significação biográfica são cada vez mais invasivos. E foi a partir da sociedade industrial e que culminou com as atrocidades da I Guerra Mundial, que Benjamin constata a perda da experiência e da narrativa tradicional. A narrativa tradicional está intimamente ligada à memória de longa duração, uma memória linear, onde só o presente existe no tempo, o tempo do Chronos, onde passado e futuro não são dimensões do tempo, pois só o presente preenche o tempo. Este presente está preenchido pela experiência passada de geração para geração, e segundo Benjamin, compartilhada por uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho, porque a tradição não se deixa cristalizar, pois a comunicação nunca se faz somente através da palavra, mas de imagens, sentimentos, ideias e valores que dão identidade a uma determinada comunidade, vivendo dentro de um tempo cronológico, sem mudanças. 2 Porém existe uma memória que não é linear, mas atemporal, imemorial e descontínua, segundo Bergson em Matéria e Memória (1990), e é sentida no interior das experiências vividas, no fluxo do tempo como uma multiplicidade indivisível e heterogênea, que a cada instante se altera, se dilata, se contrai, reconfigurando instantes já passados, criando expectativas para instantes futuros. Por maior que seja a nossa capacidade de antecipação, vivemos sob a torrente criadora da 1
imprevisibilidade e da mudança, o que nos impede de agir e pensar com regimes de previsibilidade. *Graduada em História pela Universidade Católica de Goiás UCG, especialista em Cinema e Educação pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás, em História Cultural pela Universidade Católica de Goiás UCG e em História do Brasil: Local, Regional e Nacional pela Universidade Federal de Goiás UFG. Uma memória-lembrança não é um tempo vazio, mas um tempo saturado de lembranças. Segundo Jacy Seixas (1992), a memória constrói um tempo carregado de afetividades que articulando ao seu modo passado, presente e futuro remete imediatamente a uma dimensão espacial. Os tempos da memória designam ao mesmo tempo, lugares de memória, sejam eles concretos ou simbólicos. Esta memória está marcada por lugares, imagens como também pode estar marcada por traumas, que embora muitas vezes por ter ocorrido há muito tempo, as lembranças sempre teimam em se manifestar em um dado momento presente, mas muitas vezes modificadas no presente, nas experiências vividas no presente. A memória não é estática, ela sempre está revisitada de fatos históricos, tempos vividos, excepcionais, ou recalcados. A memória voluntária está constituída de lembranças que teimam em se manifestar, em querer lembrar. Enquanto a memória involuntária, princípio proustiano, que se deixa guiar não pela continuidade do tempo abstrato vazio, mas sim por associações dominadas pelo acaso, como através de uma música, uma imagem, um aroma ou em algo que toca os nossos sentidos. Segundo Henri Bergson (1990), localizar uma lembrança não consiste tão pouco inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, através de uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo a fim de que este detalhe do passado aí se figure. Nos últimos anos, uma das lembranças, ou melhor, os testemunhos que surgem com muita força, são os testemunhos da Shoah (em hebraico, catástrofe), isto é, o genocídio de milhões de judeus, considerado como um dos maiores crimes contra a humanidade, durante a dominação da Alemanha Nazista, que muitos pensadores afirmam que se faz imperativo que não nos devemos esquecer de lembrar. E que esta necessidade de narrar depara-se com a dificuldade de encontrar palavras, a linguagem, pois a experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada. Dos testemunhos da Shoah, destacam-se três testemunhos: o judeu italiano Primo Levi com uma considerável produção, mas no momento cabe destacar, duas produções Se isto é um homem, publicado logo após o término da II Guerra Mundial e Os afogados e os sobreviventes, em 1986, um ano antes de sua morte. A Noite, do judeu romeno Elie Wiesel, em 1955 e Paisagens da Memória Autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto, de Ruth Klüger, em 1992. 3 Estas produções trazem relatos testemunhais, que trazem à tona os rastros e os traumas de uma experiência traumática e através da narração, ver em parte amenizados. 2
As narrativas de Primo Levi (judeu italiano), em Se isto é um homem trazem a sua detenção, na Itália, pelos alemães em fevereiro de 1943 e a sua deportação para o campo de extermínio de Auschwitz, em fevereiro em 1944 e a sua permanência no campo até a libertação do campo dos sobreviventes, pelos aliados em janeiro de 1945. E em Os afogados e os sobreviventes, escrito quarenta anos depois, procura responder questões levantadas sobre a postura dos sobreviventes das câmaras de gás, como: por que não fugiram?, por que não se rebelaram?, e por que conseguiram sobreviver?. Em A noite de Elie Wiesel, feito prisioneiro aos quatorze anos, e deportado em 1944, para Auschwitz. Profundamente religioso, deparou-se com uma dura realidade, que era o campo mais temido, em que sua mãe e sua irmã já foram encaminhadas imediatamente encaminhadas para as câmaras de gás. Juntamente com seu pai, tentaram a sua sobrevivência. Ruth Klüger, em Paisagens da memória, nascida em Viena (Áustria), de família judia, viveu como ela mesma relata no olho do furacão. Em 1942, foi deportada juntamente com sua mãe para o campo de Therensienstadt, denominado pelos seus habitantes de Terezin. Era o curral anexo do matadouro, visto que este era um campo-gueto, que não somente servia de propaganda e de maquiagem dos alemães para o mundo civilizado e, depois de uma estadia toda a sua população era encaminhada para o campo mais temido, Auschwitz-Birkenau. Ruth, com apenas de doze anos e sua mãe, foram deportadas para o campo de extermínio em 1944 e depois encaminhadas para outros campos de trabalho. Podemos perceber nestas narrativas testemunhais muitas semelhanças como: primeiramente todos foram sobreviventes de Auschwitz e deportados para este campo em 1944, visto que os alemães (fragilizados pela guerra) necessitavam de mão-de-obra para os campos de trabalho. Trazem em seus corpos as marcas de identificação como Häftling (Prisioneiros). Primo Levi, identificado pela tatuagem número 174517, Eli Wiesel, número A7713 e Ruth Klüger, A3537. A mesma surpresa com a placa na entrada do campo de extermínio O Trabalho Liberta, e o mesmo pânico na chegada ao campo, onde eram retirados aos gritos, na calada da noite, sendo chicoteados, os cachorros latindo e as famílias separadas, homens à esquerda e mulheres à direita, quatro palavras simples e breves ditas sem nenhuma emoção. E o pior, o cheiro de Auschwitz, que eles relataram como: O cheiro do anjo da morte, O ar não era puro, cheirava como nenhuma outra coisa no mundo. Além disso, a sede insuportável, pois não havia água saudável, pois esta era morna e adocicada e cheirava pântano, segundo Levi. Era proibido beber água, visto que ela contaminada e qualquer tentativa de beber, eram sumariamente eliminados. E, Klüger destaca que ainda hoje sente arrepios quando vê caminhões de carga e não entende como o pão pode custar tão barato, pois sua mãe quando estavam no campo, trocou um anel de brilhantes por um pedaço de pão. 3
Primo Levi, ao referir-se à memória destaca que: A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz. Esta é uma verdade gasta, conhecida não só pelos psicólogos, mas também por qualquer que tenha prestado atenção ao comportamento de quem o rodeia, ou o seu próprio comportamento. As recordações que jazem em nós não estão inscritas nas pedras; não só tendem a apagar-se com os anos, mas muitas vezes se modificam ou mesmo aumentam, incorporando elementos estranhos. (...) Conhecem-se alguns mecanismos que falsificam a memória em condições particulares: os traumas, não apenas os cerebrais; a interferência de outras recordações concorrentes ; estados anormais da consciência; repressões, recalques. Todavia, mesmo em condições normais desenrola-se uma lenta degradação, um ofuscamento dos contornos, um esquecimento por assim dizer natural, a que poucas recordações resistem. É provável que aqui se possa reconhecer uma das grandes forças da natureza, aquela mesma que degrada a ordem em desordem, a juventude em velhice e apaga a vida com a morte. 4 Para que Auschwitz não se repita", assim reza o novo imperativo categórico proposto por Adorno. Este imperativo, longe de nos transformar em estátuas de sal presos ao passado, quer antes mobilizar a lembrança solidária com as vítimas, a memória das esperanças não cumpridas e as injustiças ainda pendentes de ressarcimento contra tudo aquilo que continua produzindo dor e sofrimento e aniquilando os indivíduos. 5 Este novo imperativo, segundo Zamora, é um olhar agudo para as catástrofes do presente, um olhar implacavelmente crítico de suas causas e solidariamente compassiva com suas vítimas. Já não há lugar nem para a inocência nem para o desconhecimento ante o horror da história, seja aqui, na América Latina, ou na África, ou na Ásia, ou em qualquer canto da Terra. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto destes fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos 6. A dificuldade da narração e mesmo a incredulidade sobre o que ocorreu nos campos de morte era previsto pelos próprios nazistas, que após as sucessivas derrotas militares tentaram apagar os rastros de sua ignomínia. Um dos sobreviventes do Holocausto, Primo Levi, lembra a fala de um SS aos prisioneiros, narrada por Simon Wiesenthal. Seja qual for o fim da guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos ninguém estará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhes dará crédito [...]. Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem 4
confiança: dirão que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditamos a história dos Lager [campos de concentração]. 7 O conceito de testemunho, segundo Seligmann-Silva (2003), desloca o real para uma área de sombra e testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas é marcado também pelo elemento singular do real. Nos testemunhos, a partir de Auschwitz, a questão do trauma assume uma dimensão e uma intensidade inaudita, pois redimensionamos a relação entre a linguagem e o real, não mais na existência ou não da realidade, mas na nossa capacidade de percebê-la e de simbolizá-la. A maioria das narrativas testemunhais sobre a Shoah ocorreram muito tempo depois dos eventos, alguns até mesmo a décadas, em decorrência dos traumas, da necessidade premente de tentar esquecer, no entanto aquele que testemunha sobreviveu de modo incompreensível - à morte: ele como que a penetrou.. Contudo, apesar do trauma, há uma necessidade dos sobreviventes do Holocausto, de narrar o ocorrido e este gesto é justificável pelo impulso de se livrar da carga pesada da memória do mal passado; como dívida de memória para com os que morreram; como um ato de denúncia; como um legado para as gerações futuras e também como um gesto humanitário na medida em que o testemunho serviria como uma memória do mal. Os eventos narrados são apresentados como exemplo negativo e tem o objetivo de prevenir, de alguma maneira, a repetição deste tipo de terror. As narrativas tem uma tendência de se concentrar bem mais no período vivido nos guetos ou nos campos de concentração do que nos períodos ocorridos antes ou depois do evento, segundo análise de Seligmann. Para Seligmann (2003), o testemunho possui um papel de um grupo de pessoas antes de mais nada, em se tratando da Shoah, dos próprios judeus que constroem a sua identidade a partir dessa identificação com essa memória coletiva das perseguições, de mortes e dos sobreviventes. Na era das catástrofes a identidade coletiva tende a se articular cada vez menos com base na grande narrativa dos fatos e personagens heroicos e a enfatizar as rupturas e as derrotas. Daí também a atualidade do conceito de testemunho para articular a história e a memória do ponto de vista dos vencidos. O testemunho funciona como o guardião da memória. (...) A riqueza e a força do Judaísmo advém do fato de ter compreendido que a memória só existe no duplo trilho do passado e do presente. E segundo Jacy Seixas, a memória não é um retrospecto, isto é, não é somente uma parada no presente, um resgate do passado, recalque, ilustração, mas é um prolongamento do passado no presente, portanto ela não é progressiva, mas é passado que nunca passa. Notas (1) BOSI,2004, p. 24 (2) GAGNEBIN, 2006, p.50 5
(3) Primo Levi (1919-1987), judeu-italiano, nasceu em Turim. Escritor que escreveu memórias, contos e poemas, porém ficou mais conhecido pelas suas experiências traumáticas como prisioneiro e sobrevivente de Auschwitz-Birkenau. Seu livro Se isto é um homem, é considerado um dos mais importantes trabalhos memorialista do século XX. O livro Os afogados e os sobreviventes, escrito um ano antes de sua morte, em 1986. Existem suspeitas, embora não confirmadas por sua família, de que se suicidou, pois não conseguiu conviver uma vida com as suas lembranças como häftling de Auschwitz. O livro tenta mostrar às futuras gerações que nunca se esqueçam da Shoah (catástrofe em hebraico), isto o genocídio de milhões pelos nazistas, durante a II Guerra Mundial, que nunca se esqueçam de lembrar, para que catástrofes como a que ocorreu volte a acontecer. Elie Wiesel nasceu em 1928, num lugarejo chamado de Siguet, região na época disputada por Romênia e Hungria. Em seu livro A noite, o que mais o marcou enquanto prisioneiro foi a descoberta de que seres humanos, crédulos de Deus, podem pela necessidade de sobrevivência, se transformarem em monstros. Pelo seu árduo pela promoção dos direitos humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz, em 1986. Ruth Klüger, de origem judaica, nascida em Viena no ano de 1931, viveu a maior parte de sua infância e adolescência em campos de trabalho e extermínio alemães. Em seu livro Paisagens da memória autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto, não somente relata sobre a sua vida de sobrevivente, mas também do seu período pós-guerra, como imigrante nos Estados Unidos. Quarenta anos mais tarde, em uma estadia a trabalho, na Alemanha, resolveu reabrir as feridas e trouxe à tona antigos fantasmas. (4) LEVI, Os afogados e os sobreviventes. 1990. p.9. (5) ZAMORRA, Educação depois de Auschwitz, p. 20. (6) SELIGMANN-SILVA, 2003, p.48 (7) Ibidem, 2003, p.51. Referências bibliográficas: BOSI, Ecléa Bosi. O Tempo Vivo da Memória: ensaios de psicologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória e Literatura. Campinas, São Paulo: Ed. da UNICAMP, 2003. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. SEIXAS, Jacy Alves de,. Os tempos da memória: (des) continuidade e projeção. Uma reflexão (In) atual para a história?. Revista do Programa de Estudos Pósgraduados em História e do Departamento de História da PUC-SP: Artes da História & outras linguagens, nº 24. Junho/02. BERGSON, Henri. Matéria e Memória Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990. KLÜGER, Ruth. Paisagens da Memória Autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto. São Paulo: Editora 34, 2005. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 6
. Se isto é um homem. Lisboa: Teorema, 1958. WIESEL. Elie. A noite. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. MOREIRA, Alberto da Silva; PUCCI, Bruno; ZAMORRA, José Antônio. Adorno. Educação e Religião. Goiânia: Ed. da UCG, 2008. 7